Quando a Mente Viaja no Sonho Quimérico
Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa, que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,
Existe, sim : mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.
Vicente de Carvalho
Durante dez anos fui analisado pelo excepcional psicanalista Eduardo Etzel, que, entre tantos dons, tinha o da pesquisa. Seus estudos sobre a Arte Sacra Brasileira são os mais aprofundados realizados em nosso país e resultaram em livros referenciais. Foi meu Grande Mestre nesse caminho, que me levou, durante mais de 10 anos, à tentativa de desvelamento da criação da imaginária popular no Vale do Paraíba. Certo dia em que o cotidiano não era sorridente, Etzel falou-me dos paraísos imaginários, aqueles em que nos refugiamos em momentos decisivos e que nos dão forças para continuar. Perguntou-me se os tinha. Afirmei-lhe que Horta, nos Açores, Bragança Paulista, Gent e Lisboa faziam parte de um universo intocável. Disse-me serenamente que nesses locais estariam os paraísos geográficos imaginários. E os próximos? Lembrei-me da leitura prolongada antes do sono reparador. Sem contar, é certo, determinado espaço do lar que serve para solilóquios e reflexões. Lembro-me de ter visitado um amigo e ele me disse que nos, momentos de recolhimento, buscava sempre a mesma poltrona. Simples, certamente a velha companheira deveria ajudá-lo nesse relaxamento da mente.
Estava a conversar com Magnus sobre essas fugas mentais, que tendem a ocorrer quando as cenas que se nos apresentam nesse país dos conluios chegam a limites incontornáveis. O Poder corrompe e traz consigo, numa grande enxurrada, empresas privadas acólitas. Somos impactados diariamente pelas notícias de descalabros de toda a ordem. Nos momentos de solilóquio reflexivo podemos realizar essa diáspora circunstancial, e cada um encontra seu paraíso individual aqui ou alhures. Uma dileta amiga, após as notícias do cotidiano, “viaja” momentaneamente para outros mundos e vislumbra nesse universo um paraíso impensável em nosso planeta. Retorna logo a seguir, mas sempre disposta a novos mergulhos, pois seu ceticismo é atávico.
Estou a me lembrar de diálogo enriquecedor que mantive com Boris Chapovalov, notável pintor russo de São Petersburgo, que visitava todos os anos a Bélgica Flamenga para expor suas pinturas na Galerij La Perseveranza, anexa à Rode Pomp, em Gent. Boris a cada ano pintava o painel da sala de recitais da Rode Pomp. Subia as escadas, fixava o painel do ano, alegórico, imaginativo, riquíssimo em cores fortes e jamais havia semelhança com a grandiosa pintura precedente. Numa noite gélida, com neve bem espessa, saímos e fomos a uma das praças beber a célebre triplet, cerveja cujo teor alcoólico beira os 15º. Lá pelas tantas nossos decibéis sonoros, pictóricos e discursivos estavam bem atuantes e plenos de entusiasmo. Na véspera oferecera-me duas pequenas pinturas sobre cartão, que representavam casas isoladas. Conversamos sobre paraísos imaginários e a possibilidade do irreal despontar nos grandes painéis alegóricos da sala de recitais. Perguntei-lhe se aquelas pinturas sintetizavam seu paraíso interior, refúgio desse mundo e, paradoxalmente, a manifestação de seu de profundis. Boris, com sua vasta cabeleira e barba desalinhadas, sorriu, a dizer que as alegorias surgiam surpreendentemente no ato da criação à maneira de um vulcão. Apenas externava essa manifestação forte e intuitiva que lhe vinha à mente, sem censurá-la, tampouco discipliná-la. Disse-me que as ideias pré-pinturas poderiam, sim, fazer parte de um refúgio imaginário. Sorria, a dizer que gostou das palavras. Contudo, silenciou durante um bom tempo. Entre um gole e outro da Trapist, observou com tranquilidade. “Não, o meu paraíso imaginário está naquelas pinturas que eu te ofereci”. Duas casas simples perdidas na imensidão das estepes russas. Continuamos nossa conversa até o fechamento do bar, lá pela meia-noite. Como adora a música de Alexander Scriabine, perguntou-me se o compositor tinha seu paraíso, mormente nos anos finais, quando música e textos dispersos místico-filosóficos invadiram paulatinamente o seu pensar. Sim, Scriabine o teve e aquele Cosmos imaginário – talvez outro bem diferente daquele de minha amiga cética – apontava para a paz interior e a reunião de todas as Artes em uma comunhão plena. Sorriu novamente e afirmou com discreta ironia: “Meus painéis são parte de um Cosmos que não me abandona. É possível que eu tenha dois paraísos”. Saímos do restaurante-bar, caminhamos para nossos destinos, cada um a refletir ou a sonhar com o paraíso que aflora quando o invocamos.
On mental escapes to imaginary paradises when one feels depressed and cannot find the key out.