Navegando Posts publicados em março, 2009

A Depender da Atividade

Maguila e J.E.M. Desigualdade absoluta. Clique para ampliar.

De homem sem barba,
Põe-te a salvo.

Adágio Açoriano

Quando escrevi sobre a aplicação da força muscular através da digitação sobre o teclado (vide L.E.R. – Lesão por Esforço Repetitivo, 26/11/07), abordava o tema da baixíssima pressão exercida por um digitador frente a um computador e a gama enorme de intensidades extremas praticadas por um pianista. Recebi inúmeros e-mails de portadores da L.E.R., assim como de alunos de piano e professores. O tema é de suma importância, e nunca se faz tarde ratificar que a Previdência Social despende verbas imensas com sofredores do mal que deixam seus trabalhos e buscam auxílios governamentais. Partiria do Estado a iniciativa para que o problema seja debelado, ou ao menos minimizado? Difícil cogitar tal possibilidade.
O homem sempre teve de pensar no uso da força. Milênios foram necessários para que inventasse a alavanca. Quando o esforço físico depende unicamente do desempenho do homem, sem qualquer outro artifício externo, tem-se igualmente de verificar, para as múltiplas aplicações desse potencial, longas gestações através da história.

Premières Notions de Sciences Physiques et Naturelles. Paris, 1907. Clique para ampliar.

A força humana pode comportar muitas categorias. Entre essas, duas foram objeto de recente reflexão, pois apresentam-se antagônicas quanto à destinação. A força bruta de um lutador de boxe, a partir de longa preparação corpórea como um todo, mas potencializada nos braços, punhos, pernas e pés, assim como estratégias definidas visando a embates; e aquela do pianista ao realizar altas intensidades, quando todo um sistema muscular tem de estar amparado sólida e cientificamente, mercê, igualmente, de longa preparação, que remonta à infância.
Quando estudava em Paris, ouvi reiteradas vezes o excelente pianista búlgaro radicado em França, Yuri Boukoff (1923-2006). Fora também aluno de Marguerite Long, a legendária pianista e professora francesa, mas em período bem anterior ao meu. Era muito forte e, por vezes, visitava a nossa mestra, apresentando-se prazerosamente em seu curso, o que era maravilhoso para todos nós que estudávamos na Academia de Madame Long. Apreendi que na juventude praticara pugilismo com desempenho acima da média, apesar de ter iniciado bem cedo seus estudos pianísticos, com resultados surpreendentes. O célebre crítico do Le Figaro, “Clarendon”, pseudônimo de Bernard Gavoty, escreveria sobre Boukoff: “Grande pianista de porte atlético que nos faz pensar, logo que ele surge em cena, se não vai, por pura diversão, carregar o instrumento em seus fortes braços”. Chamou-me a atenção esse desempenho de Yuri Boukoff em esporte de impacto, contado por colegas da renomada escola de música. Intérprete pujante – a gravação de Boukoff da integral das Sonatas de Prokofiev é considerada referência -, mas pleno de lirismo, primeiro pianista a realizar uma tournée na China, no longínquo 1956, praticou atividade que poderia levá-lo a sérios comprometimentos físicos, esporte que para os maiores aficionados é considerado como “nobre arte”.

