São Paulo – Campinas – Barrinha – Ribeirão Preto
Não há a menor dúvida.
Precisamos recuperar a precária malha ferroviária.
E com urgência.
Mas não podemos continuar sem metas no campo ferroviário.
Não podemos assistir passivamente
ao encolhimento da já ínfima rede ferroviária do país.
Antônio Ermírio de Moraes (2005)
Recomecei os treinamentos. Por três vezes, após um mês inativo motivado pela cirurgia da mão. Findava meus 8km quando encontro meus amigos aposentados, sempre sentados no mesmo lugar, próximo à esquina. Durante aqueles minutos de alongamento a conversa fluiu com descontração. Não faltaram palavras relativas ao Ministério dos Transportes e à legião de figuras que dele se aproveitaram. Falamos de rodovias e ferrovias, muitas daquelas no completo abandono, estas sem perspectivas de desenvolvimento. A corrupção estruturada de mãos dadas com a impunidade e o consequente descaso por nossas vias de transporte. Nada a fazer, a não ser que mentes sofram transformações. Sendo endemicamente doentias, realmente a solução tornar-se-ia um milagre.
De minha parte externei o que sempre pensei do Presidente Juscelino Kubitschek. Apostou em Brasília e na indústria automotiva. Quanto material não foi transportado por via aérea, a preço absurdo, para a construção da capital em tempo preciso? A vaidade como doença. Estiolava-se de vez, hélas, naquele governo, a chama deixada por Irineu Evangelista de Souza – o Visconde de Mauá. Só de pensar que no ano de 1854 o Visconde esteve totalmente à testa de nossa primeira ferrovia, lá deixando seus recursos pessoais, numa estrada com cerca de 18km. Juscelino praticamente nada fez a favor do projeto ferroviário, em detrimento de transporte infinitamente mais dispendioso. Tantos interesses estranhos! Prosperou no período a indústria de caminhões e de automóveis a enterrar o sonho do Visconde. Todo o mal estava feito. O lucro como missão. Caminhões novos, velhos ou carcomidos e mais carretas obliteram nossas estradas e vias nas cidades, mercê de acidentes diários. Dezenas de milhares anualmente entre mortos e feridos. Haveria esse contingente existisse uma malha ferroviária adequada? Impossível. A ganância a não se preocupar com sonhos e esperanças ceifados nas vias e estradas. Governantes posteriores minimamente se preocuparam com nossas ferrovias e os números comparativos com outros países apenas evidenciam a vergonhosa posição deste país continental. Temos cerca de 29 mil quilômetros de ferrovias. Os Estados Unidos mais de 220 mil, a França (15 vezes menor do que o Brasil) 36 mil, o Japão, territorialmente diminuto, 44 mil, a India, país bem menor do que o nosso e integrante do BRIC, mais de 60 mil…
O escandaloso caso do Ministério dos Transportes põe a nu a falência moral de legião de homens públicos, que não vem de agora. E as ferrovias que esperem o milagre, e as rodovias que almejem um dia reparos eficientes, a fim de que tantas mortes não ocorram. Outras vozes foram integrando o nosso grupo na esquina e nenhuma a discordar das conversas compartilhadas.
Nessa justa descontração e justíssimas observações, Ailton pergunta-me sobre comparações com as ferrovias européias. Externei que não há qualquer possibilidade de comparação, pois comparar-se o que existe de bem organizado e de qualidade da malha ferroviária com aquilo que é precariedade, desrespeito e insistência no descaso seria covardia.
Volto-me ao passado longínquo. Nos anos de 1955-56, meu ilustre professor de piano José Kliass foi convidado para lecionar em Conservatório de Ribeirão Preto, dirigido pela professora Diva Tarlá. Transmitiu o convite ao jovem discípulo para substituí-lo. Tinha eu 18 anos. Durante um ano e meio, todos os meses ou mesmo quinzenalmente ia eu a Ribeirão Preto, realizando um tipo de viagem que não dá para ser esquecida. Morava na Vila Mariana, pegava o bonde ao cair da noite, e do centro da cidade caminhava até a estação ferroviária. Primeiro trajeto: São Paulo – Campinas. Tínhamos poucos minutos para a baldeação. Uma correria. No comboio da Cia. Paulista reservava um leito na parte superior. Estreito, cama bem arrumada, mas com mínimo espaço. A porta de madeira corria por um trilho e lá ficava eu acomodado. Algumas horas depois chegava o trem a Barrinha, pequena cidade distante 30km de Ribeirão Preto. Um ônibus aberto, espécie de jardineira, levava-nos pela estrada empoeirada até Ribeirão Preto. Em duas ou três oportunidades ele falhou e foi substituído por um verdadeiro pau de arara. Os passageiros, em pé, seguravam nas varas de madeira e em uns bons 50 minutos chegávamos à cidade. Lembro-me que certa vez apanhamos um terrível aguaceiro. Nada a fazer, a não ser viver aqueles momentos inusitados.
Ao chegar na cidade dirigia-me ao Conservatório, tomava minha ducha e meu café da manhã e já começava a dar aulas, que se prolongavam até por volta do anoitecer. Entre os que frequentavam o curso, um que se destacava pelos reais méritos - tínhamos praticamente a mesma idade - estudaria a seguir durante dez anos na Europa, mormente na Hungria. Antônio Bezzan se notabilizaria como um dos mais respeitados professores de São Paulo, atuando intensamente e com discípulos que se projetam no cenário pianístico.
Findo o “expediente”, comia um lanche rápido e fazia exatamente, no sentido inverso, a viagem em direção a São Paulo. Meu professor José Kliass e meu pai entendiam que essa atividade iria dar-me uma noção maior da vida, suas necessidades, fortalecimento do caráter. Foi uma válida experiência.
Durante esse período, a Professora Diva Tarlá convidou-me para um recital de piano no Conservatório. Enviou-me passagem aérea, um luxo naquela época. Ao chegar à cidade seu pai acabara de falecer. Retornei no dia seguinte à minha urbe. Quinze dias após voltei para o recital, que enfim se concretizou. Lembro-me do DC 3 da VASP e da bela aeromoça de olhos verdes que, nos quatro trajetos, esteve a atender os passageiros. Namoro decorrente duraria poucos meses.
Ao ler o post a Luca Vitali, disse-lhe que, se um ET chegasse no Brasil e visse as estradas do país, excetuando-se as de São Paulo, e a precariedade ferroviária, fugiria como um rojão do território. Achou graça e fez um desenho atento. E de pensar que governantes e iniciativa privada estão a pensar em Copa do Mundo e Olimpíadas! Veremos.
A reflection upon the serious problems affecting our transportation infrastructure, in particular the railroad network, brought back memories of my youth, when I used to take a train to give piano classes in Ribeirão Preto, a city distant some 300 km from São Paulo, an adventure not to be forgotten.