“Em Defesa da Música Portuguesa”
On ne passe ni du chant instinctif à la musique,
ni du dessin d’enfant à la peinture,
ni de la justesse ou de l’émotion de la parole au roman;
depuis des siècles, entre l’expression instinctive et l’art,
il y a toujours un autre art.
On ne devient pas poète par un matin de printemps,
mais par l’exaltation d’un poème.
André Malraux
Dificilmente, quando estou em Portugal, o nome de Louis Saguer deixa de ser aventado. Alexandre Branco Weffort, que já nos brindou com excelente livro sobre Lopes-Graça (vide Movimento Editorial – Livros Portugueses sobre Música, 19/04/08), a cada visita minha a Lisboa presenteia-me com algo relacionado ao compositor nascido em Tomar: Cosmorame, Músicas Festivas. Apresentei a primeira coletânea na recente tournée. Ofereceu-me nessa viagem obra que eu estava a procurar há muito tempo. Trata-se do livro de Louis Saguer Em Defesa da Música Portuguesa (Lisboa, Gazeta Musical e de Todas as Artes, 1969). Presenteado na véspera de meu regresso, foi a leitura durante o longo voo até São Paulo. Somava-se a outra obra que ganhara dias antes: Um saudoso adeus distante para Louis Saguer, última das composições da série Músicas Fúnebres para piano, de Lopes-Graça.
Louis Saguer. Tudo aconteceu em 1959. Em Lisboa, solicitei ao grande compositor Fernando Lopes-Graça que me indicasse um mestre na acepção para complementar meu estudo pianístico, que estava a realizar em Paris sob a tutela de Marguerite Long e Jean Doyen. Sentia a necessidade de um professor para as áreas teóricas, apesar dos três anos a estudar em São Paulo com H.J. Koellreuter. Sem titubear, Lopes-Graça deu-me o nome: Louis Saguer.
Necessário se torna traçar um brevíssimo perfil de Louis Saguer (1907-1991). Nascido na Alemanha, naturalizou-se francês em 1947. Estudou com Tagliapietra, Louis Aubert, Arthur Honegger, Darius Milhaud, Paul Hindemith e Kurt Sachs. Na Alemanha, foi assistente de H. Eisler. Como compositor, muitas de suas obras tiveram prêmios relevantes e, após sua morte, pouco a pouco estão a ser divulgadas. Citemos a ópera Marianna Pineda, que lhe valeu o Grande Prêmio de Mônaco em 1964, Une flûte fuyant le sol à perdre haleine (Concerto para flauta e orquestra), Quase una fantasia (Concerto para piano e orquestra), Scheggue e Stralci para piano, vasta obra de câmara, criações para coros a capella ou com orquestra e tantas outras composições. Convidado, dirigiu em 1949 um curso sobre música francesa contemporânea em Darmstadt, apresentando obras de Boulez, Dutilleux, Jolivet, Messiaen. Regente, teve atuações marcantes, revelando em primeira audição composições significativas na condução da Orquestra da Rádio Francesa. Foi assistente do grande regente Hermann Scherchen. Luis Saguer falava oito línguas. Várias vezes esteve em Portugal, sendo que em 1962 dirigiu um curso de música contemporânea na Academia de Amadores de Música em Lisboa, juntamente com Jorge Peixinho.
Discreto, afirmaria: “Minha situação é somente a consequência de minha incapacidade de me promover com sucesso e de meu insólito caráter”. E continua: “não dever nada a ninguém, recusar qualquer publicidade, qualquer tratativa, qualquer combinação; contando apenas com a qualidade de meu trabalho e esperando que ele se imponha por si só. O pior obstáculo: os amigos que não querem aceitar minha atitude”. Hervé Désarbre escreveria: “Compositor, ele ignorava as concessões, levando a discrição ao extremo, o que não o ajudou a se fazer conhecido do grande público, mas permitiu situar sua trajetória acima de modismos e tendências”.