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Fui assistir no dia 11 de Março último a abertura da temporada da Orquestra Filarmônica Bachiana, sob a regência de João Carlos Martins. Um grande sucesso, e a certeza de que o carisma do irmão, no que concerne à música erudita no Brasil, é absolutamente único. No intervalo, Jorge, dileto amigo com quem conversava, aproximou-se de Adilson Maguila Rodrigues, o nosso maior campeão dos pesos-pesados e, sem que eu percebesse, disse-lhe, referindo-se a mim, que se tratava do irmão do Maestro do Povo. Imediatamente o conhecido lutador apertou-me a mão, diria, triturou-a, sempre a sorrir. Minha filha Maria Fernanda não perdeu a oportunidade e preparou sua digital. Maguila desde logo fez pose como se estivesse a lutar, sugerindo que fizesse o mesmo. Daí a foto descontraída. Após aqueles instantes alegres, fomos assistir à segunda parte do concerto, e estive a pensar. Toda aquela massa bruta, força da natureza e de treinos incansáveis, assim como de uma disciplina necessária, fizeram com que Maguila se tornasse campeão brasileiro, sul americano e das Américas. É uma figura lendária, pois enfrentou, apesar de ter perdido nos primeiros rounds, Evander Holyfield e George Foreman, dois extraordinários campeões mundiais. Subir no ringue e desafiá-los nos Estados Unidos já pressupõe uma tremenda coragem e sangue gélido. Ao mostrar-me as mãos, verifiquei a descomunal estrutura que a vida imprimiu às ferramentas de trabalho de Maguila. Naquela proverbial simplicidade, o campeão afirmou, contraindo mãos e braços: “é rocha pura”. No todo, um verdadeiro armário colossal. Simpatia simplória e direta, inclusive. Sob outra égide, se aquele punho mostrado na foto atingisse o meu rosto, estaria certamente agora navegando no sono da eternidade. Mãos e mãos, destinos diferenciados. Em ambos os casos, elas buscam traduzir intenções acalentadas longamente. Para o pugilista, há as luvas que atenuam os choques; para o pianista, as mãos estão a serviço de infinitas gradações de intensidade, através dos dedos. Boxeador e pianista têm seus sonhos. Neles, deve haver muita analogia. Mas a posição deste intérprete para com aquela “rocha pura”, amostra de tantas outras espalhadas pelo mundo e que acalentam atingir cinturões da glória, era e continua a ser de profundo respeito.

At one of the concerts of my brother João Carlos Martins and his Bachiana Chamber Orchestra, I met by chance the boxer Adilson Maguila, a retired Brazilian heavyweight champion who in the past fought two world champions: Evander Holyfield and George Foreman. We were photographed together and afterwards I paused to think of the use of the hands in different professions: the brutal strength of a boxer’s fists and the measured strength of a pianist in pursuit of countless nuances of intensity.

Realidades bem Próximas

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Galileu havia decidido passar por cima das universidades
e se dirigir no vernáculo a um público leigo inteligente em geral.
Isso sem dúvida envolvia sacrificar o valor
internacional do latim,
mas Galileu não fazia muita questão
de se tornar um membro exclusivo
da república iluminada e dispersa dos teóricos. […]
Ele se sentia à vontade na rua, na praça. […]

