Sonho da Infância Realizado na Alegria

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Chegada da São Silvestre 2008. Clique para ampliar.

Não sei se correr acrescenta anos à sua vida,
mas com certeza acrescenta vida aos anos que estão por vir.

Jim Fixx

Será preciso muita disciplina,
força de vontade e controle sobre as próprias emoções
para calçar o tênis e arranjar um tempo.

Nuno Cobra

Desde os tenros anos temos lá nossos sonhos. Eles flutuam através do tempo, vêm à mente em determinadas associações de idéias, permanecem por instantes, prazerosamente, e retornam ao nosso de profundis. Por vezes, essas salvaguardas da vida não se dispersam para nossas regiões abissais. Afloram, como querendo tornar-se realidades. A depender das circunstâncias, sonho junta-se à vontade, e o amálgama se faz. Nós sempre somos o resultado dos acúmulos que virão nortear nossos anseios.
A corrida de São Silvestre era para mim um desses sonhos impossíveis, mas sempre a sobrevoar a minha imaginação. Desde a passagem da infância para a adolescência, ouvia pelo rádio o locutor narrar a corrida, empolgado, seguindo retas, curvas, descidas e subidas, a acompanhar as passadas firmes dos corredores que iam à frente – ignorava-se totalmente aqueles que estavam atrás – e nós torcíamos, vibrando com o desempenho dos heróis a enfrentarem os temíveis aclives. Só após a chegada, que coincidia com aquela do alvorecer do novo ano, meu pai abria o champagne, após lauta ceia preparada por minha mãe de absolutos dotes culinários. Comemorávamos o advento de mais um período, e comentávamos a corrida finda naqueles instantes. De todos os grandes corredores daquele passado sempre vivido na felicidade familiar – Vijo Heino (1949); Franjo Mihalic (52-54); Emil Zatopek, a Locomotiva Humana (53) -, verdadeiras lendas do asfalto, um permaneceu indelével, registrado na lembrança de um miúdo. Tinha eu 10 anos quando o chileno Raul Inostroza ganhou a São Silvestre. Ao deitar após os festejos, fiquei a pensar até que o sono chegasse como seria fantástico se pudesse, ao crescer, participar da mágica competição. Estava a ler nesse período Os Doze Trabalhos de Hércules, de Monteiro Lobato, coleção que guardo encadernada com o maior carinho. Seria evidente supor que a influência da obra mostrava-se decisiva. Pela primeira vez os heróis da mitologia grega adquiriam vida real e desfilavam perante a criança plena de curiosidade. A associação mostrava-se conseqüência natural. Feitos grandiosos. Nos anos que se seguiram, voltava-me a idéia da participação na São Silvestre. Após o meu estágio durante anos na França para estudos, não mais pensei no assunto. Mas o miúdo que eu fui lá estava, bem no meu inconsciente, a aguardar o momento preciso, que se daria sessenta anos após.
Sob outra égide, a São Silvestre, quando à noite, era cercada de magia, e o seu término, o início da festa da passagem do ano. Estranhos interesses televisivos transferiram-na para a tarde, e o fascínio se perdeu. Tudo ficou visível, o calor de tarde de início de verão tirou parte do público assíduo, mas ganhou assustadora quantidade de participantes. Acrescente-se o fato de a cidade ter crescido muito e de maneira irracional. Hoje são cerca de 20.000 inscritos, numa bela festa, acrescente-se. Logicamente, a visibilidade a tornar-se mais evidente, provoca por parte das câmeras, flashes dos retardatários.
As décadas foram fluindo. Sonhava correr a São Silvestre uma vez apenas, tão cara a nós, paulistanos. Amigos preparados participavam, mas o meu sedentarismo não resistiria sequer à inscrição. A única prática esportiva restringia-se aos 20 minutos de ginástica sueca matinal que aprendi com meu pai nos anos 60 e que faço até hoje. Precisei ter um linfoma, passar por quimioterapias e, munido da atração pelo desafio – meu saudoso pai ! – criei coragem para andar como atividade esportiva e, logo depois, correr. Primeiramente 500 metros, lá pelo mês de Março de 2006. Pouco a pouco, o índice subiu, a vontade igualmente, e não mais parei. Duas metas tornaram-se claras. A ginástica e o “trotar” abriam-me perspectivas para poder superar o mal. Uma segunda era poder, através da corrida, levar esperanças àqueles que sofrem da doença. É comovente verificar alguém, portador de um câncer, dizer que vai lutar também.
A participação em quatro corridas oficiais já me apontava neste ano para a alegria de estar presente e sentir o pulsar saudável de milhares de outros corredores. Sempre em meu ritmo moderado. Inscrevi-me na São Silvestre de 2008. Para tanto, três vezes por semana corro de 8 a 14km, a fim de testar resistência. A conselho de meus queridos amigos e médicos da Clioh – Oncologia e Hematologia, que me acompanham periodicamente através de consultas e minuciosas aferições, realizei os exames pertinentes, pois não se brinca aos 70 anos, apesar de o lúdico existente em mim vibrar, encantado com a corrida. Exames dentro do contexto. Continuei os treinos solitários pelas ruas de tantos bairros e o espírito da São Silvestre inundou-me.