Morava o grande músico e pensador em um pequeno apartamento no Boulevard Raspail. Louis Saguer acolheu-me com simpatia e, após minha primeira exposição, disse-me que durante nossas aulas particulares trabalharia todas as fugas dos dois livros de O Cravo Bem Temperado, de J.S. Bach, e alguns Tempos de Sonata de vários autores. Frise-se que como cravista apresentou importantes obras dos séculos XVII e XVIII, compondo igualmente para o instrumento. Durante três anos segui à risca o cronograma do mestre e semanalmente levava uma peça analisada para sua apreciação. Basicamente nada cobrava pelas aulas, pois o preço era apenas simbólico. Poucas vezes toquei para Saguer uma obra inteira, mas a partitura estava sempre profusamente anotada pelo discípulo, a fim do julgamento seguro do ilustre músico. Interessava a ele o aperfeiçoamento mental do jovem, a maneira como as informações transmitidas com competência pudessem ser apreendidas. Quanto à interpretação, buscava, após a análise de uma obra, inserir a integração analítica à naturalidade do executar como amálgama que levaria às resoluções sonoras.
Camargo Guarnieri, quando em Paris em 1960 (vide Camargo Guarnieri – Em Torno de um Centenário I e II, 3 e 11/07/09, respectivamente), escreveria a Lopes-Graça a respeito de um encontro que tivemos – Guarnieri, Louis Saguer, Jean Reculard e eu – no 17bis, Rue Légendre, onde eu morava, pois o compositor brasileiro tinha também profunda admiração por Saguer. A sua discrição era tanta que apenas muitos anos após compreendi a imensa contribuição de sua obra como compositor. Mas ficaram indeléveis princípios voltados ao conhecimento repertorial – não apenas aquele que estava forçosamente a perpetrar nas classes de piano -; a análise apriorística de uma obra a preceder imperiosamente a visita dos dedos ao teclado; a visão literária. Foi através de Louis Saguer que, entre tantos autores, conheci a obra de Jean-Louis Bory, amigo do compositor e autor do extraordinário Mon village à l’heure allemande (Prêmio Goncourt, 1945). Em torno do romance, foram muitas as conversas a respeito de aferições do mesmo tempo ou de sua simultaneidade.
Em Defesa da Música Portuguesa reúne ensaios publicados não só pela editora, mas também uma palestra de Louis Saguer sobre “A Música e a Evolução Social”. Duas cartas incisivas de Lopes-Graça às autoridades portuguesas de plantão em defesa do amigo, a quem foi-lhe negado produzir-se junto à Emissora Nacional, estabelecem o clima necessário no peristilo do opúsculo.
A obra dá bem a medida dos vastos conhecimentos musicográficos do autor. Intransigente defensor da Música Portuguesa de todos os períodos, Saguer, ao receber os dois importante tomos Flores de Música, do Padre Manuel Rodrigues Coelho (1583- ?), revisados por Santiago Kastner, publicação de grande importância da Fundação Gulbenkian, analisa-os pormenorizadamente em textos datados de 1960 e 1961, respectivamente. Nessa primeira edição de Flores de Música, Saguer ressalta o grande mérito do compositor e da edição, mas o olhar arguto de musicógrafo observa com acuidade a feitura das composições, a penetrar no âmago da criação. Frise-se o conceito idealizado de solidão aferido por Saguer ao não encontrar possíveis raízes populares na obra instrumental do mestre de Elvas, Rodrigues Coelho: “Solidão do artista trabalhando num meio pouco compreensivo, num posto perdido, que o constrange a manter um solilóquio por vezes desesperado. A impressão de que Coelho viveu afastado do mundo é ainda reforçada pela ausência total de temas de origem popular (se exceptuarmos o emprego sistemático da cadência andalusa). Nisso se distingue dos Frescobaldi, Cabezón, Sweelinck e dos virginalistas, que da veia popular tiraram a mais bela substância da sua obra”.
