Navegando Posts publicados em janeiro, 2014

Um Passeio com Firmino, o Homem do Mar e do Vento

Firmino, o pescador, e o farol do Cabo de São Vicente. Foto: Ana Clara.

Assim o povo, que tem sempre melhor gosto
e mais puro do que essa escuma descorada
que anda ao de cima das populações,
e que se chama a si mesma por excelência a Sociedade…
Almeida Garret (Viagens na Minha Terra)

A paisagem do Algarve, em seu trajeto de algumas dezenas de quilômetros a partir de Lagos rumo a Sagres, ganha sentido outro quando percorrida de ônibus a ligar localidades da região. Percorrer freguesias, distritos e pequenas cidades nessas condições proporciona um outro olhar. Firmino, o pescador aposentado que, certo dia, confessou-me que o segredo do mar é o vento, acompanhou-me, e minha neta Ana Clara quis apreender o pensamento de vida e de sobrevivência nas águas algarvias, onde, durante 60 anos, Firmino viveu sua saga. Lentamente, o autocar deslizou pelas tortuosas vias e desfilaram Espiche, Almádena, Val do Boi, Budens, Salema, Figueira, Raposeira, Vila do Bispo (lá dei recital em 2011) e Sagres. Em todas, uma parada com direito a algumas curtas conversas do motorista com passageiros que subiam. Uma mulher, que desde o início da viagem falou em voz alta ao telemóvel, fez bem entender a fala da região, por vezes ininteligível. Sua narrativa era do cotidiano sem esperanças. Outros mais dialogavam sem emoção assuntos ligados ao tempo, ao frio e à chuva. As paisagens, passando rapidamente pela janela, mostravam um solo cansado, mas propício ao cultivo do milho, cevada e forrejo (forragem). Para tanto há necessidade da vontade, que existe para alguns e mostra-se desesperançosa para muitos. O maravilhoso das paisagens próximas ao mar mostra-se paradoxalmente antagônico à aridez de um solo sujeito aos ventos fortes que sopram acima das altas falésias.

Sagres. Em blogs anteriores já descrevi o deslumbrante espetáculo. Para quem vai ao Cabo São Vicente, ponto mais sudoeste da Europa e epicentro da Arte da Navegação através da Escola de Sagres, fundada pelo Infante D. Henrique no século XV, impossível não imaginar a intrepidez dos navegantes portugueses que deslumbraram o mundo com suas descobertas no período. Das altas falésias de São Vicente, serpenteadas além de Sagres, o mar se apresenta como desafio maior. A linha do horizonte sinaliza caminhos marítimos para o oeste, em direção às Américas, e para o leste, a fazer imaginar tantas histórias vindas do norte da África.

Falésias da região de Sagres. Foto: Ana Clara.

Dessas falésias, ao lado de Firmino, conta-me o amigo os desafios costeiros em seu barco, que à noite enfrentava águas tantas vezes bravias. Respeita profundamente a voz da natureza, pois bastam alguns minutos para que ventos e ondas gigantescas se formem, elevando às alturas a adrenalina do timoneiro. O mar é sempre soberano e tem-se de atentar aos seus humores. Como todo homem de profundo bom senso, Firmino conheceu a face da morte. Sim, foram repetidas as oportunidades em que se defrontou com o medo. Qual herói não o sentiu?

O amigo encontrou-se com velhos companheiros pescadores. Deles ouvi relatos do cultivo de ostras e da grande produção, que segue preferencialmente para a França. Mostraram-me curiosos utensílios. Por sua vez, Firmino Pereira fez-me conhecer os alcatruzes (potes) com uma entrada,  que servem para a captura dos polvos, e também a maneira como as redes são estendidas para a pescaria. Um sábio nesse tema tão apaixonante. Fica-me a impressão do comprometimento pleno desses heróis, que enfrentam mares inóspitos e não se intimidam ante a possibilidade do não regresso.

Num dia que se iniciou sombrio, frio e chuvoso, ao fim de tarde ensolarado e com temperatura bem mais amena, a luz da região sofre mutações. Como os impressionistas souberam captar essas nuances da cor nesse choque atávico das águas contra as rochas! Dá para minimamente entender o encantamento que esses pescadores sentem com essas transformações. Reservados em suas narrativas, de nenhum ouvi “histórias fantasiosas” de pescador. Essa gente algarvia denota sinceridade e o que é, simplesmente é, sem subterfúgios.

