Mais Lembranças após Estímulo
O que interessa na vida não é prever os perigos das viagens;
é tê-las feito.
Agostinho da Silva
Escreveram-me. Estimularam-me à narração de experiências em ferrovias européias. Não saberia quantificar as vezes em que me utilizei de comboios, meio tão eficaz, rápido, economicamente bem mais viável do que o rodoviário e sobretudo não ceifador de vidas, que se contam às dezenas de milhares anualmente em nosso país de rodovias precárias .
Estou a me lembrar das antigas ferrovias que ligavam Paris à Itália e Portugal. Nas fronteiras dos anos 50-60 eram lentas, mas eficazes. De Paris a Lisboa demorava-se 36 horas (vide Tribulações nas Fronteiras – Quando Ouvir e Parar Fazem a Diferença, 05/01/08), porém as ferrovias bem conservadas e os trens, sem o conforto de hoje, transmitiam segurança ao usuário. Raríssimos os acidentes. Da capital francesa a Roma, igualmente as mesmas condições, somando-se às paisagens magníficas nas regiões montanhosas entre os dois países. Quando estive em Nápoles para concurso de piano, o comboio saiu de Roma e era bem vagaroso. Lembro-me de que, na classe em que viajava, até caprinos e galináceos entraram. Mas tudo fazia parte do espetáculo. Todavia, todos esses deslocamentos já se prefiguravam muitíssimo acima da realidade brasileira hoje.
A partir dos anos 80 foram muitas as viagens por ferrovias pela Inglaterra, Alemanha, Bélgica, França e Portugal. Majoritariamente pontuais, trens bem mais modernos e o desenvolvimento dos chamados rápidos. Apesar dos comboios que ligam atualmente Lisboa a Braga (Alpha) em pouquíssimas horas, gostava muito do chamado Foguete, que percorria Lisboa-Porto em três horas, confortável e a manter estilo interior bem tradicional. Aliás, Portugal, com seus 900km de extensão, é bem servido por trens de passageiros e aqueles que ajudam a transportar os mais variados materiais. Apesar da gravíssima crise que o país atravessa, a rede ferroviária continua a funcionar bem.
Em França o país é totalmente cortado pela malha ferroviária. Os chamados TGVs cruzam algumas regiões a mais de 200km/h, levando os usuários rapidamente a destinos antes atingidos por aeronaves, que têm como empecilhos o longo período de check-in e as condições meteorológicas nem sempre propícias. Várias foram as vezes em que me utilizei desses comboios rápidos através da Thalys, que liga a França à Inglaterra, Bélgica, Holanda… Tudo a funcionar perfeitamente. Para quem precisa ir a alguma cidade pequena, fora desses trajetos dos rápidos há aqueles intercidades, que param em todas as pequenas estações e nos oferecem a certeza de chegarmos bem. Esses trens lentos existem em toda a Europa. Fazem parte de um cotidiano que possibilita ao cidadão agendar todos os seus compromissos antecipadamente. Incontáveis vezes viajei nos intercidades, mormente na Bélgica e Portugal. Ensina o viajante não apenas a sentir o cotidiano de um povo, mas a vislumbrar a paisagem, a vida campesina e as moradias típicas de cada região.
