Navegando Posts publicados em maio, 2009

Coimbra e Pombal

Sé Velha de Coimbra.

Revisitar uma cidade pode revelar aspectos não apreendidos anteriormente. Este é o sexto ano consecutivo em que me apresento em Coimbra, sob os auspícios da tradicional universidade. Longe estou de conhecer parcela pequena da urbe repleta de encanto e mistério.
Após a conferência-recital, Regina, meu ilustre amigo e professor da universidade José Maria Pedrosa Cardoso e eu descemos as íngremes e espremidas ladeiras de pedras irregulares. Escadarias perigosas – uma tem o nome de quebra-costas – estão a denunciar o infausto à espreita. Fomos jantar no restaurante O Trovador, bem em frente à porta Especiosa, lateral da Sé Velha. Não foi a primeira vez, ao longo dos anos, que lá paramos para saborosas refeições, que apenas Portugal sabe proporcionar. Mas, incrivelmente, seria esta a primeira visão que fixei da Sé Velha de maneira mais persuasiva. Fiquei extasiado e no dia seguinte, ao subir escadas e ladeiras para o ensaio do recital que ocorreria à noite, admirei a extraordinária Catedral, o mais importante monumento românico existente em Portugal. Ao adentrar, o maravilhamento.
A Sé Velha, como é conhecida, foi construída em local estratégico. A pedra fundamental da construção data do início do século XII e foi lançada no período de D. Afonso Henriques. O culto regular acontece desde 1184.
O estilo da Sé Velha faz parte da vasta atuação que a construção românica desempenhou em Portugal. Uma de suas notáveis características é a austeridade, mercê do exterior ter essa forma paralelepipédica. Se traços islâmicos podem ser evidentes na porta principal, destaquem-se as portas laterais. A Especiosa, criação de João de Ruão, detém essa apreensão dos importantes arcos da Renascença italiana. A outra porta, menos imponente, foi dedicada a Santa Clara.
O interior da Sé Velha é deslumbrantemente austero e a dimensão de sua nave principal se impõe, sendo igualmente relevantes as duas outras, laterais. De extraordinária feitura é o retábulo principal, rigorosamente excepcional nas dimensões e na grande unidade. De madeira dourada e policromada, data do início do século XVI, tendo sido o mais relevante construído em Portugal no período.
Ao sair, ainda vislumbrei as ameias, pois se tratava de uma Catedral que era também autêntica fortaleza. Continuei a subir ruelas, contornando as curvas até chegar ao destino, na Praça Central da Universidade. O espírito estava preparado para o recital que se daria logo após.

Castelo de Pombal. Clique para ampliar.

Parte considerável das cidades ou vilas medievais tem seu castelo construído no alto de morro ou colina mais proeminente. Pombal não é exceção e o magnífico castelo pode ser avistado à distância. Na região ocupada hoje pela cidade habitaram povos do período neolítico. Romanos e muçulmanos estiveram na urbe e deixaram marcas expressivas de suas culturas. No século XIX, os franceses ocuparam e saquearam a cidade, destruindo monumentos arquitetônicos relevantes. Foi apenas pelo fato de ser atravessada por ferrovias e estradas nacionais que o fluxo do progresso retornou à cidade.
Uma das figuras mais ilustres da história de Portugal e da Europa foi Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), o Marquês de Pombal, ministro do rei D. José. Com trajetória marcada por extremos absolutos, Pombal granjeou incontáveis inimigos, que emergiram após a morte de D. José. O desterro em Pombal foi o termo de seus dias.
Se o Castelo medieval da urbe desperta a atenção do visitante, citemos a Igreja de Santa Maria do Castelo, construída na época do templário Gualdim Pais, reedificada em 1560 e destruída quando da invasão francesa. Vestígios atestam sua monumentalidade.
Não conhecia Pombal, cidade bela e rica em tradições populares e construções históricas. Foi grato prazer ter-me apresentado no Teatro-Cine que data do início do século XX, mas totalmente reformado. Uma excelente sala de espetáculos.
Fernando Martinho prepara seu doutoramento na Universidade de Coimbra sob a orientação segura do Professor José Maria Pedrosa Cardoso, sendo eu o co-orientador. Foi-nos buscar em Coimbra, mostrando-nos a bela Figueira da Foz. Do alto da Serra da Boa Viagem tem-se uma esplêndida visão da magnífica e extensa praia. Após, ouvi algumas de suas boas alunas do Conservatório da cidade. Dirigimo-nos a seguir a Pombal e nossa conversa sobre a tese em andamento era interrompida por comentários sobre a paisagem que passava diante de nossos olhos. Após o recital, uma ceia em casa do amigo, onde não faltaram boa companhia, pratos típicos e vinho generoso.
Regressamos ao Porto, epicentro quando de meus recitais acima de Lisboa. A casa da Professora Maria de Lurdes Álvares Ribeiro continua meu porto seguro na região do Douro. Lisboa é o próximo passo e duas apresentações estão marcadas na Academia de Amadores de Música. A tournée continua nessas terras lusitanas que fazem parte de meu ser.