Santillana

Em 1992 adquiri um livro que me pareceu instigante. A partir do título. Percorri-o em leitura quase que dinâmica. Interessavam-me os temas tratados, direcionados ao pensamento livre e independente, e àquele circundado pelos muros da universidade. Contudo, já intuíra que um dia poderia lê-lo mais atentamente. Mencionei-o na Aula Magna por mim proferida no Anfiteatro de Convenções e Congressos da Universidade de São Paulo na abertura do ano letivo de 1993, aos 4 de Março, e publicada meses após na revista Estudos Avançados da USP (vide site, item Essays. A Cultura Musical Erudita na Universidade: Refúgio, Resistência e Expectativas, 1993.)
Uma semana antes da minha última viagem ao Exterior encontrei, atrás de tantos outros livros, Os Últimos Intelectuais, de Russell Jacoby (The Last Intellectuals). Escrito em 1987, teve insatisfatória tradução para o português (São Paulo, Trajetória/Edusp, 1990, 288 págs.). Em 2000 foi reeditado nos Estados Unidos, com nova introdução do autor, professor de História da Universidade da Califórnia – Los Angeles (UCLA). Em meu exemplar havia poucas anotações, mas curiosamente em algumas colocara v + t, o que significa “verificar mais tarde”. Fiquei feliz ao encontrá-lo, e foi o livro uma de minhas companhias nos gélidos dias europeus.
A obra apresenta, tantos anos após publicado, adequação à nossa realidade. Se bem que focado nas consequências que a estrutura acadêmica trouxe ao pensar dos intelectuais americanos, e a massacrante maioria das citações refira-se aos pensadores e professores daquele país frente a crises político-sociais e acadêmicas, os argumentos apresentados por Russell Jacoby bem poderiam ser transplantados, guardados costumes e geografias, para o meio intelectual público e universitário do ocidente como um todo.
A orientação básica do livro leva a uma encruzilhada. Na primeira metade do século XX, a liberdade dos intelectuais americanos, especialistas em Sociologia, Filosofia, Artes, Jornalismo, Política Internacional, Economia – mesmo ao considerar-se dificuldades financeiras para muitos – propiciava-lhes o acesso, como meio de subsistência, a jornais, revistas, livros, publicações outras e conferências, estando diuturnamente em contacto com o público interessado. A criatividade era fruto da independência do pensar. Sob outro aspecto, reuniam-se em restaurantes, bares, participavam de contactos sociais sem amarras, e a permanente troca de ideias enriquecia o pensamento livre. Havia uma vida boêmia, indispensável ao fluxo do pensamento, que provocaria a permanência na história de tantos brilhantes intelectuais americanos. Greenwich Village é mencionado muitas vezes como espaço para o livre trânsito do pensar. Se na época da depressão, ou bem mais tarde, em pleno macartismo – patrulhamento que se estendeu aproximadamente de 1940 a 1955 nos Estados Unidos -, houve cerceamento em tantas esferas, muitos dos pensadores nascidos nas fronteiras dos século XIX-XX continuaram fiéis a desideratos que se apresentavam como estandartes. Teria sido a partir dos anos 50 que “os intelectuais se incorporaram a instituições estabelecidas ou se reciclaram” segundo Jacoby.
Crítico agudo da estrutura da universidade voltada aos trabalhos acadêmicos pragmaticamente direcionados, mormente a partir do fim da Segunda Grande Guerra, Jacoby entende em seu livro que a necessidade da sobrevivência, a garantia de uma aposentadoria, a certeza das férias prolongadas atraíram jovens e aqueles que, por motivos os mais díspares, buscavam a segurança. Se a universidade proporcionava uma vida mais tranquila, sob outra égide seria a fonte da luta pelo poder, da criatividade cerceada, pois a agradar pares, acólitos e àqueles que pudessem, de alguma forma, servir de trampolim a carreiras que se pronunciavam. Em outro direcionamento, preocupa-se com o jovem que, ao entrar na carreira universitária, mostra-se prudente e distancia-se de textos polêmicos, visando à estabilidade. “Quando por fim a posição requerida e a segurança forem atingidas, o talento, e até o desejo, de pensar intrepidamente há muito terá atrofiado”, observa Russell Jacoby. Menciona Robert A. McCaughey que, em seu livro A Chapter in the Enclosure of American Learning, observa que, para o jovem acadêmico, escrever para um público extramuros significava “arriscar que o considerassem insuficientemente sério”. Essa assertiva seria uma das causas do hermetismo da escrita de tantos docentes. Jargão universitário, por vezes incompreensível, certeza da aceitação entre os pares, mas ruptura com o leitor que busca a clareza. Fazendo-se um parênteses, vale lembrar o célebre artigo do professor de física Alan Sokal, Transgredir as fronteiras: em direção a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica, publicado em 1996 na revista americana de estudos culturais Social Text, no qual o autor, em forma de paródia, constrói o texto a partir de citações prolixas de respeitados intelectuais americanos e franceses. A abundância de conceituações e termos utilizados mostrar-se-ia ininteligível para um leitor habitual da temática. Escreveu, sabendo que o artigo não tinha compreensibilidade. A dimensão resultou naquilo que seria denominado “Embuste de Sokal”. Logo após, o autor e Jean Bricmont escreveriam o livro Impostures Intelectuelles (Paris, Editions Jacob, 1997, 276 págs), ratificando suas posições a respeito do complicado léxico intelectual. Todo o imbroglio levantado serviria de alerta aos cultores da prolixidade, assim como aos que acatam conceitos de estranho entendimento, tantas vezes sem refletir.
