Navegando Posts publicados em abril, 2009

Quando Apropriações Estranhas Criam Distorções

O Criativo. Desenho de Luca Vitali. Abril de 2009. Clique para ampliar.

O espaço e o tempo são formas da criação,
sensações – seu conteúdo…
Eu quero criar, e pela vontade, criar o múltiplo,
o múltiplo no múltiplo e o único no múltiplo (o não-eu e o eu)…
Eu desejo a ação, eu quero me saciar dessa ação.
A ação é criação – criação de novo – diferenciação – individualização…
Criar alguma coisa significa criar tudo.

Alexander Scriabine

Tem-se em nosso país o hábito, em certas camadas da sociedade, da apropriação de determinados termos pertencentes às mais variadas áreas, “institucionalizando-os”. Revela esse uso, por parte daqueles que utilizam vocábulos reinterpretados, a pobreza quanto ao conhecimento do vernáculo e a necessidade de evidenciar a apreensão dos modismos. Os integrantes dessas categorias reverenciam pares e outros personagens, a haver reciprocidade.
Palavras de áreas específicas são por analogia transplantadas para determinado contexto, e aqueles que as utilizam com outras roupagens exploram ad nauseam o vocábulo incorporado. O significado tradicional do termo, agora fantasiado com tantos panos estranhos, passa a ter doravante seu sentido original negligenciado. Outrora estaríamos diante de heresias, que apenas não ocorriam pelo devido respeito à linguagem de determinado povo. Substantivos tornam-se verbos, palavras características de outras áreas travestem-se em vestimentas multiaplicáveis. Nestas últimas semanas, os vocábulos tóxico (adjetivo) e toxidade ou toxidez (substantivos) passaram a ser empregados por um sem número de economistas repletos de “sabedoria”, no desiderato de explicar a crise que se alastra pelo mundo. Anteriormente, os mesmos senhores utilizaram “artigos podres” para designar outra anomalia. A aplicação é bem vista pelos pares, e entrevistadores e entrevistados não se cansam de repetir as “palavras-chave”. Todos falam com seriedade e o ouvinte menos atento concorda como se o oráculo lá estivesse. Os vocábulos ficam incorporadas ao léxico nessas novas interpretações que lhes são “outorgadas”. Também outros, como alavancar, inicializar, laborista, grade (para designar partitura, cerceando de fato o elevado significado original), assim como plugar e deletar servem para “enriquecer” textos e discursos nas mais distintas áreas. À maneira de um camaleão, as mais diversas colorações surgem a partir das palavras eleitas. O trinômio verbo-substantivo-adjetivo funde-se numa parafernália sem fim. Entrevistados tornam-se os arautos da língua-mãe em ebulição estranha. Sem esquecer de quantidade de termos em inglês, massacrantemente expostos no original, este pertencente ao universo globalizado. Se fizerem estatísticas quanto à utilização nos últimos meses, em todos os meios de comunicação, dos vocábulos commodities e spread, como meros exemplos, certamente ficaríamos estarrecidos.
Há cerca de um mês fui ao lançamento de um livro. Apresentaram-me a um cidadão, figura destacada em firma de publicidade e marketing. Após poucos segundos de amenidades próprias a essas circunstâncias, incorpora-se ao pequeno grupo um seu companheiro de trabalho, por ele introduzido na conversa como criativo da empresa. Perguntei-lhe: “criativo”? Sim, respondeu-me. Silenciei. Semanas após, ouvindo pelo rádio um dos noticiários matinais, exibiram trechos de longa entrevista com outro profissional de publicidade e marketing, anunciando-o como “O” criativo de determinada empresa. Reiteradas vezes o especialista focalizado referiu-se a si próprio, com ênfase e galhardia, como “criativo”.
Consultando o célebre Dicionário Moraes da Língua Portuguesa, de 1889, tem-se “Criador, a, substantivo. O que dá o ser tirando do nada. Deus, o criador do mundo. § (Por ext.) O inventor, o primeiro autor.” O Caldas Aulete (1968, 5º edição) completa: “Inventivo, um talento criador. Do latim Creator.” No termo “Criar”, o Moraes contempla “v. trans. verifica-se entre outras aplicações: criar um gênero literário”, e mais: “§ Criar um papel; diz-se do ator que dá a um papel que representa pela primeira vez uma interpretação original e feliz”.