Em outros ensaios de 1961 a 1968 publicados no livro, Saguer, sempre a sustentar a música portuguesa, é um crítico agudo das programações massificadas, sem interesse musical e social; da repetição repertorial ou da sua execução: “…obras ouvidas à saciedade (Carnaval Romano, Pastoral, Sinfonia Italiana, Quadros de uma Exposição) ou do virtuosismo dos executantes que, em vez de servirem à música, se serviram dela para ‘tirar efeitos’ “. Meio século após suas palavras, não é basicamente esse repertório que ad nauseam continua a ser repetido para um público não afeito à renovação por motivos os mais díspares? Não escreveria igualmente sobre os encores: “Muitas vezes me tenho perguntado a mim próprio porque é que as ‘sumidades’ da batuta se julgam obrigadas a descer, nos extras e após um programa em si nada ambicioso, às danças húngaras ou boêmias”, a entender que, em Portugal, essas concessões depois de um concerto mereceriam privilegiar a música contemporânea. Tem consciência da importância da Fundação Gulbenkian na vida artística do país, apesar de alertá-la no sentido de uma maior divulgação da música portuguesa. Não obstante, não poupa outras entidades.
Amigo absoluto de Fernando Lopes-Graça, com quem mantém sempre o diálogo competente, Saguer escreve em artigo de 1968 inserido no opúsculo: “Que multiplicidade de técnicas e estilos na sua obra imensa… Da tonalidade mais clássica ao atonalismo mais acentuado, da simples harmonização de cantos populares ao serialismo mais elaborado, Fernando Lopes-Graça está a vontade em todas as linguagens e a cada uma sabe imprimir a sua marca, que é só dele, reconhecível e indelével. Imbuído da tradição da sua terra natal e alimentado, como nenhum outro no seu país, do vasto tesouro de obras primas de todo o mundo, tanto no espaço como no tempo, pode permitir-se o lançamento de suas pesquisas em todas as direções, na certeza de encontrar sempre a síntese necessária. Vivendo à margem da rotina musical oficial, as suas obras, logo que germinadas, atraem o grande público e eclipsam, de longe, as dos seus contemporâneos.” E sobre o homem Lopes-Graça, comenta: “…bate-se heroicamente, músico obscuro e frágil, com uma intransigência sem paralelo, pelo respeito, os direitos, a independência e as liberdades dos homens, seus irmãos.” A propósito, Cosmorame de Lopes-Graça, que apresentei na tournée que acaba de findar, não é cópia fiel dessas sensíveis palavras de Louis Saguer?
Inserida no livro, a palestra A Música e a Evolução Social, proferida em 1962 e destinada a estudantes universitários. Uma autêntica aula, síntese da trajetória musical através da história. Finaliza: “Todas as ciências, e entre elas as ciências musicais, se encontram plenamente desenvolvidas – mas de nada servirão se uma bomba nos cair em cima; o único sobrevivente do cataclismo terá de fabricar uma flauta de cana para poder tocar uma canção de três notas! Só nos resta desenvolver e fazer evoluir as consciências”.
A leitura de Em Defesa da Música Portuguesa trouxe-me gratas lembranças e a certeza de que a influência de Louis Saguer sobre aquele jovem que com ele estudou foi duradoura. Os princípios do mestre permaneceram como farol e muitos dos conceitos depositados em seus textos fazem parte daquilo que foi assimilado pelo discípulo. Minha gratidão eterna a Lopes-Graça pela indicação de Louis Saguer, tão fundamental em meu transcurso.
This post is about the great French composer, conductor and teacher Louis Saguer (1907-1991), who gave me private lessons of music theory in Paris. Born in Germany, he became a French citizen in 1947. Fluent in 8 languages, Saguer composed operas, chamber music and pieces for piano, orchestra, a capella choir. He was a close friend of the composer Lopes-Graça and an admirer of the Portuguese classical music. Due to his quiet and unpretentious demeanor, during his lifetime he has not received from the media the recognition a musician with his accomplishments would deserve, but today his legacy is being rediscovered. I will be forever grateful to Lopes-Graça for recommending me to Louis Saguer, an outstanding musician and man, so essential to my full development as a pianist.