Citando autores de grande experiência no mundo intelectual americano, Russell Jacoby penetra igualmente em área extremamente polêmica e que estaria a apontar para aquilo que hodiernamente se nomeia edição crítica. É ela importante? Sim, fundamental para o entendimento de um autor. Contudo, não poucas vezes pode ter origem na necessidade de aglutinamento de docentes visando a subvenções polpudas. Ou seja, a origem essencial estaria a ser maculada por intenções outras. Nesse item, escrito em 1987 por Jacoby, não se encaixariam determinados projetos temáticos acatados pelas instituições de fomento? Lewis Munford, intelectual nascido nas fronteiras dos séculos XIX-XX, ficaria estarrecido ao encontrar em 1968 nova edição de seu autor preferido, Emerson, publicada pela Harvard University Press. A edição crítica dos diários do pensador americano, nessa nova versão, fora aprovada pela Modern Language Association. Jacoby comenta: “Equipes de acadêmicos haviam transmutado a prosa fluida de Emerson em lama. Em nome da exatidão, os bons professores assinalaram todas as divergências insignificantes entre os diversos sinais diacríticos diferentes, que se tornaram parte do texto impresso e que, segundo Munford, ‘são lançados como cuspe no leitor, não apenas para indicar supressões, inserções ou variantes, mas também coisas não recuperadas, coisas suprimidas não recuperadas, manuscritos acidentalmente mutilados e até rasuras’.” Outro intelectual respeitado, Edmund Wilson (1895-1972), criticaria a edição das obras de Mark Twain encabeçada por trinta e cinco estudiosos e patrocinada pela Modern Language Association. Dezoito deles estavam “lendo Tom Sawyer de trás para a frente, para verificar, sem se distraírem com a história ou o estilo, quantas vezes ‘Aunt Polly’ foi impresso como ‘aunt Polly’ ”, comenta Wilson. Houve respostas “poderosas” defendendo as instituições, mas conclui Russel Jacoby: “Enquanto as universidades esbanjavam verbas em pesquisas e edições eruditas ilegíveis, muitas vezes de livros ou autores sem interesse, não se encontravam nas livrarias edições utilizáveis e baratas de textos americanos fundamentais. Para Wilson, isso demonstrava que o empreendimento acadêmico havia se tornado totalmente inútil”.
Observado por outros ângulos, o comprometimento dos textos acadêmicos com toda a entourage da universidade apresenta características próprias. Uma das mais exploradas é a nota de rodapé. Serve ela para referendar pesquisa realizada, a evidenciar possível erudição daquele estudioso ligado à instituição. As fontes que dão vida à nota de rodapé representam a esperança da aceitação acadêmica pelos pares, o que resulta em provável ascensão. Acredito ser a n.r. o verdadeiro DNA da pesquisa, revelador da vocação de um docente para estudos aprofundados, para o circunstancial apenas, ou para o carreirismo tão sómente. Bibliografia competente é quase sempre atestado de um pesquisador competente. Russell Jacoby penetra fundo nesse tema e cita John Wiener: “Se o índice de citações se tornar uma base para a promoção e a estabilidade, para subvenções e bolsas, as implicações para as próprias notas de rodapé de um autor são claras. No mercado das idéias, a nota de rodapé é a unidade monetária. […] Um autor deve certamente citar seus amigos […] e fazer o que for possível para que eles o citem em retribuição. […]” Jacoby é contundente ao concluir: “Por isso, compensa não apenas citar os outros em notas de rodapé, mas planejar a própria pesquisa de modo que ela se entrelace com as contribuições de outros; eles se referem a você assim como você se refere a eles. Todos prosperam com os estudos açucarados”. Curiosamente, tão logo findas determinadas dissertações ou teses, e tendo o docente atingindo seus objetivos, autores abundantemente citados, mas que não mais são entraves ou propulsores à ascensão, desaparecem de suas preocupações como em passe de mágica. Os trabalhos acadêmicos qualitativos são mencionados em novas teses, e quão mais um autor for citado – fazem estatísticas (sic) – e figurar como líder, mais será procurado por colegas ou pelos que ascendem à vida universitária. Não sejam esquecidos os textos medíocres, assinados que foram por acadêmicos que detêm poder. Igualmente tornar-se-ão “referenciais” (sic) e serão citados por determinada categoria de pós graduandos ou docentes. Um artificialismo está criado, e nas universidades americanas, assim como nas de cá ou de alhures, proliferam trabalhos na Academia que são esquecidos tão logo findos. A corroborar as inserções mencionadas, Russell Jacoby menciona John Dewey, que escreve: “ A cela monástica se tornou um salão de palestras profissionais; uma multidão interminável de ‘autoridades’ tomou o lugar de Aristóteles. Relatórios anuais, monografias e publicações sem fim ocupam o vazio. […] Se os antigos escolásticos mais velhos gastavam seu tempo de trabalho apagando o texto de velhos manuscritos […] o novo escolástico […] critica as críticas com as quais outros escolásticos criticaram outras críticas. […]” E todo o quadro, a demonstrar estranho entrelaçamento, estaria configurado. Almoxarifados à antiga ou bancos de dados atuais acumulam quantidade desmesurada de monografias, dissertações e teses que jamais serão consultadas depois de suas defesas (vide O Drama da Pós-Graduação – O Perigo do Circunstancial Endêmico, 21/06/07).
