Generosidade dos Leitores
O que ganhamos viajando até a Lua,
se não podemos cruzar o abismo que nos separa de nós mesmos?
Essa é a mais importante de todas as viagens de descobrimento,
e sem ela todo o resto é não apenas inútil, mas desastroso.
Thomas Merton
Uma mudança de significado é necessária
para transformar este mundo política, econômica e socialmente.
Mas essa mudança deve começar no indivíduo,
esse significado deve mudar para ele…
se o significado é uma parte vital da realidade,
então, uma vez que a sociedade,
o indivíduo e as relações sejam vistos
como alguma coisa diferente,
uma mudança fundamental ocorrerá.
David Bohm
Atingimos essa cifra após dois anos e meio de posts publicados semanalmente de maneira ininterrupta, sem qualquer publicidade, sem a menor ventilação fora do próprio veículo de comunicação de que disponho. Houve aproximações para abertura a determinadas propagandas, mas preferi manter-me fiel aos propósitos eleitos, pois poderia haver cobranças ou pressões mercê de patrocínio. A independência do pensar pode levar a equívocos, mas está a traduzir a nossa pulsação sem qualquer aparelho controlador. Dependerá de quem escreve essa auto-avaliação que tantas vezes é repartida, pré-blog, com amigos que comungam ideias afins. Em textos espalhados nesse período frisei que reflexões costumam aflorar a partir de fatos os mais variados. A temática surge sem qualquer esforço devido aos impactos de toda ordem. A simples observação do cotidiano, as impressões sempre enriquecedoras das viagens, as leituras permanentes e a música, que é a própria respiração, estão a me servir, perenemente, como fontes inspiradoras.
Meu saudoso pai dizia que, sem um método preciso, dificilmente o homem atinge objetivos. Dizia mais, a complementar que disciplina, concentração, vontade e, de preferência, amor ao que se faz derrubam barreiras. Quando Magnus, meu antigo aluno e amigo sincero, sugeriu a criação do blog, relutei com certa firmeza. Entendia Magnus que temas tratados através do diálogo deveriam ser repartidos com potenciais leitores. Montou tecnicamente o blog, sem o meu aval, a dizer “ele está à sua disposição, é só começar a escrever”. Foi aos 2 de Março de 2007 que surgiu o primeiro post inserido no blog. Não houve até o presente uma semana a falhar, e o texto entra durante todas as madrugadas dos sábados. Uma amiga perguntou-me se eu não me dava férias quanto aos posts. Disse-lhe que se textos acadêmicos para o Exterior fluem periodicamente, mas sem previsão, o post para o blog e a música são respirações. Sem eles, o coração deixaria de bater. Trégua para o respirar? É curioso que, a partir do post inicial, pouco a pouco, assim como acontece com a música, o blog integrou decididamente meu batimento cardíaco. Confesso ao leitor que em geral os temas e as ideias para os textos surgem durante as corridas que realizo pelas ruas de minha cidade-bairro três vezes por semana. Diria que as passadas e a cadência respiratória avivam ideias tantas vezes retidas e conservadas numa espécie de baú mental, sendo que tantas outras nascem das leituras, do olhar o cotidiano, das viagens que permanecem.
A depender do tema, o vernáculo pode sofrer adaptações. O cotidiano é sempre mais informal, contrapondo-se às resenhas ou aos comentários de livros, que fazem parte de meu outro cotidiano. Cada livro eleito para a leitura representa a visita a um universo desconhecido. É uma das dádivas da civilização. Tecer considerações sobre esses caminhos que os olhos percorrem e a mente absorve dá-me profundo prazer.
A leitura que fazemos do cotidiano não frequentado pela mídia não seria uma outra forma de prospecção? A escrever sobre personagens que eclodem panfletariamente nos meios de comunicação, prefiro retratar com palavras experiências sensíveis que Pedro o andarilho, Sisuphos, os moços do supermercado e da feira-livre, o velho e atencioso amolador Constantino, Carlinhos da pequena loja de produtos de limpeza, os músicos da calçada, o jornaleiro proporcionam-me a cada momento. São eles parte de meu olhar que pulsa nessa comunhão com essa gente humilde, digna, trabalhadora ou, nos tristes casos de Pedro e Sisuphos, abandonados pela sociedade. Os retratos da escrita, quando nesse segmento ignoto para a mídia, despertam a sensibilidade de Luca Vitali, artista que pratica o ato de comunhão em arte, depois do olhar o cotidiano que a maioria teima em não ver, e espontaneamente, sem eu nada dizer, ouve a leitura que gosto de fazer de determinados textos – pré-edição no blog -, capta a mensagem, traduzindo-a em poesia do traço. Flui a criação com a naturalidade dos grandes. Quando o desenho tende à “fotografia” poética, é Maria Fernanda que traduz determinado contexto com rara sensibilidade. Minha mulher Regina e Magnus permanecem ouvintes sensíveis dos textos em fase final que, a seguir, generosamente têm o crivo de Regina Pitta, revisora atenta e autora dos abstracts. O compositor Henrique Oswald já dizia que o pior revisor é o autor e complementava que se incluía entre os piores. Se de um lado há esse pré-conhecimento dos posts por alguns, como não ficar sensibilizado com leitores assíduos, alguns deles escrevendo-me semanalmente sobre temas lidos e as inserções dos conteúdos em suas vidas. A partir dessa espontânea comunicação, exemplos têm-me enriquecido e estimulado a prosseguir. De Portugal e de vários rincões de nosso país escrevem-me e as experiências trocadas são outra categoria do pulsar irmanado.
