Falco Femoralis

A Vingança do Gavião. Desenho de Luca Vitali. 2009. Clique para ampliar.

Les oiseaux de proie, ainsi que les quadrupèdes carnassiers,
ne se réunissent jamais les uns avec les autres;
ils mènent, comme les voleurs, une vie errante et solitaire:
le besoin de l’amour, apparemment le plus puissant de tous
après celui de la necessité de subsister,
réunit le mâle et la femelle…

Buffon (1707-1788)

Apartamentos com terraço despertam interesses de determinados pássaros, a depender da categoria de “alimentos” que ofereçam. Moradores que deles gostam colocam rações e frutas e recebem diariamente aves de várias espécies. Para quem tem passarinhos, cozinha ou churrasqueira nas alturas, a frequência tende a favorecer visitas inamistosas. Meu dileto amigo e compositor Gilberto Mendes, santista, recebeu a visitação de um urubu, como narra em seu último livro (vide Viver sua Música – Com Stravinsky em meus ouvidos, rumo à avenida Nevskiy, 04/04/09): “ Por esse tempo eu andava às voltas com a observação de simpáticos urubus que sobrevoavam o terraço de meu apartamento, que é no último andar. Um deles chegou a entrar pela janela da cozinha e comer um pedaço de peixe que estava sobre a pia, junto à janela. Achamos interessantíssimo o acontecimento, eu e minha mulher.”
Bem recentemente, investida de outra espécie de ave atormentou meu amigo Uyara, ótimo vizinho. Prestativo, mora na esquina inicial de minha rua, e poucas dezenas de metros separam minha casa de seu apartamento, que também tem terraço. Gosta de canários belgas, assim como eu, e o canto de nossos passarinhos pode ser ouvido, apesar do ruído incessante do entorno. De sua cobertura que lembra um pouco um alpendre, em um quarto andar, Uyara vê e ouve a Avenida Santo Amaro e seu caótico trânsito; mas, quando dirige o olhar em sentido contrário, pode contemplar muitas espécies de aves: periquito, bem-te-vi, sabiá, sanhaço e tantas outras que sobrevoam nossos ares e alegram nossas vidas.

Clique para ampliar.

Um belo dia viu um de seus canários estraçalhado. Dias após, mais um. Ficou de tocaia e surpreendeu um belo gavião de coleira, também denominado gavião-pombo ou aplomado falcon. Sobre uma das gaiolas, de asas abertas, tinha as garras dentro da “casa” da pobre avezita, que certamente seria dilacerada. Uyara agarrou o belo falconídeo com as duas mãos, segurando o dorso com a direita e a cabeça com a esquerda, de maneira tal que a ave de rapina ficasse inteiramente imobilizada. Seu filho tirou as fotos do imponente pássaro, momentaneamente cativo. Com as asas abertas teria cerca de 40 cm, segundo o amigo! Logo após, Uyara soltou-a, não sem antes ter vociferado impropérios impossíveis de serem transcritos neste post. Como despedida, ameaçou o gavião, dizendo-lhe que, se voltasse, outro poderia ser o seu destino. Não mais voltou. No fundo, o amigo gostou imenso de ter durante minutos segurado com firmeza o rei dos espaços do Brooklin – Campo Belo. “Magnífico pássaro”, confessou-me a sorrir.

Uyara momentos antes de soltar o gavião-coleira. Clique para ampliar.

Diariamente o gavião-coleira atravessa o horizonte, a não mais de cinquenta metros de distância do terraço do Uyara. Afirma que já viu voos razantes do falcão sobre meu telhado, mas felizmente meus canários não estão visíveis, pois protegidos por telhas transparentes. Permanece o gavião muito tempo altaneiro em uma antena de prédio, de onde tudo observa. O amigo jura que o pássaro, no fundo, deve praguejar qualquer coisa, pois parece olhar a região demarcada na qual Uyara cuida de seus belgas canoros. Apreendemos que teria seu ninho na cumieira de um edifício não muito longe de nossas moradas. É monogâmico, e o casal nidifica quase sempre no mesmo local. O majestoso gavião-coleira na realidade, busca habitar acima do bem e do mal a aguardar a captura de seu alimento constituído de insetos e pequenos animais. Daí o conhecimento pleno de sua área de atuação.
Uyara e outros vizinhos, realmente amigos e solidários na faixa etária, reunem-se periodicamente para um jantar. Revezamo-nos na culinária e, a cada encontro, um de nós torna-se o mestre cuca. Nossas mulheres participam como convidadas. Na última reunião, Uyara mostrou fotos recentes do gavião-coleira. Garras e bico ameaçadores estavam dominados pela hábeis mãos do amigo. Eram muitas as magníficas imagens tiradas. Entre os presentes nesse opíparo encontro, o excelente artista plástico e designer Luca Vitali só ouvia. Comentamos que os voos do falconídeo, sempre em linha reta e próximos ao terraço, poderiam significar um plano estratégico do pássaro para futura investida. Um primeiro descuido de Uyara e certamente a estatística dos infaustos acontecimentos aumentaria. Dias após, Luca enviou-nos, via e-mail, um desenho bem criativo. Jocosamente, denominou-o “a vingança do gavião”. O falco femoralis (denominação dada em 1822 pelo naturalista holandês C.J. Temminck), superdimensionado, domina o terraço de Uyara, a devolver-lhe as palavras desairosas com um simples gesto.
As vidas das avezitas do bom amigo continuarão sub judice. Aves de rapina sabem escolher momentos privilegiados. Uyara que se cuide, a fim de que os cantos de seus passarinhos continuem a ser ouvidos lá e aqui, em minha casa.

The curious case of a falcon, a permanent resident of the city of São Paulo, that killed two of the Belgian canaries my neighbour keeps in his penthouse. He managed to capture the bird, scolded it in abusive language and immediately let it go, not without a warning that “next time things may be different”. It seems the falcon understood what it was scolded for: it dared not come back, though it is often seen soaring over the place. Waiting for the moment of revenge ?