Ives Gandra da Silva Martins
O verso errado é um delito.
Guerra Junqueiro
A Poesia é a amada filha da Música…
Idalete Giga
O ano de 2010 marcou o aparecimento de quatro livros de sonetos do ilustre jurista Ives Gandra da Silva Martins (Meu Diário em Sonetos. São Paulo, Pax Spes, 2010, 4 volumes). A singularidade da obra reside no aspecto sequencial ininterrupto, pois o tributarista não deixou um só dia do ano de registrar um soneto em diário que lhe foi presenteado.
A facilidade pode ter várias causas, desde a natural predisposição, como também a prática sistemática. No caso de meu querido irmão Ives, esse último atributo vem da adolescência. Habituado à leitura dos poetas de todos os tempos, reunindo-se com outros jovens cultores da poesia, Ives serviu-se da métrica e da rima como discurso rotineiro e correto, e fazer poemas ou sonetos tornou-se prática natural. Não estaria neste espaço a tecer juízo de valor devido à ligação sanguínea que certamente influencia qualquer posicionamento. Contudo, ao generoso leitor diria que o emprego contínuo da fórmula “matemática” da colocação das palavras propicia ao cultor da poesia manter caudaloso dicionário mental de rimas que, ao ser acionado pelo impulso da escrita, lá estará a oferecer ao vate a terminação precisa, após a assimilada divisão silábica. Frise-se que na música, quando da feitura de formas tradicionais, todo um acervo de medidas, como as disposições do contraponto e da harmonia já integra a mente do compositor. Em ambos os casos, na poesia ou na música, será a qualidade do autor que determinará a perenidade da criação, e nesse item a história é implacável.
Na nossa juventude, era Ives que, a atender apelos dos irmãos quando algum namorico despontava, escrevia os sonetos. Indagava-nos sobre o tipo físico e a índole da namoradinha e imediatamente surgia o poema. A nós, apenas copiar aqueles versos “encomendados”. Ives era repentino e causava-me admiração a rapidez com que escrevia, sem falhas. Bons momentos que ora rememoro.
O derivativo do grande jurista sempre foi a poesia e são inúmeros os seus livros de versos. Nesses quatro, publicados a cada trimestre de 2010, Ives trata dos temas do cotidiano: o olhar a vida, efemérides que lhe são caras, a lembrança de uma amizade, os sofrimentos perante às delicadas intervenções cirúrgicas a que se submeteu e, a imperar, sua esposa Ruth, verdadeira inspiradora de quantidade expressiva nessa imensa coletânea e em outras igualmente. Lembrar-se-á do aniversário da morte de nosso saudoso pai, 19 de Maio, e em dia preciso escreve: Há dez anos meu pai deixava o mundo,/ Em que por mais de um século viveu./ Inda conservo em mim o olhar profundo,/ Que me dizia bem qu’eu era seu.// Trabalhou desde cedo sem parar/ E foi autodidata no que fez./ Atravessou, um dia, o largo mar/ P’ro Brasil não deixar nenhuma vez.// Casou com minha mãe a quem queria/ Co’amor que de modelo me serviu./ Declarava-lhe o amor a todo dia,/ Mesmo quando mamãe se fez senil.// Quanto dos dois saudades hoje tenho,/ Num querer que por eles bem mantenho.
Todas as tendências que transformaram a arte da poesia nas fronteiras da segunda metade do século XX não desviaram a atenção de Ives. Permaneceu amante da métrica e da rima. Essa fidelidade é consciente, pois priva da amizade de grandes poetas, que professam formas do modernismo à total decomposição métrica e da palavra. Virtude ecumênica do irmão que o levaria um dia à Presidência da Academia Paulista de Letras.
A imensa respeitabilidade que Ives adquiriu através da competência de seus pareceres, traduzida em mais de uma centena de livros jurídicos, não foi suficiente para – inconsciente pulsante -, afastar o desalento. Estará explícito em tantos sonetos da coleção em que a morte, a dor, o envelhecimento se apresentam como temática. Não seria pelo fato de, qual pregador no deserto, ter defendido com vigor todas as causas que denunciavam a corrupção e a ganância, o despudor, a deterioração dos costumes, a máquina estatal paquidérmica, os tributos em ascensão permanente, os atos governamentais tantas vezes descabidos, a mentira sem rubor? Tal D. Quixote, Ives encontrou seus moinhos de vento e ideais que se estiolaram pela ação predadora de gerações não humanistas são expressos, após filtração em sua mente, de maneira clara, sem subterfúgios, poeticamente. Sabe ele que a insensibilidade está geometricamente a alterar o mundo de maneira avassaladora. O homem materialista a desconhecer o próximo mais próximo. Mas há que lutar. E Ives guerreia em artigos antológicos a denunciar infâmias, desvirtuamentos, descalabros. Seria impensável todos esses aspectos de um batalhador não vazarem para o verso. O pensar transparente do Ives jurista a transmitir para o Ives amante da poesia o amargo sabor do impossível.
Quando o irmão falou-me do “diário”, imediatamente mencionei meu dileto amigo, o excelente artista plástico Luca Vitali. Disse-lhe que, ao encontrá-lo, leio o blog a ser publicado, cuja cópia se encontra em meu bolso. À mente privilegiada do artista nada escapa e, como já mencionei em posts anteriores, Luca ouve, a desenhar mentalmente. Horas depois ou no dia seguinte recebo o brinde que me encanta, sua interpretação em desenho do que ouviu, geralmente em charges jocosas ou irônicas, a posicionar o amigo músico no epicentro da narrativa literário-pictórica. Ives aceitou de pronto a proposta e Luca recebia, ao fim de cada trimestre, a coleção pertinente. Selecionava os sonetos que mais lhe diziam e, numa concepção diametralmente distinta daquela destinada às ilustrações de meu blog, revelou a faceta sensível, humana e despojada que caracteriza o grande artista.
Meu Diário em Sonetos é, pois, um marco na vida de meu irmão advogado, professor e poeta. Continua sua senda a interpretar os densos códigos jurídicos e a poesia etérea. A pena, que redige pareceres que estabelecem jurisprudência neste país de contrastes, sabe ter suavidade para destilar métrica e rima. Nesse percurso singular, uma verdade, a admiração de todos os que têm o privilégio de conhecê-lo.
O poeta de São Paulo, o vocacionado Paulo Bonfim, escreve à guisa de introdução:
Para Ives
Meu diário de sonetos:
A caminhada de um místico
Sob a luz de seus quartetos,
O amor palpitando em dístico.
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Last year marked the publication of 4 books of sonnets written by my dear brother and great jurist Ives Gandra Martins. Following conventional rhyme schemes, he talks about everyday life, dates that are important to him, friendship, the suffering with the many surgeries he underwent and, above all, his love for his wife. The uniqueness of the work lies in its unbroken sequence, since the author wrote a poem for each day of the year, each one with a particular mood. Illustrations by the gifted artist Luca Vitali enrich the books, adding another level of interest to the reading.