My recitals in Coimbra and Pombal, two cities with a rich and well preserved past. The next step will be Lisbon, where my concert-tour in Portugal comes to an end with two performances.

Recital na Capela do Convento Nossa Senhora dos Remédios em Évora

Retornar a Évora é rever a planura alentejana em seu esplendor. A esta altura está a verdejar, e sobreiros, oliveiras, chaparros e avinheiras, esparsamente distribuídos, imprimem à paisagem identidade singular. O amarelo das giestas, a escorregar por caminhos precisos, mas não homogêneos, contrasta com o lilás das flores do campo. Há unidade e beleza nesses verdadeiros quadros, que se vão afastando à medida que o carro desliza pela estrada. Sobre as torres de eletricidade, imensos ninhos de cegonhas evidenciam que elas escolheram, não sem razão, o Alentejo para a nidificação.
O recital na Capela do Convento de Nossa Senhora dos Remédios é a lembrança de apresentações anteriores no belo templo. É-me familiar. A Instituição de Ensino Eborae Musica, sob a direção da competentíssima Professora Helena Zuber, organiza incontáveis apresentações diversificadas durante a temporada. O piano em frente ao altar de talha magnífica estimula a interpretação e eleva o espírito, mormente a se considerar o repertório de música portuguesa voluntariamente escolhido. A amiga e ilustre colega Idalete Giga emociona-se com o monumental Estudo V Die Reihe Courante, de Jorge Peixinho. Confessou-me, no regresso a Lisboa, que custou a dormir, pensando na composição interpretada. Escreverá um texto evidenciando impactos causados em alma sensível. Durante a digressão, ou após, quando ecos certamente fluirão, revelarei o texto que surgirá do pensar e do sentir de Idalete.

Capela onde meu pai foi batizado, situada em uma das inúmeras freguezias da linda região do Minho. Foto J.E.M.

Qual o motivo dessa crescente atração por Braga? A cada ano, mais se dimensiona a admiração por meu pai, nascido em uma das freguesias de Vila Verde, tão próxima da antiga Bracara Augusta. É que mais e mais as referências levam-me à epopéia de um homem que teve tudo para se apagar no anonimato, mesmo que na maior dignidade, mas soube revestir sua saga com a aura do herói. Braga de amigos eternos: Teotónio, Maria Teresa, Ricardo, Luís, Ana Maria, Tiago, Arminda, José e tantos outros que independeram do tempo, apenas encontraram o momento da história para que o congraçamento se desse. Regina e eu os conhecemos num espaço de nossas vidas, sob o signo daquele herói que deixou Portugal ainda na mocidade e de outros que por cá ficaram, edificando seus futuros no labor amoroso constante.
No plano musical, Elisa Maria Lessa, ilustre professora da Universidade do Minho, apresentou-me manuscritos do compositor e pianista Eurico Thomaz de Lima. Obras que desconhecia e que me fascinaram pela qualidade da escrita. A ela, o mérito do redescobrimento do músico açoriano. Ao intérprete, a certeza de incorporar algumas obras ao seu repertório.
Ter convivido durante horas com o notável Professor de Direito da Universidade do Minho, Dr. António Cândido de Oliveira, apenas consolidou o maravilhamento que foi para mim apresentar o recital no Salão Nobre da Sala dos Congregados da Universidade do Minho. Semanas antes ele estivera com meu irmão Ives, que durante uma semana coordenou um curso de Direito na Universidade.
Uma das características de Braga é o congraçamento. Nas praças e nos cafés, as pessoas confraternizam-se de maneira coloquial. As atitudes de meu grande amigo Teotónio dos Santos lembram muito as que sinto na minha cidade-bairro, Brooklin-Campo Belo. Conhece todos pelo nome e sua amabilidade é proverbial. A diferença está nos ambientes urbanos, pois a limpeza dos espaços históricos e de extraordinária beleza, a cortesia do povo e a segurança nas ruas divergem totalmente daquilo que presenciamos em nossas grandes cidades tropicais. Já me referira a essa segurança que o cidadão tem ao andar pelas ruas na Bélgica. Não é emocionante ver a história de Bracara Augusta amorosamente preservada? Faz bem ao bracarense saber que seus espaços urbanos ainda são respeitados.
Braga, terra que faz parte da minha respiração, pois a cada passo sinto a alma de meu pai a acompanhar-me.