Russell Jacoby igualmente penetra no polêmico campo da burocratização acadêmica excessiva e da infiltração de empresas, camufladas ou não, nas universidades, nem sempre com interesses altruístas, o que possibilita a presença da corrupção nas instituições. Menciona Robert Nisbet: “Surgiu um verdadeiro jet set acadêmico, para suscitar inveja – e rivalidade. […] Eu acredito firmemente que as subvenções diretas do governo e das fundações aos membros individuais do corpo docente da universidade, ou a pequenos grupos de membros do corpo docente, com o propósito de criar institutos, centros, serviços e outras empresas essencialmente capitalistas dentro da comunidade acadêmica, são isoladamente os fatores mais poderosos de mudança que podemos encontrar na longa história da universidade”.
O livro Os Últimos Intelectuais permanece atual. Os sintomas apontados pelo autor, referentes basicamente aos Estados Unidos, são sentidos há décadas em nossas terras. O pensamento livre, criador, que permaneceu na história dos intelectuais americanos que adentraram alguns lustros após os anos 50, transformar-se-ia no pensamento conduzido, pragmático, a visar objetivos acadêmicos claros. Em termos brasileiros, relatórios sempre mais complexos e pedidos de subvenções a explicar o último centavo estão prioritariamente a se misturar com o verdadeiro sentido dos estudos aprofundados. São uma das muitas consequências a tornar o intelectual docente menos conhecido do público, mas “reverenciado” na Academia. Se pensadores fora da vida universitária continuam a retratar o mundo sem amarras, buscando contudo o grande público por impulso histórico, nem por isso deixam de ser vistos, tantas vezes, como estranhos ao meio acadêmico. Russell Jacoby observaria, como conclusão, que “o perigo de ceder a um novo latim, uma nova escolástica isolada da vida do grande público, torna o futuro cada vez mais sombrio. Embora os jargões profissionais e arcanos possam ser um refúgio e uma necessidade, podem ser também uma desculpa e uma fuga. […] Não há dúvida de que o desaparecimento dos intelectuais públicos reflete a recomposição do próprio público; coincide com o enorme sucesso da televisão, a expansão dos subúrbios, a deterioração das cidades, o inchaço das universidades”.
A obra Os Últimos Intelectuais foi escrita antes do advento da internet, que apenas intensificou tendências. Em texto de Janeiro de 2008, Jacoby afirma que escreveu seu livro digitando em sua electric typewriter. Nesse artigo, comemorativo dos 20 anos de The Last Intellectuals, o autor escreve sobre o papel da informática: “Não é difícil perceber que a internet alterou realidades culturais. Escritores – incluindo professores – podem escapar de editores e pareceristas com poder de censura criando seus próprios blogs. A internet oferece a todos um púlpito eletrônico. Tudo é válido. O intelectual à antiga, escrevendo um livro ou um ensaio, pode estar tão deslocado quanto um cavalo e uma carroça”. Contudo, no mesmo texto, Jacoby considera que, apesar de ficarem arquivados, muitos artigos e blogs produzidos rapidamente para a internet são esquecidos na sequência.
Mais e mais em nosso país, dossiers universitários são solicitados, a atender a evolução da informática. Complexos sistemas estão constantemente sendo criados, inviabilizando os anteriores. Ao invés da simplificação, aumenta-se o imenso controle sobre toda a atividade do docente, bem mais fácil de ser monitorada através da internet. Os currículos, obrigatórios para as instituições de fomento, tornam-se verdadeiras dissecações a que um professor é submetido e uma das causas da corrida frenética em direção à produção. Tudo é computado e tem graus percentuais: artigos em revistas nacionais ou internacionais arbitradas; livros publicados; papers apresentados em congressos, simpósios, seminários ou colóquios; palestras e conferências; participação em bancas; funções administrativas ligadas à área universitária e quantidade de outros quesitos. O pensar criativo, não pressionado, dá lugar ao prazo inflexível e à pontuação de uma realização. Ter valor ou não pouco importa, na medida que os pontos de aferição, responsáveis pela ascensão na carreira e possíveis acessos a bolsas e subvenções pretendidas por docentes, estejam garantidos. A avaliação universitária não estaria próxima, nos últimos tempos, à avaliação de produtividade de qualquer empresa, friamente realizada? Na universidade é o produto intelectual ou administrativo acadêmico; na empresa, o que leva ao desempenho no mercado de uma ferramenta, de um carro, de um sabonete… Se tantos professores ainda mantêm ideais e produção competente, se tantos outros pensadores extramuros estão a criar na independência que exclui amarras, nem por isso o profético livro de Russell Jacoby, anterior ao boom da informática, deixa de revelar o peristilo de possível hecatombe. No mínimo, leva à reflexão.

