“Com Stravinsky em meus ouvidos, rumo à avenida Nevskiy”
Se o teu pensamento fôr o que deve ser,
encontrarás pouca dificuldade na ação.
Lembra-te que para seu util à humanidade,
o pensamento deve traduzir-se em ações.
J. Krishnamurti
Há décadas, e não poucas vezes, tenho redigido textos a respeito do escrever sobre música. O posicionamento vem de uma imensa admiração pela escrita competente. Apreciador de esportes, respeito aqueles comentaristas que – empregando jargão da especialidade – “estiveram lá”, ou seja, praticaram modalidades esportivas que resultariam, após encerrar a carreira, em atividade nos meios de comunicação, através de jornais, revistas, rádio e televisão. É fácil entender que comentam com propriedade, sem radicalismos, pois “estiveram lá”, a apreender a vitória e a derrota, o congraçamento e a discórdia. Quem “lá não esteve” geralmente tem paixões, vocifera, evidencia possíveis frustrações pela ausência em sua vida da área demarcada e cercada pelo público. Pode até ganhar notoriedade, mas o respeito do esclarecido que ama esportes estará concentrado nos que transpiraram em suas especialidades esportivas. O mero comentarista pode tornar-se um simples falastrão, diferentemente do locutor de esportes, que exerce uma arte destinada a poucos. Ao compor Santos Football Music (1969) para orquestra sinfônica, 3 tape recordings contendo irradiação de jogo de futebol, participação do público e ação teatral, Gilberto Mendes (1922- ) recorreria à extraordinária narração de Geraldo José de Almeida, um dos grandes locutores do passado.
Dessa premissa vem igualmente o meu respeito pelo texto voluntário sobre música, mas redigido por especialista. Se naturalmente construído, não tem o “ranço”, tantas vezes “obrigatório”, que a Academia impõe, mercê em parte dos não vocacionados impelidos a escrever, a fim de alcançar as várias titulações em suas carreiras. Inexiste tampouco na espontaneidade daquele que “lá está” a característica facilmente detectável do soi disant, o diletante que aparenta competência, mas que insiste em escrever sobre música. Essa categoria existe e está sempre a publicar textos, críticas, comentários e até ensaios sobre nossa área. Neste caso, pode incorrer no simulacro, pois estará a navegar em águas desconhecidas, que acredita confiáveis e familiares. A retórica rebuscada não consegue camuflar incompetências transparentes. Numa visão mais ampla, o texto voluntário e seguro tem a aura da dedicação e da relação amorosa com a área abordada.
Dois ótimos livros sobre música foram lançados recentemente, escritos por músicos da melhor estirpe que “estão lá”, a exercer com firmeza e dedicação suas atividades: o notável compositor Gilberto Mendes, nosso maior nome como criador erudito, e Júlio Medaglia, esse extraordinário músico pleno de pluralidade ímpar. O livro de Júlio, Música, Maestro!, será tema de um futuro post, pois a temática prende-se ao conhecimento geral da história da música em linguagem acessível a todos.
Ao escrever seu primeiro livro (Odisséia Musical – Dos Mares do Sul à elegância Pop/Art Déco. São Paulo, Giordano/Edusp, 1994, 268 págs.), Gilberto Mendes concretizava o sonho de ver editada a sua magnífica tese de doutorado, da qual tive o prazer de participar como membro da banca julgadora. Nessa obra, Gilberto narra a sua trajetória, envolve aqueles que foram contatos permanentes, declara seus ascendentes musicais eleitos e Santos, sempre Santos, mostrar-se-ia o “porto seguro”, como ele assim define, após tantas viagens pelo mundo. Em 2005 foi lançado o documentário extremamente bem produzido, dirigido e editado por seu filho Carlos de Moura Ribeiro Mendes, A Odisséia Musical de Gilberto Mendes, e através de música e imagens seu universo se dimensiona. Gilberto Mendes está por inteiro a percorrer a sua Europa amada, os lugares em que apreendeu ser a vida dadivosa, graças a seu talento invulgar e a uma dedicação e disciplina ímpares, resultando numa produção contínua na qual o compositor se mostra o artesão amoroso. Sempre. Por ocasião de seus 85 anos, redigi um post a respeito do grande músico e dileto amigo (vide Gilberto Mendes (1922- ) – Tributo ao Músico Pensador, 13/10/07).