Apesar de propagada a palavra entre publicitários, acredito estejamos diante de uma atitude a configurar apropriação indevida. À força da repetição continuada, mais e mais o termo “criativo” é atribuído a uma categoria de profissionais que não obstante o grande mérito de tantos deles, deveria ater-se aos vocábulos de suas reais qualificações, ou seja, especialistas em marketing e propaganda, ou ainda diretor de criação, editor de arte, gestor, redator, como alguns pouquíssimos exemplos. Digo apropriação indevida, pois entendo como um capitis diminutio interpretativo dessa palavra a sua aplicação como substantivo, o que pretensamente nivelaria os transformadores do termo criativo aos luminares da própria criação. Leonardo da Vinci, Beethoven, Goethe, Charles Chaplin, Picasso, Debussy, Auguste Rodin, apenas para situar poucas figuras paradigmáticas, foram absolutamente criativos.
O publicitário, ao atribuir-se o vocábulo, não estaria minimizando a própria qualidade de reflexão, ao considerar-se acima da conceituação sacralizada das palavras criação e criador?
Determinadas religiões têm Deus como Criador, e a natureza, o homem, a mulher teriam surgido como criações decorrentes. O extraordinário compositor russo Alexander Scriabine (1872-1915), ao se considerar um criador, imbuíra-se conscientemente do fato. Escreveria sobre o grande Eu (ato de compor) a contrapor-se ao pequeno eu do cotidiano que lhe era necessário. O idealismo fê-lo sentir-se um Messias. Nesse mister, foi caso isolado, mas suas concepções a respeito da criação influenciariam decididamente a evolução de sua escrita musical voltada à ascensão de toda a humanidade em direção à comunhão com o Cosmos.
Já estava a pensar no presente post, quando encontrei o dileto amigo Luca Vitali, excelente artista plástico ( www.lucavitali.com ). Trocamos idéias sobre o tema. No mesmo dia, Luca enviou-me espontaneamente o desenho que ilustra o texto. Se de um lado a figura revela a magia que vem de nosso imaginário lúdico, sob aspecto outro pode servir às mais variadas interpretações… Criativa lembrança.
O termo criativo teria de ser aplicado sempre àquele que descobre, inventa, cria. Nenhuma necessidade de torná-lo um substantivo particularizado a explicar uma atividade profissional específica e limitada. Deve integrar a ação, não ser a ação. Pessoas simples, mas talentosas, estão diuturnamente criando soluções as mais inusitadas. Criar é parte integrante do homem que pensa. Descartes afirmaria: je pense, donc je suis. A grandeza do pensar estabelece a fixação na história daqueles que ultrapassaram barreiras. Assim como todos pensam e a todos é permitido criar, uma das salvaguardas de perpetuação do ser pensante é traduzir, através dos milênios, incomensurável quantidade de idéias em inventos e descobertas. Contudo, há criação e criação em gama infinita de valor, e o respeito àqueles que em todos os domínios chegaram a criar e a permanecer na história impede-nos de vulgarizar a palavra. Valor intrínseco, não poucas vezes extraordinário, existe na propaganda e marketing, mas a mínima reflexão evidenciaria exagero no emprego de criativo como profissão especializada.
Se o nosso vernáculo é tão rico, se termos estão à disposição para as mais diversas atividades, a apropriação de palavra que especifica um ato tão nobre reduz inclusive a capacidade da verdadeira dimensão do homem de propaganda e marketing, banaliza a conceituação tão precisa do vocábulo, cerceando-o em compartimento estreito. Atribuir-se a primazia da criatividade é no mínimo entender mal palavra tão abrangente. Esperemos que, à força da repetição indevida, não nos esqueçamos do verdadeiro e autêntico significado da palavra criativo.

Old words, new meanings: a reflection on the appropriation of certain words by professionals of different areas, who grant them a new, “expanded” – but not always suitable – meaning, that soon finds its way into the idiom.

“Do Canto Gregoriano ao Sintetizador”

A música expulsa o ódio daqueles que não têm amor.
Ela traz paz aos que não têm repouso,
consola os que choram.
Aqueles que se perderam encontram novos caminhos,
e os que recusam tudo encontram confiança e esperança.

