Reflorar Lembranças após Cinquenta Anos

Academia de Amadores de Música. Lisboa. Foto J.E.M. Clique para ampliar.

Subir escadarias pode representar ato rotineiro. Se espaçado no tempo, repisar velhos degraus tende a reavivar lembranças. O material tem menor significado, a depender do sentimento que escadas proporcionam quando acessadas. Todavia, mármore, pedra ou madeira registram o correr dos anos de forma diferenciada. Degraus de madeira têm como acréscimo o ruído que, de maneira progressiva, vai se modificando com a geração dos passos. Dir-se-ia que esse ranger torna-se mais insistente, como que a querer contar histórias. Quando, ao subir os 49 degraus que levam ao segundo andar da Academia, após exatos cinquenta anos de um primeiro recital na mesma sala, não deixei de olhá-los com carinho e perceber sulcos profundos e o desgaste provocados nesses 125 anos de existência da histórica Instituição, que estão igualmente a ser comemorados. Quantos não foram os amantes da música que, do miúdo ao idoso, não subiram e desceram essas escadas, por onde passou e continua a fluir a centelha criativa de tantas gerações? Como não pensar em tudo isso quando lentamente subi para a apresentação comemorativa de um meio centenário, a aproximar-me daquele jovem já pleno de ideais, mas temeroso pela apresentação primeira em Portugal, mormente sendo a convite do grande compositor português Fernando Lopes-Graça?

Convite para o recital de 1959. Clique para ampliar.

O recital e a conferência-recital realizados nos dias 26 e 27 de Maio, respectivamente, reacenderam a chama que, desde 14 de Julho de 1959, jamais se apagou. Como toda a flama, teve ela ondulações, diminuição e aumento de intensidade, mas sempre lá esteve acesa e a buscar servir à Música nessa contribuição individual, mínima que seja, à causa que abraçamos. Meio século tornar-se-ia a confirmação de caminho traçado, amoroso, sem a menor possibilidade de desvio, pois voluntário.
A sensação do intérprete é intensa, mas de serenidade. Ao cair da noite, pela janela vislumbro o Castelo de São Jorge, que se transfigura a partir da incidência da luz, ostentando a grandiosidade merecida. Claude Monet certamente cuidaria com expressividade ímpar dessa luminosidade que encanta. Vêm à mente o passado e os instantes que precederam a récita de 1959. Mesmo local, mesma esperança, mas a haver àquela altura a ansiedade do jovem perante um público seleto. Entre aqueles do longínquo ano: João Couto, Diretor do Museu de Arte Antiga; João de Freitas Branco, musicólogo e crítico de “O Século”, que me privilegiou dias após com crítica estimulante; os pianistas Sequeira Costa e Tânia Achot e o grande compositor Fernando Lopes-Graça, que me presentearia com os manuscritos autógrafos das duas peças que interpretei no programa.

J.E.M. e Fernando Lopes-Graça. Castelo dos Mouros, Sintra, 19 de Julho de 1959. Clique para ampliar.

No presente recital, geração de músicos daquele tempo e do presente, ilustres representantes desse pulsar sonoro intenso que existe em Portugal. Por ordem alfabética, mencionaria entre os ouvintes: António Ferreirinho (atual Diretor da Academia), Alexandre Branco Weffort, Clotilde Rosa, Eurico Carrapatoso, Idalete Giga, José Maria Pedrosa Cardoso, Manuel Moraes, Mário Vieira de Carvalho, Romeu Pinto da Silva, Rui Vieira Nery. A presença de músicos e jovens aspirantes apenas deu ao intérprete essa alegria de sentir esperanças renovadas, mercê da qualidade ímpar de compositores e pensadores musicais em Portugal.
Se uma pequena panorâmica da música portuguesa foi traçada de Carlos Seixas (1704-1742) a Jorge Peixinho (1940-1995), salientaria a primeira apresentação pública de Cosmorame (1963), de Lopes-Graça, extraordinária coletânea em que o autor privilegia 21 países, a buscar a confraternização dos povos. Em todas as cidades em que a magistral obra foi interpretada durante a longa tournée, a reação foi de admiração confessa, graças à maestria do tratamento: rítmica diversificada, cantares de povos distantes neste planeta, a captação de moods tão específicos. Tudo a demonstrar que essa entidade denominada povo tem uma abrangência global, e aquilo que Lopes-Graça sempre almejou, nessa apreensão do popular genuíno, da aldeia, da raiz, expande-se. É bem o “gesto de amor” que o compositor menciona ao se referir à Cosmorame.
Se o magnífico Estudo In Memoriam Jorge Peixinho, de Clotilde Rosa, teve a presença da insigne compositora, o que muito me honrou, a execução do Estudo V Die Reihe-Courante, de Jorge Peixinho, trouxe reações extraordinárias e diferenciadas durante os vários recitais, mercê de um tratamento rico e exuberante que o saudoso e dileto amigo apresenta nessa obra. Será tema do próximo post, pois até poema expressivo suscitou.
Cinquenta anos são grão de areia no desfilar do tempo, mas em nossa finitude representam muito. Locais são fixados na retina e no coração, preferencialmente se é voluntária a escolha para apresentações, a privilegiar a renovação permanente repertorial. Se essa vontade de perscrutar a criação portuguesa encontra guarida constante é devido à capacidade de seus compositores, muitos dos quais entre os melhores do planeta, embora fatores internos e externos impeçam sua maior divulgação.
Ao descer os degraus após a segunda apresentação, como em um filme acelerado, fico a pensar na trajetória percorrida e já a sonhar com novos desafios. Metáforas vêm à mente e são insistentes companheiras. A expansão se deu em terras portuguesas desde 1959, quando paulatinamente convívios foram acrescidos a partir de tantas cidades visitadas através das décadas. Dessa peregrinação atual do Minho ao Algarve há temáticas que estarão a ser tratadas nos próximos posts: assuntos musicais, leituras voluntárias e o olhar curioso a apreender permanentemente as lições do passado histórico e da natureza em estágio primaveril único em terras portuguesas.

My two recitals in Lisbon took place at the Academia de Amadores de Música. My Portugal debut as a pianist was at the Academia 50 years ago, on 14 July 1959, invited by the great Portuguese composer Lopes-Graça. This year I premiered his work Cosmorame – a series of 21 piano pieces fostering fraternization among countries – and also presented pieces by the composers Carlos Seixas, António Fragoso, Óscar da Silva, Francisco de Lacerda, Francisco Mignone, Gilberto Mendes, Ricardo Tacuchian, Jorge Peixinho and Clotilde Rosa, who has honored me with her presence at the recital.