Turbilhão de Toda Espécie e Imaginação Sonora
O pião entrou na roda, ó pião
O pião entrou na roda, ó pião
Roda pião, bambeia pião
Roda pião, bambeia pião…
Cantiga de roda
Vento ou água, quando resultando em sugadores de formatação espiral ou circular, sejam estes os grandes tornados ou simples ventos provocando rodopios da areia, enormes formações em forma de crateras marítimas ou pequeno movimento provocado no ralo de uma pia, representam fenômenos que nos deparamos com frequência. Ao longo da história, o rodamoinho ou redemoinho tem despertado interesse e curiosidade. No mar ou em um grande rio, pode sugar embarcações com extrema facilidade. Quando na configuração de um tornado, tudo o que está pela frente é aspirado, a causar catástrofe. Documentários muito bem cuidados no Exterior mostram imagens aterradoras de ciclones, tornados e tufões, que são acompanhados por especialistas arrojados focalizando suas aproximações e a destruição após curta passagem.
Ainda miúdo, achava curioso ver a água de um imenso aquário ao ar livre em nossa casa ter seu líquido escoado em breve tempo, tão logo o ralo aberto. Formava-se uma coluna afunilada desde a superfície, e toda a água desaparecia como por encanto. Seco o aquário em cimento, tínhamos a incumbência de limpá-lo periodicamente. Num córrego que passava a uns 400 metros de nossa casa e de águas limpas – inimaginável hoje na megalópole – pegávamos pequenos guarus ou barrigudinhos. Num declive natural de vinte e tantos centímetros, mini rodamoinhos se formavam o que facilitava pegar os peixinhos nas bordas desses círculos. Iam todos para o aquário fazer companhia aos pequenos peixes dourados e aos cascudos, estes permanecendo sempre ao fundo. O córrego atravessava a Rua Amâncio de Carvalho e dirigia-se ao Ibirapuera. Gostava igualmente, ao lavar e esvaziar garrafas que serviriam para a transferência de vinhos importados em pipas de Portugal por meu pai, de realizar movimentos giratórios a fazer o líquido descer velozmente sem formar bolhas. Num outro contexto, como não recordar dos piões e dos desafios no recreio da escola, quando menino encantado com o conhecer as coisas? Enrolávamos o pião de madeira com ponta de metal em um cordão, atirávamos velozmente o objeto ao chão após puxar o grosso barbante, e aquele que conseguisse mantê-lo rodando por mais tempo era o vencedor. Longe de ser o melhor entre meus colegas, tinha lá minhas habilidades. Lembrança que não se esquece.
O tema veio-me motivado por dois fatos, um corriqueiro, outro trágico. Estava a correr quando senti uma rajada de vento que levantou a poeira de uma calçada, a formar um pequeno rodamoinho de dois ou três segundos de duração. Afloraram ideias a respeito e associei-as de imediato à música. Ao regressar à casa, sempre na cadenciada corrida, passei pelo nosso cantinho de conversas, onde meus vizinhos aposentados comentavam sobre recente tornado que sugou casas, plantações, pessoas e animais, a causar danos imensos em Guaraciaba, no Estado de Santa Catarina.
No sentido figurado, o fenômeno que provoca o rodamoinho é aplicado em muitas outras situações. A vida que é sugada pelas vicissitudes, o turbilhão da paixão, a atividade frenética. O homem tende sempre a buscar analogias na natureza. Desrespeito às leis naturais a levar a degradação do planeta tem motivado tragédias cada vez mais marcantes e, por analogia, poder-se-ia dizer que os turbilhões da existência têm por sua vez trazido dimensionamentos, levando a distúrbios psíquicos nunca vistos. Natureza e procedimento humano têm muito em comum.
Vladimir Jankélévich, ao abordar a obra de Claude Debussy em três livros maiúsculos (vide Vladimir Jankélévitch e os opostos em Harmonia no item Essays do site), pormenoriza-se no movimento giratório, espiral ou aquele que em círculos não leva a nenhum lugar. Observa: “O paradoxo do movimento imóvel não caracteriza tão somente a água que jorra e a vaga marítima, pois essa ‘coincidentia oppositorum’ é uma marca distinta da velocidade e da cinemática debussysta em geral. Mas a velocidade não é necessariamente progresso”. Referindo-se a Mouvement do primeiro caderno de Images: “qual movimento ! talvez um carrossel e um movimento in loco preferencialmente a um verdadeiro movimento”. Na sequência do pensamento, numa outra visão do giratório, comenta: “ Rondes francesas, gigas inglesas, tarantelas napolitanas: tudo o que leva à rotação e ritmo composto é objeto de sua vertigem”. Em La Boîte à Joujoux, essa obra extraordinária e quase ignota de Debussy, uma Ronde no premier tableau dá bem a noção desse movimento em constante girar.
Através da história da criação musical, verifica-se que rodamoinhos e outros movimentos que tendem a círculos ou espirais, seja a dança impulsiva ou o fenômeno natural, fascinaram os compositores. Contrariamente aos autores germânicos, ibéricos e italianos do século XVIII, que encontraram na terminologia abstrata ou formal veículo para a exteriorização da criação, os clavecinistas franceses tiveram sempre a imagem como inspiração, mesmo que aspectos formais configurassem semelhanças aos coetâneos outros europeus. Interessa ao cravista francês descrever o que vê, ouve ou sente. Se muitos foram os temas abordados por compositores como François Couperin (1668-1733), Jean-Philippe Rameau (1683-1764) e tantos outros, um teria tratamento bem especial, Les Tourbillons (Os Rodamoinhos). Jean-François Dandrieu (1682-1738) e Rameau escreveriam a respeito desse movimento giratório que, traduzido cravisticamente, pode levar a imaginação a entendê-lo em sua origem. Este último escreveria a Houdar de la Motte “Tourbillons de poeira agitados pelos grandes ventos”, a respeito da peça pertencente às Pièces de Clavecin, de 1724. Em forma rondeau, Les Tourbillons é extremamente diversificada em seu tratamento, onde não faltam passagens virtuosísticas. O mesmo não ocorre com a peça de Dandrieu, também na forma rondeau, caracterizando-se pela graciosidade, verve, rapidez, mas sem as inovações que o Mestre de Dijon, Rameau, apresenta.
Da puerilidade dos cravistas barrocos nessa interpretação à própria percepção de autores quanto à aceleração de intensidades relativas aos acontecimentos naturais, tudo leva a supor que o homem não prescindirá, como temática “criativa”, desse constante girar, a exemplo do que se passa no universo. O importante, à maneira do pião guardado no meu lúdico, é não perder a noção do eixo. O equilíbrio volta a ser sentido.
Clique nos links abaixo para ouvir, na interpretação de J.E.M. ao piano, as faixas:
Les Tourbillons, de J-P. Rameau
Les Tourbillons, de J-F. Dandrieu
Ronde (Boîte a Joujoux), de C. Debussy
Noticing a small whirl of dust on the ground amidst the wind during my morning jogging, my mind went wandering about twisters and typhoons, the metaphorical “windstorms” of one’s life and the fascination composers have always had for such natural phenomena, drawing inspiration for their pieces from the swirling movements of such violent columns of air.