Pablo Casals

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Quando do blog referente ao ótimo livro do compositor Gilberto Mendes (vide “Viver sua Música – Com Stravinsky em meus ouvidos, rumo à avenida Nevskiy”, 28/03/09), considerava o respeito que sempre tive pelos textos competentes sobre música, nos quais o autor, ao exercer igualmente a atividade prática musical, seja em qual segmento for, demonstra conhecimento pleno da escrita particularizada do universo sonoro. Compositores, intérpretes e musicólogos, quando se dirigem voluntariamente para o texto passível de ser lido por todos, pois sem a ininteligibilidade – para muitos – da partitura, podem revelar o domínio da área sem amarras, a depender obviamente do talento para o mister e da cultura adquirida através da trajetória. Há livros e livros escritos por competente músicos, mas muitos deles direcionados a conhecedores, pois podem envolver análises ou conceituações difíceis para não iniciados. Todavia, quando a obra tem caráter de divulgação de conhecimentos para o público em geral, mais importante ainda que o texto transparente esteja estruturado em sólida cultura musical, salvaguarda contra equívocos, por vezes constrangedores. Acabo de ler o livro de Júlio Medaglia (Música Maestro, – Do Canto Gregoriano ao Sintetizador. São Paulo, Globo, 2008, 355 págs). O subtítulo da obra já apresenta empreitada de dificílima resolução, mormente pela abrangência do quadro, a abordar o desenrolar da música ocidental a partir do cantochão, expressão maior da cristandade.
Júlio Medaglia, um dos músicos mais completos deste país, maestro, compositor, arranjador, comunicador, nasceu em São Paulo em 1938. Ainda na juventude ingressou na Escola Livre de Música, onde teve a orientação de Hans Joachim Koellreutter. Adquiriu posteriormente sólida formação na Alemanha, quando estudou com o lendário regente sir John Barbirolli, cursando os festivais de música contemporânea de Darmstadt com Karlheinz Stockhausen e Pierre Boulez. O trabalho com ilustres mestres é garantia de boa estrutura, embora não necessariamente de bons frutos. Medaglia é exemplo típico daquele que deu resultado. Poucos podem orgulhar-se de ter perpassado como regente o grande repertório tradicional, a música contemporânea e ter sido o expert dos arranjos do movimento tropicalista. A experiência como professor em várias universidades e seus deslocamentos permanentes para apresentações no Exterior são inequívocas referências. Lembremo-nos, igualmente, da excelência de Medaglia como comunicador.
De posse de toda essa bagagem, primeiramente escreveria Música Impopular (São Paulo, Global, Coleção Navio Pirata, 1989), do qual redigi resenha para o jornal “O Estado de São Paulo” (Cultura, nº 454, ano VII, 08/04/89, pág.9).
Os vinte anos que separam os dois livros merecem um comentário. Se na obra de 89 Júlio é provocativo, ousado nas críticas – endosso-as plenamente – a determinadas situações da música atual, erudita ou popular, em Música, Maestro! pode-se perceber o músico-pensador instigante, mas destilando a competência com serenidade. Todos os capítulos, desde o destinado à Antiguidade até o da música contemporânea, são descritos sem qualquer constrangimento ou amarras acadêmicas. Um passeio pela História. A intenção do livro é nitidamente a de divulgar com competência a trajetória da música ocidental, daí o primeiro passo para a liberdade do pensar não limitada a período específico, autor e obras, tão caros à Academia. Ratifico, discorrer sobre a História da Música, tarefa dificílima, torna-se em Música, Maestro! leve, palatável, competente e a atender ao leigo, ao estudante e ao músico. Que contributo extraordinário não seria se fosse o livro adotado na universidade, quando muitas vezes o “ranço” da erudição torna nebuloso o entendimento da evolução histórica da música, distanciando o aluno, em não poucas oportunidades, de um interesse frutífero pela matéria.
Júlio Medaglia tem o dom da comunicação direta, sem artimanhas, sem o linguajar que possa suscitar dúvidas ou a busca aos léxicos. Lê-lo discorrer sobre passado e presente, como se estivesse a sobrevoar solo familiar, é a comprovação do conhecimento estruturado em raízes profundas. Os capítulos referentes à polifonia (de 800 a 1600) estendendo-se ao estilo clássico (de 1750 a 1820) oferecem informações rigorosamente transparentes, sem a menor necessidade de aprofundamentos tantas vezes inintelegíveis. O estilo romântico (de 1820 a 1900) é abordado numa concentração nos autores fundamentais, desenvolvimento das formas, gêneros. Focaliza ópera, opereta vienense, canção-solo, criações para orquestra, música de câmara, e a ascensão do instrumento solo. “A música para piano liderou a criação musical no século XIX, chegando, em meados desse período, a superar até mesmo a orquestral” como afirma. Uma sinopse dos principais compositores do século XIX e a inclusão do ballet e a sua real importância concluem esse capítulo, que relata período tão caro aos aficionados. O século XX é uma das muitas especialidades de Júlio Medaglia. É instrutivo ler suas considerações sobre escolas composicionais, estilos, autores, sempre com a mais absoluta firmeza.
Ao considerar a música brasileira, percorre-a do erudito ao popular. O povo e suas manifestações, características regionais e gêneros são percorridos por quem viveu momento crucial, verdadeira encruzilhada, que foi o período do movimento tropicalista.
Comentava sobre o respeito que sempre tive pelo texto competente escrito pelo profissional de fato e de direito. Ao escrever um subcapítulo, “Nasce o Maestro”, Júlio Medaglia dá uma verdadeira aula (págs. 87-90), e o leitor capta a sensível percepção daquele que deve liderar o conjunto orquestral.
A meu ver, o livro Música Maestro! é necessário a todos que desejam realizar um passeio pela extensa senda da História da Música. Para os que já leram tantos compêndios, torna-se o livro uma revisitação prazerosa, a relembrar fatos por vezes esquecidos. Para estudantes e leigos, uma belíssima introdução. Fica a certeza de que novos adeptos à causa da música erudita estarão nascendo. Um CD anexado a Música, Maestro! faz-nos percorrer do gregoriano a Villa-Lobos, nesse caminhar que leva a tantas boas recordações sonoras. Anexos pertinentes completam a obra.
À guisa de conclusão, escreve Júlio Medaglia, a reverenciar um de seus grandes mestres – como é bom neles pensar! – “Almoçando certa vez na casa de Pierre Boulez em Baden-Baden, junto com o poeta concretista Haroldo de Campos, o grande músico francês nos disse uma frase, ideal para encerrar este trabalho: ‘O talento e a tecnologia são como dois espelhos. Só quando colocados frente a frente, em igualdade de condições, é que os resultados vão se refletir e multiplicar ao infinito’. Que seja esta a missão do homem no admirável século novo…”