As viagens têm sido o registro de outros cotidianos, das paisagens e construções que cá não temos e do convívio humano. No fundo somos todos iguais e os sentimentos de amor, de amizade permanecem semelhantes, aqui ou alhures. A visão frente à vida pode diferenciar-nos, pois sofremos de problemas endêmicos devido ao descaso do Estado nesse nosso país eternamente deitado. Em que berço?
A aposentadoria da USP permitiu-me a liberdade da escrita informal, longe do rigorismo tantas vezes inócuo ou dos malefícios da pseudo-erudição evidentes em inúmeros textos acadêmicos (vide “Os Últimos Intelectuais” – Realidades bem Próximas, 21/03/09). A crítica à universidade pública brasileira, contida nas entrelinhas de textos espalhados pelo blog, na realidade é a denúncia ao que de nocivo está a acontecer em nossa educação e nas benesses precisas a tantos projetos estranhos. Que desestimula o ensino público básico e médio e que repercute no ensino superior, não há dúvidas. O tempo evidenciará o capitis diminutio que está a ocorrer na área da educação em todos os níveis, mercê do quantitativo sem estrutura em detrimento da qualidade seletiva.
A Música tem sido tema constante. Basta uma ideia surgir, ou receber a sugestão de um leitor atencioso, para que pouco a pouco determinado assunto comece a germinar. Os e-mails recebidos vêm através do endereço contido no contact do site. Costumo respondê-los, e diálogos extremamente interessantes têm estimulado o pensar. Procuro contudo adaptar as indagações e interesses dos leitores àquilo que me é caro na Música, a sua própria essência a partir da interpretação. A busca eterna pela consideração ao estilo do compositor e todas as decorrências que dele advém.
Personalidades que me foram caras, mestres não esquecidos, amigos que passaram para a outra margem, deixando exemplos de afeto, são temas que, por vezes, abordamos contristados. Revelam que convívios permanecem e que a gratidão por tê-los conhecido deságua no mínimo em forma de tributo que jorra sincero.
A montanha. Os Himalaias que me levaram às leituras das aventuras e do pensamento místico da região. Católico, não dispenso penetrar minimamente nesse pensar puro e elevado de alguns iluminados mestres tibetanos. Há tantas concordâncias com o cristianismo. Leigo no budismo, os textos tibetanos, a revelar a inclinação do homem em direção ao aperfeiçoamento individual e dele à compaixão que pode advir, seriam uma visão bem próxima aos ensinamentos que me foram transmitidos durante a trajetória. Ajudam a melhor compreender o homem na procura da plena humanidade. Utopia, talvez, mas vale acreditar.
Dileto amigo ponderou que deveria escrever sobre o que acontece na política brasileira. Sou um a integrar muitos milhões de descontentes com o que acontece nos três poderes desse país. Contudo, há especialistas que diuturnamente proclamam a vergonhosa situação a que chegaram as classes políticas e empresariais, umbilicalmente ligadas em tantas escandalosas oportunidades, quando interesses estranhos se apresentam. Escrever sobre esses tristes episódios? Qual seria a razão, se tantos outros com autêntica competência o fazem? Portanto, não será esse pantanoso terreno aquele em que ousaria colocar opinião pessoal, um mínimo post sequer. Certo dia, conversando com respeitado cientista político, dizia-me ele que a cada artigo que fluía de sua mente a respeito da realidade político-empresarial do Brasil, e destinado a determinado veículo de comunicação, seu batimento cardíaco chegava às alturas e a sensação de fel que sentia após redigi-lo atestava o descontentamento. Não que me queira furtar, mas são tantos a denunciar, tão cristalina a verdade ! Contudo, a impunidade, mãe de tantos vícios, chaga a sol aberto nessas terras tropicais, está sempre a apontar para o desvario e o surrealismo absoluto dos quais somos observadores sem a menor possibilidade de reação, pois as máquinas dos compadrios estão instaladas. Se o fugir à verdade é soberano nessa triste realidade brasileira, com o beneplácito dos três poderes, nada a fazer, a não ser protestar, sabendo que ouvidos e olhos bem tampados – estes sim, definitivamente vendados à justiça – descartam por parte da “trindade” o encontro com a realidade gritante das ruas.
Persisto. Até quando, não sei. Os posts continuarão a fluir, livros vão sendo penetrados com prazer acentuado, o cotidiano é sempre surpreendente e a música permanece intacta. Entre suas dádivas, está a de me fazer conhecer repertórios sempre renovados, sons inefáveis, raças e regiões. A geografia e o contato humano no Exterior possibilitaram a extensão sonora, e cada centímetro percorrido e um novo encontro calam fundo em meu coração. As corridas pelas ruas e em provas que me são caras, pela proximidade com a gente saudável e feliz, têm-me, como acréscimo, melhorado o desempenho físico. E por fim, a família. Sem a compreensão dessa âncora, que atenua turbulências, não estaríamos possivelmente à deriva? Complementando meu post inicial de 2 de Março de 2007, continuemos cúmplices. A guarida do querido leitor é chama que não se apaga, e o seu contato, mesmo que distante, faz-me ainda mais refletir sobre o grande mistério, a existência.
This week the number of visitors to my blog reached 50.000. I would like to take this time for a few words of gratitude to those who, working behind the stage, help me keep the blog and also to recollect the subjects that are dearest to me: music, books, travels, family, friends, the man in the street.
Comentários