On my recitals in the chapel of the Convent of Nossa Senhora dos Remédios in Évora – a chance to revisit the wide plains of the Alentejo – and in Braga, a city that I feel as part of myself, since it was my father’s birthplace.

Cidade dos Cavaleiros do Templo

Tomar. Convento de Cristo. Janela da Sala do Capítulo, uma obra prima da arte manuelina. Clique para ampliar.

Nessa longa tournée em Portugal, o primeiro recital deu-se na bela cidade de Tomar, cidade anteriormente visitada para recitais no triênio 1982-83-84. Revestiu-se essa apresentação de rememorações muitas. Dos recitais anteriores, as presenças de saudosas amigas, a notável gregorianista portuguesa Júlia d’Almendra e a professora Manuela Tamagnini, Diretora do Conservatório Regional, hoje com as atividades encerradas. Os convites dos ilustres Professores Mário Vieira de Carvalho, da Universidade Nova de Lisboa, e do Professor Antônio de Souza, da Escola de Música Canto-Firme de Tomar, possibilitaram a atual apresentação.

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Diria que a presente vinda a Tomar tem um significado espiritual. Nela nasceu o maior músico português e um dos maiores do século XX, Fernando Lopes-Graça (1906-1994), e no berço do grande compositor estou a apresentar sua Cosmorame, coletânea exemplar para piano. Devo a Lopes-Graça estar presentemente a comemorar o meu cinquentenário em terras portuguesas como pianista. Durante este mês ainda terei muito a falar do extraordinário compositor e pensador.
Tomar, cidade templária, tem muito a contar. Guardo com todo o carinho a História de Portugal, do historiador João Ameal, pois oferta com dedicatória do então Consul Geral de Portugal em São Paulo, o ilustre Dr. Adriano de Carvalho, após meu recital na Casa de Portugal em 22 de Outubro de 1958. Do livro, retirei antes dessa minha travessia: “As Ordens Militares alastram, avolumam-se com adesões inúmeras. Dentro de curto período, são já focos poderosos e influentes, donde irradiam auxílios a empresas alheias e iniciativas de empresas próprias. A sua ação na Península – frente de luta intensa contra o islamita – é considerável. Desde o início se depara entre fatores primordiais da Reconquista espanhola e do alargamento de Portugal para o sul.
Dos Templários, embora se admita a sua anterior existência em território português, sabe-se que em 1128 Dona Teresa lhes doa a vila de Soure e as terras entre Coimbra e Leiria. Por 1147, concede-lhes Dom Afonso I as rendas eclesiásticas de Santarém e em 1159, por estas haverem revertido ao Bispo da diocese, o terreno de Cêra ou Cêras. Ali fundam o castelo e o Mosteiro de Tomar, sob a direção de Gualdim Pais; próspera vila se desenvolve ao seu abrigo”. Foi o caudaloso livro de João Ameal (806 págs.) que me fez ficar encantado com a história determinante de minhas origens. Tomar é parte fundamental da fantástica epopéia portuguesa.
A história da cidade confunde-se com muitos dos grandes feitos portugueses. Cercada pelos mouros no final do século XII, foi heroicamente defendida por Gualdim Pais; no início do século XIV, o Papa tentou acabar com a Ordem Templária na Europa, mas D. Dinis demoveu-o, sendo criada a Ordem de Cristo. Nos séculos a seguir vê-se tremular a Cruz da Ordem de Cristo nas caravelas que seguiam além-mar para as epopéias em África, Índias, Extremo-Oriente e Brasil, sendo que a autoridade do Prior de Tomar permaneceria até 1514. Pode-se apreender muito da importância dessa cidade monumento ao se conhecer o Convento de Cristo, Patrimônio Mundial pela