On the book “Música, Maestro”, written by the Brazilian conductor, composer and arranger Júlio Medaglia, an outstandingly comprehensive overview of the history of music from the Gregorian chant to the synthesizer, designed for both the student and the general reader.

Falco Femoralis

A Vingança do Gavião. Desenho de Luca Vitali. 2009. Clique para ampliar.

Les oiseaux de proie, ainsi que les quadrupèdes carnassiers,
ne se réunissent jamais les uns avec les autres;
ils mènent, comme les voleurs, une vie errante et solitaire:
le besoin de l’amour, apparemment le plus puissant de tous
après celui de la necessité de subsister,
réunit le mâle et la femelle…

Buffon (1707-1788)

Apartamentos com terraço despertam interesses de determinados pássaros, a depender da categoria de “alimentos” que ofereçam. Moradores que deles gostam colocam rações e frutas e recebem diariamente aves de várias espécies. Para quem tem passarinhos, cozinha ou churrasqueira nas alturas, a frequência tende a favorecer visitas inamistosas. Meu dileto amigo e compositor Gilberto Mendes, santista, recebeu a visitação de um urubu, como narra em seu último livro (vide Viver sua Música – Com Stravinsky em meus ouvidos, rumo à avenida Nevskiy, 04/04/09): “ Por esse tempo eu andava às voltas com a observação de simpáticos urubus que sobrevoavam o terraço de meu apartamento, que é no último andar. Um deles chegou a entrar pela janela da cozinha e comer um pedaço de peixe que estava sobre a pia, junto à janela. Achamos interessantíssimo o acontecimento, eu e minha mulher.”
Bem recentemente, investida de outra espécie de ave atormentou meu amigo Uyara, ótimo vizinho. Prestativo, mora na esquina inicial de minha rua, e poucas dezenas de metros separam minha casa de seu apartamento, que também tem terraço. Gosta de canários belgas, assim como eu, e o canto de nossos passarinhos pode ser ouvido, apesar do ruído incessante do entorno. De sua cobertura que lembra um pouco um alpendre, em um quarto andar, Uyara vê e ouve a Avenida Santo Amaro e seu caótico trânsito; mas, quando dirige o olhar em sentido contrário, pode contemplar muitas espécies de aves: periquito, bem-te-vi, sabiá, sanhaço e tantas outras que sobrevoam nossos ares e alegram nossas vidas.

