A Difícil Subsistência e a Permanência na Rotina
Passeia tranquilo
no fundo mais fundo
do eu infinito.
Sinto-lhe os passos
nos porões sombrios.
Amigo impossível
que procuro, olhando
os meus olhos no espelho.
Bueno de Rivera
Nesses últimos meses, várias vezes fui indagado sobre personagens que foram temas de posts anteriores. A constância dessas indagações leva-me a várias reflexões. Uma primeira relacionada à solidariedade, mesmo velada, existente em tantos cidadãos conscientes, ao entenderem que a essência do homem tem de ser preservada. Uma outra relacionada à própria curiosidade do leitor em querer saber a sequência de uma narrativa. Há também, por trás de um questionamento, o incentivo no sentido de que outros personagens do bairro sejam focalizados. Logicamente isso não se dá em hora e tempo certos. Cidadãos que partilham os mesmos espaços urbanos vão sendo filtrados em nosso interior e, quando há um leve estímulo que seja, aflora o ser humano com parcela de sua existência e seus hábitos. Essas possibilidades de interpretação de personagens que passam diante de nós abastece nossa maneira de ver as coisas. Diferenças que paradoxalmente levam à harmonia; repetições atávicas de comportamentos que nos fazem melhor compreender o homem, sua dificuldade frente à vida, sua acomodação sem perguntas, seus defeitos, seus sentimentos antagônicos que o conduzem ao desalento, mas também à esperança e à luta permanente por um sentido a ser dado ao caminho ainda a ser trilhado.
Sob outro aspecto, a cidade bairro Brooklin-Campo Belo é rica em figuras humanas as mais variadas. Acostumamo-nos a vê-las muitas vezes. Nesse cruzar permanente, sentimos a frustração por não poder ajudar os mais carentes, a não ser que haja um esforço coletivo privado, pois o poder público não se interessa por não votantes.
Leitores questionaram-me sobre quatro personagens de temas anteriores: Pedro, Sisuphos, o amolador Constantino e Nélson o jornaleiro, esses últimos batalhadores sem descanso. Prometi àqueles que me fizeram perguntas responder em momento oportuno, fazendo-o prazerosamente através deste texto.
Aos sábados encontro-me com Pedro (vide Pedro, o Andarilho, 15/02/08). No presente, permanece quase sempre sentado na posição fetal, ou alongado, à espera de seu destino último. Creio que jamais encontrará a cadência que busca desde a década de 70, quando o conheci. Continua a dormir ao relento e histórias várias existem a seu respeito, lendas até. Quando das reuniões semanais dos moradores do entorno Brooklin-Campo Belo em 2008, a respeito do Metrô, muitas vezes Pedro foi mencionado. Alguns o conhecem pelo nome de Van Gogh, pois certa semelhança existe. Ser morador de rua há 40 e tais anos anos é quase um milagre. Ao me encaminhar aos sábados para a feira livre de Campo Belo, já sei o kit de que ele gosta: uma grande garrafa de refrigerante, banana nanica, pastéis e biscoito de polvilho. Cauê, o feirante dos pastéis, sempre coloca um a mais no pacote, pois conhece o seu destino. Quando entrego a Pedro, um esboço de sorriso seguido de um surdo obrigado. Basicamente não mais sai de seu pequeno entorno. Um dos moradores, o excelente artista plástico e designer Luca Vitali (www.lucavitali.com), disse-me que já havia retratado Pedro. Enviou-me por e-mail a expressiva gravura que apreende o cerne da solidão de Pedro e todo o seu universo conturbado. Traços do artista denunciam, através de linhas fortes, o desalento e o infortúnio de todos que, como Pedro, apenas flutuam à deriva.
Sisuphos, sempre inóspito, é realmente a reencarnação da figura mitológica (vide Sisuphos – Do Indivíduo ao Coletivo, 22/03/07 e Sisuphos (II) – Eterna Sina, 26/07/08)). O passar do tempo tem deixado o nosso personagem acentuadamente mais sorumbático. O peso de seu fardo torna-se cada dia mais martirizante. Continua a transitar diariamente por minha rua, mas hoje sem horários fixos. Alguma transformação interior deve ter mexido em seu fuso. Se era fechado, mais ainda se tornou. Com extremo cuidado dele me aproximo, pois suas reações tornaram-se menos previsíveis.
Constantino, aos 80 anos, continua a percorrer as ruas do bairro e a tudo afiar (vide Amolador à Antiga – Dignidade Mantida, 15/09/07). Não perdeu a energia, quando após soprar as escalas em sua flauta de Pã, lança o pregão “amoladoooire”. Uma figura. Nélson continua sua saga (vide Nélson, o Sábio – Nosso Cantinho Possível, 18/04/07). No final de 2008 cumprimentei-o pelos 50 anos de amizade, pois o conheço desde minha chegada ao Brooklin. Por vezes, sua mulher e sua filha assumem o posto. As longas jornadas durante décadas talvez tenham deixado Nélson menos expansivo. Fazem parte de nosso ciclo existencial possíveis transformações. Contudo, continua sempre estimado pelo grupo de aposentados – no qual eu me incluo – que diariamente, em horas diversas, reúne-se ao lado de sua banca de jornais. Grupo hoje coeso e que periodicamente se encontra para apreciar dons culinários de um dos integrantes, escolhido ao acaso.
Se Carlinhos foi tema do último post, outros personagens que cruzam nossas vidas estarão sendo focalizados. Acredito que uma das mais expressivas características de nossa existência seja tentar compreender pessoas desse convívio rotineiro. Elas carregam atávicas reações que fizeram parte de gerações de nossos ascendentes. Há algo de telúrico nesse cotidiano enraizado, e essas figuras lembradas naturalmente só se fixam em texto se houve uma empatia, sem qualquer juízo de valor. Elas transitam ou permanecem estáticas. Contudo fazem parte de nossos verdadeiros retratos. O espelho não apenas mostra o que somos, mas todo o mistério da saga humana. Aqueles prestadores de serviços conclamam à rotina inexorável, evocando sentimento solidário. Pedro e Sisuphos denunciam o esquecimento a que foram relegados pelo descaso de irmãos cidadãos e autoridade pública. Cruzar seus caminhos e observá-los em suas lides diárias faz-nos compreender a nós mesmos, nessa permanente busca da interação. Remetem-nos à dificuldade de auto-conhecimento, pois os Pedros e os Sisuphos relegados são profundezas nas quais evitamos penetrar. Porém, representam o elo a levar à reflexão e, daí, ao entendimento do próximo. Só precisamos abrir nossa alma.
Readers keep asking me about the fortune of characters that have been the subject of previous posts. So today I resume the story of some of them: those involved in routine occupations like the newsstand owner and the knife grinder, and those who belong nowhere and have not found their way off the streets and into the community yet, like Pedro the drifter and Sisuphos the waste picker.