Cinco medalhas de participação. Ao centro, a da 84ª São Silvestre, 2008. Clique para ampliar.

Já com a inscrição sacramentada, e o número oficial recebido, 13.126, pensei na camiseta para a corrida. Teria de ser temática. Escolhi: Câncer x Vida e, nas costas, Superação. Se chegasse ao final dos 15km no meu ritmo septuagenário, causando esperança a uma só pessoa portadora do mal, a corrida já teria sido válida.
E eis que chega o grande dia! Dizer que não estava ansioso seria fugir à verdade. Milhares de corredores na hora da largada, que se deu em frente ao MASP. O mar de gente estendia-se até o prédio da Gazeta, a algumas centenas de metros atrás. E lá estava eu. Nos primeiros dez minutos, só deu para andar lentamente. Foi a partir da Rua Augusta que os passos da corrida fizeram-se sentir. Eu estava eufórico, pois via realizar-se um sonho acalentado por sessenta anos, desde o distante 31 de Dezembro de 1948. Corri por ele, por todos os portadores de câncer e por minha mulher, Regina, que aniversariava nesse dia.
É indescritível a São Silvestre. Durante todo o percurso, as laterais de ruas e avenidas ficam repletas. O público vibra, brinca e estimula. Minha camiseta temática foi alvo de tantas frases de incentivo, de apoio. Na Av. Rudge, uma senhora com curativos no rosto disse-me: “Eu também vou superar”. Fiz o sinal de positivo, certo de que o objetivo de minha participação estava a ser concretizado. Corredores sérios, outros nem tanto, fantasiados e bem engraçados, dão ao evento uma beleza ímpar. Um corredor, como exemplo, percorreu toda a prova erecto e com um vaso marajoara sobre a cabeça. Bem mais jovem, por vezes parava para acertar a posição. Mas chegou bem. Após o minhocão, moradores com esguichos refrescavam os corredores. Passei perto de um deles, levantei os braços e fui irrigado. Que maravilha!
Como programado, mantive meu ritmo do começo ao fim da prova, sempre correndo, apenas diminuindo a “velocidade”, uma espécie de trotar, na temível subida final de aproximadamente 2.500m da Av. Brigadeiro Luís Antônio. O prazer indizível de contornar a Av. Paulista, 400m antes da chegada, foi único. Ainda tive forças para um pequeno sprint nos últimos 50 metros. Meu irmão, o extraordinário pianista João Carlos, hoje emblemático Maestro do Povo, como é saudado pelas multidões de norte a sul neste país, lá estava para o abraço das Superações. Choramos juntos as lágrimas de passados que nos levaram a nunca desistir.

O pranto jorrou-me em ondas...Resistir quem há-de? (Luiz Guimarães Júnior). Clique para ampliar.

Como prometera à criança de 1948, cheguei ao fim, e a São Silvestre de meu lúdico infantil lá estava sendo oferecida àquele imaginário secreto. Infância que nunca deve apagar-se dentro de nós. Apelos no recôndito que pouco a pouco são atendidos. Sei que aquele menino entendeu a longa espera e a minha colocação na classificação geral: 13.994 (Tempo 02:21:33, Tempo líquido 02:10:34). Para ele, a linha de chegada era a fronteira do sonho.

As tartarugas sempre chegam ao destino. Clique para ampliar.

Tartarugas sempre chegam aos seus destinos. É atávico. Minhas netas presentearam-me com um belo Chelonio de madeira e no Natal já preenchiam as placas do escudo desse réptil – lembra um jabuti – com mensagens visando à corrida. Regina, filhas e amigos têm ajudado a completar os estímulos. Certamente, é o troféu mais expressivo que poderia ganhar. Como analogia, estendo as mensagens a todos os meus fiéis leitores, com os votos de um ano onde imperem paz, saúde, solidariedade com o próximo, felicidade e realizações.
Bem Haja!!!

A Fraternidade não tem côr. Clique para ampliar.

Saint Silvester Road Race
Since I was a boy I dreamed of running the Saint Silvester race. It is the oldest and most prestigious road race in Brazil, taking place every New Year’s Eve since 1925 in the streets of my city, São Paulo. I remember watching it on the TV with my parent when I was a child. It was then an evening race, held under the street lights and spotlights of our giant city. Only after it was over we celebrated the arrival of the New Year with a champagne toast. Today it happens late in the afternoon, in the intense heat of the Brazilian summer. Foremost long distance runners from all over the world come to the event. An estimated 20.000 runners – amateur and professional – took part this year and I was one of them. It was a feast for the eyes,, with a carnival-like atmosphere, some runners wearing crazy costumes, crowds of people lined to cheer the participants. I was wearing a T-shirt with the words “Cancer X Life” and “Victory”. At seventy and under a treatment for lymphoma, running its 15 km through the hilly streets of São Paulo was a challenge, an achievement I never thought possible, a test of my limits that made me burst into tears when I crossed the finish line. A personal victory, which I expect will be inspiring for other cancer patients, encouraging them to find strength to battle their disease.