A Negação como Defesa
Rien ne naît ni ne périt, mais des choses
déjà existantes se combinent, puis se séparent de nouveau.
Anaxágoras de Clazômenas (500 a.C – 428)
Rien ne se perd, rien ne se crée, tout se transforme.
Antoine-Laurent Lavoisier (1743-1794)
Estava a aguardar consulta e fui até a janela do consultório que dava para um estacionamento. Carros chegavam e saíam, e os funcionários colocavam os cubos numerados que fazem parte do cotidiano nesses incontáveis estabelecimentos guarda-carros da megalópole. Modelos diferentes de montadoras fixadas no país. Dei-me conta, mais pormenorizadamente, da mesmice dos veículos e pensei nas propagandas que inundam televisores, rádios, jornais e revistas, a glorificar o arrojo e originalidade das linhas de tal novo carro lançado. Contudo, para um leigo, são todos os modelos muito parecidos, diferenciando-se através dos detalhes. Se dirigentes dessas montadoras forem entrevistados, tomarão como injúria a palavra imitação, mas que ela existe é evidente, mesmo que camuflada por “inspirado em vaga ideia”. Mutatis mutandi, o mesmo ocorre com todo tipo de mercadoria à disposição do consumidor. Fabricantes recusam-se a admitir que partiram de modelos concorrentes que ditaram inovações. Estes, por sua vez, foram desenhados a partir de protótipos de toda espécie de firmas. Essas observações levaram-me a reflexões.
Já na Grécia antiga, mímese designaria imitação – imitatio, em latim -, e os filósofos gregos debruçaram-se sobre o conceito, mormente Platão e Aristóteles. No século XV, sob outra égide, o célebre Imitação de Cristo, atribuído a Tomas à Kempis (1380-1471), dava ao homem a prerrogativa de seguir os passos de Jesus na aplicação de conduta ditada pelos Evangelhos. Livro de cunho devocional, proporcionava ao fiel o modelo de virtude. Teve enorme guarida durante séculos. Santo Inácio de Loyola teria se inspirado na obra, a fim de estabelecer princípios espirituais.
O termo imitação tem sido compreendido como pejorativo. Dificilmente alguém aprecia essa palavra quando a si aplicada, mas a história tem evidenciado que os acúmulos do conhecimento se baseiam em algo já pensado. Dir-se-ia que um degrau a mais no longo caminho em direção ao desvelamento.
Se observarmos os movimentos artísticos – pintura, escultura, música, teatro, literatura – e, mais recentemente, o cinema, poderemos sentir com clareza, através dos séculos, aquisições que paulatinamente estariam a configurar novas técnicas relacionadas às artes, mas que sofreram influências do passado.
Parte-se sempre da aquisição daqueles que permaneceram pela qualidade, referências paradigmáticas, estabelecendo-se então princípios orientativos para o aprimoramento. Legião de aprendizes dirigem-se diariamente aos museus ou às escolas especializadas e retratam o que foi realizado e que perdurou, assim como modelos ao vivo. Escultura, pintura e desenho estimulam essa possibilidade do vir a ser. Busca-se, através da imitação, chegar ao conhecimento das técnicas elementares às apuradas, que servirão no futuro, se qualidade houver, à própria criatividade daquele que está, de certa forma, a imitar ou a reproduzir gestos e traços.
Na Música, o termo Imitação é utilizado quando frase anteriormente exposta é novamente apresentada, alterada ou não, em outro segmento da textura musical. Essa característica repetitiva poderá obedecer a inúmeros critérios na organização da obra. Sob outra égide, as técnicas das escolas de composição não estariam a estabecer a constante presença de alicerces seguros que demonstram origens? Para a interpretação, que maior modelo para um estudante do que ouvir os grandes mestres?
Não reconhecer que ideias foram extraídas de acertos seria falta de modéstia. Quando o ilustre compositor Francisco Mignone (1897-1986) escreveu A Parte do Anjo – Autocrítica de um Cinquentenário (São Paulo, E.S.Mangione,1947), teceria considerações sinceras e sem preconceitos a respeito do plágio. Em sendo o aproveitamento de “elementos fecundos da criação alheia”, considera que “Ninguém é inteiramente pessoal. O que devo é organizar essa faculdade de maneira a me aproveitar do alheio”. Observa: “Todos os grandes artistas de todas as artes foram enormes plagiários. O plágio só é condenável quando feito com a intenção de roubar o sucesso alheio”. Menciona poeta paulista: “Guilherme de Almeida plagiou descaradamente Pierre Loüys, mas conseguiu fazer as admiráveis Canções Gregas”. A acompanhar a História: “Foi a tempestade de Ulisses, em Homero, que deu a tempestade de Virgílio, e esta deu a tempestade de Camões. São tempestades idênticas, e no entanto… são três tempestades!” Enumera compositores que permaneceram na história como tendo recorrido às aquisições de seus ascendentes: “deixar de bobagens e de pruridos de ser original. Originalidade está na lógica da criação e si Debussy é feito de uma parte de franceses (até de Massenet!), e uma terça parte de Moussorgsky, lhe bastou botar uma terça parte de Debussy na sua criação para ser original e chefe de escola!” Explicaria essa atitude a adesão a preceitos europeus no quesito composição. Fá-lo conscientemente, mas se fosse criticado e “si os outros disserem que estou imitando, si disserem que a minha invenção melódica é banal, que estou mostrando o meu rabinho italiano em meu brilho e violência apaixonadas, mandarei todos àquela parte”. As convicções de Francisco Mignone permaneceram ao longo das décadas. Cerca de um ano antes de sua morte, ocorrida em 1986, escreveu-me carta a ratificar convicções: “Junto vai a ‘Parte do Anjo’. Você vai encontrar a minha maneira de ser como artista. Continuo e permaneço sempre o mesmo!”