In 1992 I bought the book “The Last Intellectuals”, written by Russell Jacoby, Professor of Philosophy at the University of California – Los Angeles (UCLA), and read it almost in speed reading. I came back to it again in 2009 just to confirm that, more than 20 years after it was first published, this polemic analysis of the growing irrelevancy of some areas of academic prose did not weaken with time. On the contrary, it only grew stronger. Jacoby’s argument is that today’s intellectuals are clustered in universities, eagerly seeking financial support from Research Foundations, producing works often written in obscure language and read chiefly by their own peers. Many are moved above all by the need of material security, self-serving objectives, rampant careerism. In Jacoby’s view, nonacademic intellectuals, capable of an accessible dialogue with a general audience, belong today to a distinctive category that seems in crisis. This is true, I believe, not only in the USA, but in the Western World in general. A prophetic book, unveiling the beginning of a possible collapse of the academic culture.

Opções que se Apresentam

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Depois, há outra coisa importante a considerar:
a gravação trouxe exigências tais na execução
que elevaram esta a um nível que por via de regra
nos garante estarmos a ouvir obras interpretadas
nas melhores condições pelos conjuntos ou solistas
mais qualificados – e não é certamente este um dos
menores préstimos de que somos devedores ao disco,
esse “humanismo que bem mereceu do Espírito”,
no justiceiro dizer de André Coeuroy.

Fernando Lopes-Graça (1953)