Dessas viagens, uma em especial ficou registrada. Em 1995, após recitais na Bélgica flamenga, fui tocar no Trinity College da Universidade de Cambridge, na Inglaterra (26/11). De comboio viajei até Lille, na França. Lá há duas estações ferroviárias, a Lille-Flandres e a Lilly-Europe. Ao chegar a Lilly-Flandres deixei minha bagagem maior no guarda volumes do terminal, atravessei uma ponte que liga as duas importantes estações e peguei o rápido para Londres. No regresso, faria baldeação, a fim de pegar outro rápido a sair de Lilly-Europe em direção a Paris. Eclodia naqueles dias uma greve nacional na França, que paralisou os serviços público e privado durante quase um mês (24/11 – 15/12). O trem parado, mas com mínima previsão de ser o último a partir para Paris e lá ficar estacionado. Atravessei a ponte, fui ao guarda volumes de Lilly-Flandres e lá me disseram que o depósito estava fechado devido à greve. Um sufoco. Após convencer um funcionário sobre compromisso inadiável em Paris, lentamente levou-me ao imenso guarda-volumes, pedindo-me para localizar a bagagem, pois, como era grevista, nada iria fazer. Após longos minutos consegui encontrá-la. A correr retornei a Lilly-Europe. Desolados, cerca de trinta pessoas que necessitavam ir a Paris aguardavam alguma solução. Subi num gradil e em voz alta disse que tentaria uma solução junto aos taxistas, pois os ônibus também haviam aderido à greve. Concordaram. Desci ao estacionamento dos taxistas e os convenci a levarem os passageiros até a Gare du Nord em Paris. Na plataforma – estávamos no final do outono -, comuniquei a decisão e, quando todos se preparavam para descer as escadarias até o terminal dos taxistas, um funcionário da estação observou que o comboio poderia sair imediatamente, pois os grevistas, que estavam a obstruir um pequeno túnel onde o trem passaria, devido ao frio subiram a encosta para tomar algumas bebidas que os aquecessem, certamente com forte teor alcoólico. Todos nós jogamos as bagagens no interior dos vagões e o rápido começou a trilhar. Ao passarmos pelo tal túnel, vimos os grevistas descendo rapidamente as encostas, a fim de evitar a circulação do trem. Não conseguiram. Tudo instantâneo, verdadeiramente no sufoco, mas chegamos incólumes à Gare du Nord.
Apenas como lembrança. Em 1989, seis meses antes da queda do muro de Berlim, dei três recitais em Potsdam e em Berlim, na então Alemanha Oriental. O bilhete ferroviário que recebi para o trajeto Paris-Berlim foi no comboio que seguiria após para Moscou, com partida na Gare du Nord. Absolutamente apinhado. Lotadíssimo mesmo. Minha passagem era para a primeira classe e fui o único passageiro do vagão, numa viagem que se estendeu do final de uma tarde primaveril à manhã seguinte, quando o trem chegou à célebre Alexanderplatz, em Berlim.
Nesta semana, uma reportagem especial televisiva mostrou que na Suíça – menor do que a ilha de Marajó – há 5.000km de ferrovias, e os comboios impecáveis não atrasam sequer dez segundos. Se de um lado a malha ferroviária européia bem parece uma teia de aranha, fica a vergonha absoluta de nossa inexistente atitude frente às ferrovias. O Estado terá um dia a eficácia de um aracnídeo na elaboração de nossa rede ferroviária? Até quando ficaremos à mercê do transporte rodoviário dispendioso e trágico? Quando as mentes dos governantes se abrirão para as vantagens do transporte ferroviário e, em regiões específicas, o hidroviário? Que estranhíssima sedução impede autoridades de olharem o óbvio, sendo pois subjetivamente cúmplices na mortandade anual nas rodovias mal conservadas desse pobre Brasil à deriva?
Tornou-se evidente, através de tantos depoimentos incisivos de brasileiros esclarecidos, que algo muito secreto, a levar o cidadão comum a desconfiar de conluios excusos, esteve a se processar nos últimos governos. Ficaria sempre a pergunta a respeito do porquê terem desprezado a única possibilidade real de transporte limpo e seguro em detrimento da quantidade de fábricas que hoje produzem camionetas, caminhões, carretas e outros veículos pesados. Poluição absurda, filas intermináveis quando de cheias e desmoronamentos de parte de estradas ou de precárias pontes, acidentes diários, friso, diários nas grandes cidades provocados pelos grandes veículos. Os tentáculos da indústria automotiva são poderosos. Nossos governos, atentos a vozes difíceis de serem traduzidas para o cidadão comum, cedem à pressão dos lobbies e nossas ferrovias não são vistas como prioritárias. Tampouco a conservação de nossas rodovias. Grande e rico país tão pobre em homens públicos!
Going on with the subject of my previous post, I recollect now some of my railway adventures in Europe and confirm my view that trains are a great way to move around: they run on time, pick you up and drop you off in major cities or small villages, allow you to meet more of the natives of the places you visit and are a much better alternative to road transportation if we consider traffic congestions, accidents and pollution output.
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