UNESCO. Fundado em 1162, conserva o Convento de Cristo essa aura dos monges cavaleiros que partiam para as célebres cruzadas. Impressiona sua Charola do século XII, onde monges guerreiros assistiam, com suas armaduras e montados em seus cavalos, à missa dentro do próprio convento. A história arquitetônica dos claustros portugueses pode ser seguida através daqueles construídos no Convento de Cristo, da fundação ao século XX, onde estilos diferenciados perpassam vários períodos: românico, gótico, manuelino (a Janela da Sala do Capítulo é uma preciosidade), barroco e outros, derivantes desses. O Castelo cercado por muralhas foi fundado em 1160 e abrigaria o Convento, formando um magnífico conjunto. O militar e o religioso num belo amálgama.
Se o Convento de Cristo é uma das jóias arquitetônicas em Portugal, cartão-postal da cidade, pois edificado em lugar elevado, conserva Tomar outros monumentos e jardins. As muralhas do Convento, seu bosque, as Igrejas de São João Batista e Santa Maria, a Capela de Santa Iria, a Sinagoga. Há forte comprometimento histórico dos judeus com a cidade, pois numerosos foram perseguidos em séculos anteriores. Túneis de escape testemunham períodos de dificuldades vividos. Hoje tudo pertence à história dessa magnífica cidade.
Nas visitas anteriores, como na presente não deixo de visitar, entre ensaios e apresentação pianística, esses monumentos absolutamente singulares. Tomar é realmente um grande marco.

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Foi uma grande emoção conhecer a casa em que nasceu Lopes-Graça, hoje Casa Memória, carinhosamente organizada. Comoveu-me ter apresentado em primeira audição, no auditório Fernando Lopes-Graça, a extraordinária coletânea Cosmorame, do grande compositor. Precedida de palestra com data show, interpretei a obra integral (circa 50 minutos). Meu dileto amigo Mário Vieira de Carvalho, Professor Catedrático da Universidade Nova de Lisboa e um dos maiores conhecedores da obra e do pensar de Lopes-Graça, prefaciou a apresentação do recital-palestra, a enfatizar a importância da magistral composição do mestre de Tomar.
Emoção maior esteve reservada para o final. A magnífica Escola Canto Firme de Tomar ofereceu-nos um jantar e, após o congraçamento, o Coral do Estabelecimento, conduzido de maneira comovente pelo Diretor da Escola, Professor António de Souza, cantou obras do grande compositor.
O intérprete recebeu do Presidente da Câmara Municipal de Tomar uma belíssima salva de prata, com dizeres alusivos à primeira audição de Cosmorame.
Tomar, já inesquecível desde os anos 80, fica hoje no meu mais sensível imaginário. A tournée continuará. Outras cidades ouvirão a panorâmica da extraordinária música portuguesa para piano, perpetuada por intérpretes de real valor no país, mas sistematicamente negligenciada por outros, mais interessados na permanência através do repetidíssimo repertório de sempre, que exclui a criação de Portugal, mas agrada a um público que evita, hélas, o descortino. A impermanência será destino que a história simplesmente ratifica. Os holofotes, sempre os mesmos. Nada a fazer. Contudo, a luta empreendida durante toda a vida por Lopes-Graça, no sentido de que a música autêntica de Portugal seja ouvida, continuará.

As part of my concert tour in Portugal, I’ve been to Tomar, the city of the Knights Templar and also the hometown of Fernando Lopes-Graça. It was with great emotion that I presented the world premiere of Cosmorame, a series of 21 piano pieces of this outstanding Portuguese composer of the 20th century.