Estava a conversar com uma amiga sobre minha recente viagem, recitais e o lançamento de mais um CD. Christina repentinamente me questiona: “há gravações suas ao vivo?” De meus 19 CDs gravados no Exterior, apenas umas poucas faixas registradas em Moscou ao vivo, no longínquo 1962, foram vertidas para CD. Após 5 LPs gravados no Brasil nos anos 80, sempre em condições insatisfatórias, somente em meados da década de 90 iniciei as gravações na Europa. Em teatros e estúdios, na Bulgária e em Portugal, mas sobremaneira na mágica capela Sint-Hilarius em Mullen, na Bélgica Flamenga, essas últimas sob a supervisão técnica desse extraordinário engenheiro de som que é Johan Kennivé. Um mestre absoluto. Muitas vezes, apresentações ao vivo foram registradas, mas por falta de interesse de minha parte não foram traduzidas para CD. É também uma questão de preferência, ou de estilo.
Nada tenho contra as gravações ao vivo. Representam elas o pulsar momentâneo no instante do acontecido, pressionado pela situação, pela reação do público, pela empatia que se tem pelo local onde nos apresentamos. Anteriormente já abordara quais as reações que um intérprete pode sentir antes e durante uma apresentação (vide O Medo do Palco – Problemática e Possíveis Soluções, 04/10/08). Dependem de tantos fatores!
Quanto à gravação sem público, entendo ser uma forma onde a responsabilidade e o preparo devam ser outros. Maiores ao meu ver; diferentes, sem dúvida. A gravação ao vivo pode admitir pequenas incorreções. Elas existem e são perdoáveis. Sob outra égide, a colocação dos microfones em um espetáculo com sala plena é feita aprioristicamente. Haverá sempre alteração sonora durante o concerto, por pequena que seja, devido à presença do público, suas vestimentas, ruidos orgânicos por vezes incontroláveis… Nos registros fonográficos sem público, anteriores à segunda metade do século XX, podem-se perceber falhas do intérprete, pois havia geralmente uma só captação sonora, por ser o processo extremamente dispendioso àquela altura. Entretanto, nestas últimas décadas a gravação, apenas frente ao instrumental que deverá captar o som, evoluiu muito e encarrega-se de transmitir a verdade sem concessão, pois de inteira responsabilidade do intérprete. Daí entender que, se possível for, só deve ser feita em condições excepcionais de tomada de som e na utilização do instrumento, o melhor que houver. Dessa maneira, a prévia preparação realizada pelo intérprete, a buscar esse desiderato último, estará sendo contemplada. O nosso de profundis tem de fluir inteiramente. Conditio sine qua non. O meu dileto amigo e professor de guitarra na Academia de Amadores de Música de Lisboa, António Ferreirinho, escreveu-me recentemente: “Um dia perguntaram ao escritor António Lobo Antunes se um dado romance seu tinha alguns aspectos autobiográficos. Ele respondeu simplesmente que tudo o que um escritor escreve é autobiográfico. Isto vem a propósito do CD dedicado a Fauré… Voltando ao Lobo Antunes, diria que todos os CDs do José Eduardo são autobiográficos. Tudo aquilo que o José Eduardo é está lá.” Esse conteúdo intrínseco, observado por generoso amigo, intransferível, fronteiriço ao limite individual, tem de estar presente. Somos nossos acúmulos. Quando ouço uma gravação, sinto se o intérprete transmite. Tudo está presente. É só estar aberto aos eflúvios que o registro tem de conter em sua essência. Se o executante mostra-se apenas um hábil instrumentista, sem penetrar no âmago da criação, desde logo foge-se do que deve ser exposto, dito, interpretado. Ouvidos sensíveis sabem distinguir. Sempre. Habilidade sem anima é como um prato sem tempero.
Christina insiste: “Você guarda gravações de recitais antigos ou recentes?” Sim, respondi. Quando, por motivos ligados a determinada organização, o recital é gravado, recebo quase sempre o resultado e ouço pelo menos uma vez. Serve como parâmetro, essencial para aperfeiçoamentos. O caminho do intérprete não tem fim. Não obstante o fato, prefiro sempre a gravação realizada sem o público. É também lenda não poder o instrumentista transmitir toda a emoção diante apenas de “frios” microfones. Considero que a alma penetra, sim, naqueles pequenos receptores de sons que estão a captar tudo. Nosso interior é insondável, mas o que temos a dizer através dos sons deve fazer parte de nosso respirar.
Já estávamos a tomar café em um desses pequenos recintos na nossa Brooklin-Campo Belo e Christina volta ao tema fulcral. Ela sentia, nas gravações ao vivo, essas pequenas incorreções, mas gostava de participar das tosses, pigarros e aplausos presentes nessas tomadas diretas. É como se estivesse in loco. Citei Glenn Gould que, precocemente, não mais se apresentou em público, gravando apenas em locais vazios. Essa opção tem de ser considerada. Depende muito de cada intérprete verificar qual o veículo que melhor se adequa aos seus propósitos. Se ele se apresenta poucas vezes, como no meu caso, a escolha tem lá seus fundamentos. Christina pareceu compreender meu posicionamento, rigorosamente pessoal, favorável à gravação sem público, acrescentando que também gostava imenso delas. O café selaria um acordo, pois. Desde logo entendemos serem válidas as duas categorias e que o importante é a transmissão da mensagem musical, não importando o veículo.

Gent. Recital de J.E.M. no Parnassus. Painéis pintados por Boris Chapovalov. Foto:Tony Herbert, 14/02/09.

Tendo interpretado os dois cadernos de Images de Debussy no recital do dia 14 de Fevereiro último em Gent, na Bélgica, e sabedor de que Cristina é fiel leitora de meus posts, insiro, no presente, o segundo caderno dessa excelsa coletânea que tem como peças: Cloches a travers les feuilles, Et la lune descend sur le Temple qui fut e Poissons d’or. A gravação foi feita ao vivo em antiga igreja dominicana, hoje Parnassus, sobre o patrocínio da De Rode Pomp, recital este em benefício da Unicef. O piano, um Bösendorfer de ¾ de cauda.

Clique aqui para ouvir na interpretação de J.E.M. o 2o caderno de Images de Claude Debussy. Gravação ao vivo realizada em Gent, Parnassus (De Rode Pomp), 14/02/09.

On the differences between performing in the intimacy of a recording studio or at a concert hall before an audience.