Imanação Imprevisível
Au fond de l’inconnu pour trouver du nouveau!
Charles Baudelaire
Estamos permanentemente sujeitos ao inesperado. Pode surgir de maneira indesejada a ser esquecida, do momentâneo olhar a um acontecimento qualquer, ou de uma leitura que jamais poderíamos imaginar. Fato instantâneo, flashes que ficam registrados e que servem às lembranças, quando a somatória dos anos se faz presente. Todos têm o que contar, pois uma das salvaguardas do homem é poder reter esses instantes, por vezes rápidos como um raio, mas que não serão esquecidos. Integram o nosso acervo relacionado ao acaso, à coincidência, ao absurdo ou à dádiva. É todo um conjunto de situações vividas, que proporciona um tipo de tempero, que também pode ser amargo, à existência.
Recentemente em Gent aconteceu um desses momentos imprevisíveis, que me fez lembrar de outro vivido na Bulgária. No instante do acontecido experimentei fugidiamente uma ação que fora acalentada durante muito tempo pelos verdadeiros personagens. Nas duas oportunidades, senti-me o figurante de uma peça, fazendo uma “ponta” relâmpago. Naquelas frações de tempo fui integrante de grupos alegres e festivos.
Em fins do verão de 1997 estava na Bulgária, a fim de gravar a integral para tecla de Jean-Philippe Rameau. Após a gravação, que se prolongou por várias dias na Sala Bulgária, fui convidado por colegas músicos de Sófia a conhecer o extraordinário Monastério de Rila, distante cerca de 200km da capital. Ainda escreverei sobre essa magnífica construção situada nos Cárpatos. No regresso, em um fim de tarde muito quente, passamos por uma pequena cidade e, frente à estrada, realizava-se a dança de um casamento. Encantei-me com a situação, desci do carro e estive a observar e ouvir com atenção sons de kaval (flauta típica), gaida (gaita de fole), sanfona, tambura (lembra a guitarra), clarinete, gadulka (do tamanho de um violino, mas colocado sobre as pernas) e, ditando o ritmo da música, a tarola (parecida com uma pequena bateria). Uma senhora de baixa estatura que estava a dançar, ao ver-me interessado, estendeu-me a mão convidando-me a participar. Fi-lo prazerosamente durante cerca de um minuto. Logo após já estava na estrada de retorno a Sófia. Qual o tempo para que aquela cena de casamento se processasse? Meses, anos? E não como um intruso, pois “convidado”, senti a imanação que era irradiada pelos participantes.
Em Gent, algo inusitado aconteceu. Acabara de almoçar no centro da cidade com o meu grande amigo Tony Herbert (vide Tony Herbert – TTTT e O Saber Viver, 12/04/08) quando, ao regressar, vimos mais de uma dezena de moças que passeavam a cantar. Tinham uma réplica de televisão – com direito a antena – sobre as cabeças. Uniformizadas, causavam espanto, em especial aos turistas. Tony explicou-me que, tradicionalmente, alunos que estão há cem dias de findar o curso secundário fazem festas variadas, inclusive alegóricas. Aproximei-me no instante em que subiam as escadas para apresentação em recinto público. Ia tirar uma foto, quando as alunas me chamaram para integrar o grupo. Como estavam a cantar, pedi então que repetissem o final da canção. Fizeram-no duas vezes e, juntamente com essas saudáveis meninas, cantei as notas finais, sob a câmara de Tony. Despedimo-nos, e o amigo e eu continuamos o nosso regresso descontraídos, não sem antes ter dado boas risadas. A foto de Tony evidencia esse feliz momento.
Para que flashes como esses ocorram, é necessário que estejamos minimamente curiosos e abertos às surpresas. O inusitado sempre desperta a atenção. No dia seguinte, aquele do recital em Gent, na acolhedora morada dos TTTT, meu lar na cidade, abri a janela do quarto naquela gélida manhã e tirei a foto desse local mágico. Gaivotas, patos, marrecos, gansos e um casal de cisnes sobrevoavam ou deslizavam pelas águas tranquilas. Respirei o ar frio, fiz a ginástica sueca matinal e, durante os exercícios, lembrei-me da divertida cena da véspera. Senti naqueles instantes que transmitiria, à noite, a mensagem musical que me levara à cidade. E ela se deu.
Chance encounters I will never forget: a dance at a wedding in a small city in Bulgaria and school girls dressed with TV set costumes in Belgium. Funny moments that happen only when we are open to surprises, what includes being curious about other people, events and a drive to learn new things.