O notável escritor português Miguel Torga (1907-1995) teria compreendido a proximidade entre imitação e acúmulo, a resultar no próprio estilo de um autor. Em palestra, explicaria: “Acham que é possível ser um espontâneo, saltar para dentro da arena literária e fazer uma obra assim de qualquer maneira? Quando um escritor escreve uma coisa significativa, fá-lo tendo em conta toda uma legião de escritores que o precederam. Numa literatura como a portuguesa, que tem 700 anos de idade, não acham que essa herança é uma carga muito pesada? Acham que é possível escrever sem saber o que escreveram todos os antepassados da língua? Sem fazer um esforço prévio?” Em termos literários, como musicais, ter conhecimento intenso do que foi escrito ou composto, apenas dará consistência à obra. Desse entendimento poderão eventualmente advir proximidades que levem à imitação, realizada conscientemente ou não.
Mario Lavista (1943- ), notável compositor mexicano, tem precisão quanto às influências sobre sua obra. Em entrevista a mim concedida em Julho de 1989 e publicada um ano após na Revista Música da USP, observou: “Eu estou convencido de que elegemos nossos antecessores e quais são nossos avós. Eu elegi Mozart e Debussy como meus antepassados, mas essa escolha não foi sempre imutável. Há muitos anos, Webern foi meu antecessor; num futuro próximo, poderei eleger um outro”.
Influências notórias encontramos em basicamente a totalidade da criação humana. Faz parte da trajetória do homem. Desde os genes contidos no útero materno até a morte, estamos sempre a receber impactos que têm peso decisivo em nossa conduta. A imitação bem administrada e “autêntica” também integra esses acervos. Não seria a tradição dos povos Culturas sobrepostas? Religião, costume, língua não subsistem pela traditio e pela repetição? Quando os cravistas em França nos séculos XVII e XVIII e Olivier Messiaen (1908-1992) evocam o onomatopaico, não buscam, através da douta escrita musical, reproduzir o canto dos pássaros e das aves? Em La Poule (1728), Jean-Philippe Rameau (1683-1764) chega a escrever na partitura as hipotéticas sílabas da galinha. Em toda a história da música há exemplos desse emprestar da natureza sons e ruídos que lhe são característicos. Cachoeiras, relâmpagos, trovões, sem contar os emitidos em batalhas, evocação de instrumentos vários, até a eclosão do romantismo, sob égide outra, a clamar o sentimento humano como expressão maior.
Clique aqui para ouvir La Poule, de Jean-Philippe Rameau, com J.E.M. ao piano
Autores se inspiraram em temas consagrados como citação e tem-se uma profusão dessas menções. Possivelmente, o antológico Dies Irae tenha sido um dos mais citados na história. Mozart, Verdi, Berlioz, Liszt, Saint-Saëns, entre tantos, utilizaram-se desse tema em obras específicas. Imitação? Talvez não. Citação sim, e clima outro para estruturas reinventadas a partir desse hino medieval.
Volta-me a ideia de carros antigos fotografados. Nos primeiros registros do início do século XX, poucas marcas, mas formatos bem próximos, independentemente da soberana cor preta. Hoje, muitas marcas, uma certa tendência para o cinza e grande semelhança nas linhas. Ou seja, nada mudou quanto ao conceito. Aperfeiçoamentos de montadoras “copiados” para modelos de concorrentes. Contudo, nega-se sempre a origem a motivar o plágio, e a propaganda, como assaz acontece, ajuda a vender a “originalidade absoluta”, mesmo que seja a partir do pormenor. E todos parecem satisfeitos nessa parafernália. As diferentes emissoras de rádio insistem, cada uma à sua maneira, mas com incrível dose imitativa, que os seus comentaristas são os melhores do Brasil; antigripais de tantos fabricantes proclamam seus remédios como os únicos que liquidam a gripe. É só ler a bula e verificamos a identidade dos princípios ativos. Sob contexto próximo, igualdade absoluta nos propósitos, repetições flagrantes para o ouvinte. Anátema dos poderosos à palavra imitação, apesar de ser ela tão evidente. Aceitá-la com naturalidade seria prova de grandeza dessas empresas, impedidas de acatá-la por motivos unicamente voltados à necessidade de demonstrar primazia. Nas artes seria plausível acreditar que majoritariamente artistas e artesãos não negam ascendendências transparentes. Tornar-se-ia evidente que o curso do rio continua e que as águas que retornam às suas cabeceiras fazem parte do ciclo da natureza. Ciclo do homem, sempre a renovar a partir de ensinamentos do passado.
Watching cars going to and fro at a parking lot, I observed once more how similar to one another they all look, differing only in details. The industrial design of one is blatantly copied by another, though automakers vehemently deny it. This was the starting point of a reflection on mimesis or imitation, a word in general considered pejorative. However, history shows that in any field of knowledge – when talent exists – pre-existent models function simply as starting points for innovative ideas of one’s own making.
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