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Um belo dia viu um de seus canários estraçalhado. Dias após, mais um. Ficou de tocaia e surpreendeu um belo gavião de coleira, também denominado gavião-pombo ou aplomado falcon. Sobre uma das gaiolas, de asas abertas, tinha as garras dentro da “casa” da pobre avezita, que certamente seria dilacerada. Uyara agarrou o belo falconídeo com as duas mãos, segurando o dorso com a direita e a cabeça com a esquerda, de maneira tal que a ave de rapina ficasse inteiramente imobilizada. Seu filho tirou as fotos do imponente pássaro, momentaneamente cativo. Com as asas abertas teria cerca de 40 cm, segundo o amigo! Logo após, Uyara soltou-a, não sem antes ter vociferado impropérios impossíveis de serem transcritos neste post. Como despedida, ameaçou o gavião, dizendo-lhe que, se voltasse, outro poderia ser o seu destino. Não mais voltou. No fundo, o amigo gostou imenso de ter durante minutos segurado com firmeza o rei dos espaços do Brooklin – Campo Belo. “Magnífico pássaro”, confessou-me a sorrir.

Uyara momentos antes de soltar o gavião-coleira. Clique para ampliar.

Diariamente o gavião-coleira atravessa o horizonte, a não mais de cinquenta metros de distância do terraço do Uyara. Afirma que já viu voos razantes do falcão sobre meu telhado, mas felizmente meus canários não estão visíveis, pois protegidos por telhas transparentes. Permanece o gavião muito tempo altaneiro em uma antena de prédio, de onde tudo observa. O amigo jura que o pássaro, no fundo, deve praguejar qualquer coisa, pois parece olhar a região demarcada na qual Uyara cuida de seus belgas canoros. Apreendemos que teria seu ninho na cumieira de um edifício não muito longe de nossas moradas. É monogâmico, e o casal nidifica quase sempre no mesmo local. O majestoso gavião-coleira na realidade, busca habitar acima do bem e do mal a aguardar a captura de seu alimento constituído de insetos e pequenos animais. Daí o conhecimento pleno de sua área de atuação.
Uyara e outros vizinhos, realmente amigos e solidários na faixa etária, reunem-se periodicamente para um jantar. Revezamo-nos na culinária e, a cada encontro, um de nós torna-se o mestre cuca. Nossas mulheres participam como convidadas. Na última reunião, Uyara mostrou fotos recentes do gavião-coleira. Garras e bico ameaçadores estavam dominados pela hábeis mãos do amigo. Eram muitas as magníficas imagens tiradas. Entre os presentes nesse opíparo encontro, o excelente artista plástico e designer Luca Vitali só ouvia. Comentamos que os voos do falconídeo, sempre em linha reta e próximos ao terraço, poderiam significar um plano estratégico do pássaro para futura investida. Um primeiro descuido de Uyara e certamente a estatística dos infaustos acontecimentos aumentaria. Dias após, Luca enviou-nos, via e-mail, um desenho bem criativo. Jocosamente, denominou-o “a vingança do gavião”. O falco femoralis (denominação dada em 1822 pelo naturalista holandês C.J. Temminck), superdimensionado, domina o terraço de Uyara, a devolver-lhe as palavras desairosas com um simples gesto.
As vidas das avezitas do bom amigo continuarão sub judice. Aves de rapina sabem escolher momentos privilegiados. Uyara que se cuide, a fim de que os cantos de seus passarinhos continuem a ser ouvidos lá e aqui, em minha casa.

The curious case of a falcon, a permanent resident of the city of São Paulo, that killed two of the Belgian canaries my neighbour keeps in his penthouse. He managed to capture the bird, scolded it in abusive language and immediately let it go, not without a warning that “next time things may be different”. It seems the falcon understood what it was scolded for: it dared not come back, though it is often seen soaring over the place. Waiting for the moment of revenge ?