Ao escrever Viver sua Música: com Stravinsky em meus ouvidos, rumo à avenida Nevskiy (Santos-São Paulo, Realejo/Edusp, 2008, 373 págs.), Gilberto Mendes, livre de determinadas amarras que uma tese acadêmica determina, confessa tudo que o levou à inteira compreensão de seu mundo, único, generosamente repartido entre todos os que tiveram e têm o privilégio de privar de seu convívio. Autobiografia singela e bonita. Gilberto abre-se para o leitor. Os oitenta e tais anos acumulados impedem-no de não dizer o que sente. Silenciar seria trair sua natureza. Reverencia mestres com imensa candura e respeito – lição para as novas gerações, que insistem em esquecê-los. Importa muito menos o processo escritural já assimilado e extremamente polivalente, mas único e personalíssimo, e mais o texto coloquial. Um caleidoscópio em permanente mutação, onde influências assimiladas prazerosamente transformam-se naquilo que Gilberto é, a sinceridade plena. Sob outra égide, perpassam amigos, músicos, outros músicos e Santos, sua eternidade terrena. Poder-se-ia afirmar que o segundo livro é mais solto, e em nenhum instante Mendes evita o que lhe vai pela alma. Até de maneira ingênua, por vezes, nessa qualidade rara e essencial que a intelligentzia entende – quantas lá não foram as vezes – como não seriedade. Fotos sinceras, que poderiam ser compreendidas até como integrantes do seu lúdico, que jamais deixou de existir. Imagens reveladoras do imenso prazer de Gilberto ao sentir um local que povoou seu imaginário durante décadas. Retratos do texto.
É comum com a idade a fixação no passado, a rememorar paraísos percorridos ou terrenos pantanosos vencidos. Tudo faz parte. Recorrendo insistentemente a esse tempo ascendente, Gilberto tem o descortino como permanente meta. Bonito vê-lo discorrer encantado, como um jovem em plena fase efusiva, sobre as terras novas ou reconquistadas nas últimas décadas, revisitação sob novo olhar. U.S.A., Bélgica, Holanda, Alemanha e, preferencialmente, a Rússia. Diria, São Petersburgo. Ter lá estado, assistir a apresentação de suas obras e conhecer o solo que viu passar os monstros sagrados da música russa sintetizam o autêntico maravilhamento. Aliás, ao ler-se Viver sua Música, tem-se a impressão de que se não fosse Santos sua cidade, escolheria a cidade do Museu Hermitage, do Teatro Mariinsky e dos passos, que ecoam ainda, dos grandes mestres do Conservatório: “andei pelos corredores e escadarias por onde também andaram Rimsky Kórsakov, Glazunof, Anton Rubinstein, Tchaikovsky, e ainda Prokofief, Shostakovich, Galina Ustvolskaya e… Igor Stravinsky!”, escreve reverencialmente o nosso mais importante e festejado compositor erudito vivo brasileiro. A euforia de Gilberto é total e os locais novos são incorporados aos antigos, a enriquecer sua enciclopédia. Está tudo lá, passado, presente e, logo mais, outros futuros. A memória extraordinária do grande músico, compositor e amante da vida registra o mínimo detalhe e insere as gradações sensoriais e emotivas. O peixe e o vinho em jantar com Eleazar de Carvalho, o peixe roubado pelo urubu em seu terraço, o cinema – essa paixão absoluta -, a Av. Nevskiy em São Petersburgo, nada escapa ao olhar extasiado. Ao final volta à escrita musical e algumas partituras, assim como um catálogo básico, completam a bela obra de Gilberto Mendes.
Livro para ser apreciado a conta-gotas. Através dele, pode-se perceber como a dedicação à música ultrapassa qualquer barreira, desde que vocação à flor da pele exista. Torna-se, nessa condição, imanente no caráter do homem. E mesmo a ideologia, tão presente em Gilberto Mendes, tem o cunho de profundo humanismo. Ideologia de esquerda, autêntica, mas embalada aos sons dos trópicos, do Havaí inclusive. Há exceções em sua obra musical, onde a tragédia é denunciada. Contudo, é o todo que se manifesta homogêneo. A contracapa reproduz a pintura carinhosa de sua esposa Eliane, que consegue extrair essa serenidade do compositor – aparente talvez -, e também o testemunho de Gilberto: “É o que eu chamo de som da felicidade. O prazer da felicidade que a beleza musical pode nos proporcionar, como no caso de As Bodas de Fígaro, de Mozart. ‘Ah tutti contenti’! Viver a emoção provocada por essa beleza, que encerra a dor do mundo – a beleza intensa dói! – e também a alegria, que é o amor, significa viver a música, em toda a sua estranheza e ambiguidade. Isso é o que é a música para mim”.
A few comments on the last book written by Gilberto Mendes (1922- ), the most important living composer of contemporary classical music in Brazil.