“Do Canto Gregoriano ao Sintetizador”
A música expulsa o ódio daqueles que não têm amor.
Ela traz paz aos que não têm repouso,
consola os que choram.
Aqueles que se perderam encontram novos caminhos,
e os que recusam tudo encontram confiança e esperança.
Pablo Casals
Quando do blog referente ao ótimo livro do compositor Gilberto Mendes (vide “Viver sua Música – Com Stravinsky em meus ouvidos, rumo à avenida Nevskiy”, 28/03/09), considerava o respeito que sempre tive pelos textos competentes sobre música, nos quais o autor, ao exercer igualmente a atividade prática musical, seja em qual segmento for, demonstra conhecimento pleno da escrita particularizada do universo sonoro. Compositores, intérpretes e musicólogos, quando se dirigem voluntariamente para o texto passível de ser lido por todos, pois sem a ininteligibilidade – para muitos – da partitura, podem revelar o domínio da área sem amarras, a depender obviamente do talento para o mister e da cultura adquirida através da trajetória. Há livros e livros escritos por competente músicos, mas muitos deles direcionados a conhecedores, pois podem envolver análises ou conceituações difíceis para não iniciados. Todavia, quando a obra tem caráter de divulgação de conhecimentos para o público em geral, mais importante ainda que o texto transparente esteja estruturado em sólida cultura musical, salvaguarda contra equívocos, por vezes constrangedores. Acabo de ler o livro de Júlio Medaglia (Música Maestro, – Do Canto Gregoriano ao Sintetizador. São Paulo, Globo, 2008, 355 págs). O subtítulo da obra já apresenta empreitada de dificílima resolução, mormente pela abrangência do quadro, a abordar o desenrolar da música ocidental a partir do cantochão, expressão maior da cristandade.
Júlio Medaglia, um dos músicos mais completos deste país, maestro, compositor, arranjador, comunicador, nasceu em São Paulo em 1938. Ainda na juventude ingressou na Escola Livre de Música, onde teve a orientação de Hans Joachim Koellreutter. Adquiriu posteriormente sólida formação na Alemanha, quando estudou com o lendário regente sir John Barbirolli, cursando os festivais de música contemporânea de Darmstadt com Karlheinz Stockhausen e Pierre Boulez. O trabalho com ilustres mestres é garantia de boa estrutura, embora não necessariamente de bons frutos. Medaglia é exemplo típico daquele que deu resultado. Poucos podem orgulhar-se de ter perpassado como regente o grande repertório tradicional, a música contemporânea e ter sido o expert dos arranjos do movimento tropicalista. A experiência como professor em várias universidades e seus deslocamentos permanentes para apresentações no Exterior são inequívocas referências. Lembremo-nos, igualmente, da excelência de Medaglia como comunicador.
De posse de toda essa bagagem, primeiramente escreveria Música Impopular (São Paulo, Global, Coleção Navio Pirata, 1989), do qual redigi resenha para o jornal “O Estado de São Paulo” (Cultura, nº 454, ano VII, 08/04/89, pág.9).
Os vinte anos que separam os dois livros merecem um comentário. Se na obra de 89 Júlio é provocativo, ousado nas críticas – endosso-as plenamente – a determinadas situações da música atual, erudita ou popular, em Música, Maestro! pode-se perceber o músico-pensador instigante, mas destilando a competência com serenidade. Todos os capítulos, desde o destinado à Antiguidade até o da música contemporânea, são descritos sem qualquer constrangimento ou amarras acadêmicas. Um passeio pela História. A intenção do livro é nitidamente a de divulgar com competência a trajetória da música ocidental, daí o primeiro passo para a liberdade do pensar não limitada a período específico, autor e obras, tão caros à Academia. Ratifico, discorrer sobre a História da Música, tarefa dificílima, torna-se em Música, Maestro! leve, palatável, competente e a atender ao leigo, ao estudante e ao músico. Que contributo extraordinário não seria se fosse o livro adotado na universidade, quando muitas vezes o “ranço” da erudição torna nebuloso o entendimento da evolução histórica da música, distanciando o aluno, em não poucas oportunidades, de um interesse frutífero pela matéria.
Júlio Medaglia tem o dom da comunicação direta, sem artimanhas, sem o linguajar que possa suscitar dúvidas ou a busca aos léxicos. Lê-lo discorrer sobre passado e presente, como se estivesse a sobrevoar solo familiar, é a comprovação do conhecimento estruturado em raízes profundas. Os capítulos referentes à polifonia (de 800 a 1600) estendendo-se ao estilo clássico (de 1750 a 1820) oferecem informações rigorosamente transparentes, sem a menor necessidade de aprofundamentos tantas vezes inintelegíveis. O estilo romântico (de 1820 a 1900) é abordado numa concentração nos autores fundamentais, desenvolvimento das formas, gêneros. Focaliza ópera, opereta vienense, canção-solo, criações para orquestra, música de câmara, e a ascensão do instrumento solo. “A música para piano liderou a criação musical no século XIX, chegando, em meados desse período, a superar até mesmo a orquestral” como afirma. Uma sinopse dos principais compositores do século XIX e a inclusão do ballet e a sua real importância concluem esse capítulo, que relata período tão caro aos aficionados. O século XX é uma das muitas especialidades de Júlio Medaglia. É instrutivo ler suas considerações sobre escolas composicionais, estilos, autores, sempre com a mais absoluta firmeza.
Ao considerar a música brasileira, percorre-a do erudito ao popular. O povo e suas manifestações, características regionais e gêneros são percorridos por quem viveu momento crucial, verdadeira encruzilhada, que foi o período do movimento tropicalista.
Comentava sobre o respeito que sempre tive pelo texto competente escrito pelo profissional de fato e de direito. Ao escrever um subcapítulo, “Nasce o Maestro”, Júlio Medaglia dá uma verdadeira aula (págs. 87-90), e o leitor capta a sensível percepção daquele que deve liderar o conjunto orquestral.
A meu ver, o livro Música Maestro! é necessário a todos que desejam realizar um passeio pela extensa senda da História da Música. Para os que já leram tantos compêndios, torna-se o livro uma revisitação prazerosa, a relembrar fatos por vezes esquecidos. Para estudantes e leigos, uma belíssima introdução. Fica a certeza de que novos adeptos à causa da música erudita estarão nascendo. Um CD anexado a Música, Maestro! faz-nos percorrer do gregoriano a Villa-Lobos, nesse caminhar que leva a tantas boas recordações sonoras. Anexos pertinentes completam a obra.
À guisa de conclusão, escreve Júlio Medaglia, a reverenciar um de seus grandes mestres – como é bom neles pensar! – “Almoçando certa vez na casa de Pierre Boulez em Baden-Baden, junto com o poeta concretista Haroldo de Campos, o grande músico francês nos disse uma frase, ideal para encerrar este trabalho: ‘O talento e a tecnologia são como dois espelhos. Só quando colocados frente a frente, em igualdade de condições, é que os resultados vão se refletir e multiplicar ao infinito’. Que seja esta a missão do homem no admirável século novo…”
On the book “Música, Maestro”, written by the Brazilian conductor, composer and arranger Júlio Medaglia, an outstandingly comprehensive overview of the history of music from the Gregorian chant to the synthesizer, designed for both the student and the general reader.