Vieram ao nosso encontro, conduzidos por Zé, irmão de Maria Elias, mulher de Firmino, Pedrosa Cardoso e Regina. Visitamos a igreja de Sagres, outros grandes paredões rochosos, pequenos vilarejos e praias de forte beleza, tendo como fronteiras as falésias.

A se pensar na atividade desses pescadores, hábitos, costumes, tradições e maneira de viver, percebemos que ainda não foram influenciados pelos grandes centros urbanos. O sentido da coletividade simples, do congraçamento, da ajuda mútua se faz presente. O dia, reservado ao descortino de uma atividade que sempre me surpreende, enriqueceu-me.

O homem do mar, em condições muitas vezes solitárias, tem no barco a tebaida exemplar. Não seria essa solidão, comum a tantas comunidades pelo mundo que sobrevivem daquilo que vem do mar, o eremitismo mais sagrado?

Fotos dos recitais em Saint-Germain en Laye e Lisboa, assim como as do encontro com o escritor Sylvain Tesson durante palestra, debate e noite de autógrafos de seu último livro, serão postadas tão logo chegue em São Paulo.

 

Viver o Presente a Pensar nos Projetos


Alguns dos presentes ao concerto do dia 11 no Musée Debussy, em Saint-Germain-en-Laye, entraram em contato. Alegra-me ouvir concordâncias quanto à proposta da apresentação. Captaram a mensagem. Debussy e Moussorgsky amalgamados nesse espirito lúdico, que bafeja raramente os eleitos. O jovem ator Alexandre Martin-Varroy leu, com rara expressão, textos pertinentes às obras que foram interpretadas. Para o velho intérprete, que apresentava as criações maiúsculas de Debussy e Moussorgsky, o sentimento era bem intenso. Traduzir o mais fielmente possível o conteúdo da identidade, aproximar dois gigantes da composição… Interiormente, sentia que Debussy convidava Moussorgsky para o diálogo, como fizera com Pélleas et Mélisande, após extasiar-se com a proposta de Boris Goudnov.

Se no day after conheci um dos escritores mais inusitados da atualidade, Sylvain Tesson, em longa entrevista plena de interesse, mais ainda considerei que a arte do pensar não conhece fronteiras. Uma longa travessia pelo deserto de Gobi pode despertar inúmeras reflexões a levar à narrativa escrita, que, sob outro contexto, têm semelhança com a longa preparação de uma obra com vistas à apresentação pública ou gravação. Ainda estou a decantar muitas das sábias considerações de Sylvain Tesson. Espaço nesse blog não faltará. Urge que seus livros sejam traduzidos para o português. Que enriquecimento para nossa cultura, que prefere tantas vezes o intelectualismo estéril. O wanderer ou vagabond Tesson é desde já considerado um dos mais importantes escritores em França. Tem pouco mais de 40 anos!

Alexandre Martin-Varroy (33) convidou-nos para assistir a uma peça teatral, Ce soir, il pleuvra des étoiles, um musical, diria, em torno das Guerras de 1914-1918 (centenário este ano) e 1939-1945. O Theatre Trevise esteve repleto e, durante uma hora e meia, Martin-Varroy (canto, montagem e escolha do repertório), Marie-Pierre Rodrigue (canto), Alix Merckx (contrabaixo) e Romain Molist (piano) encantaram o público na peça que teve mise en scène de Patrick Alluin. A atriz e cantora Marie-Pierre desfilou graça, drama, comédia, a surpreender o público. A contrabaixista, por vezes atriz e cantora, também merece destaque. Ficamos surpresos com o pianista. Percorrendo mais de um século, apresentou canções e peças em voga entre as Guerras e, à medida que a história se desenrolava, suas improvisações ganhavam roupagens novas e dum contido improvisar, navegou para soluções mais sofisticadas. Quanto a Alexandre Martin-Varroy, quanto talento!!! Autor do texto, sua representação alterna drama, comédia, mímica e uma bela voz ao longo de tantas canções. Ao final, os quatro artistas, todos jovens, dialogaram com um público super entusiasta.

Reuniões com alguns músicos, projetos para 2015 e muito estudo pela frente, pois, aos 76 anos, pretendo gravar dois CDs só obras ainda inéditas para meus dedos, sempre na mágica capela de Saint-Hilarius em Mullen, na planura flamenga, e a ter como engenheiro de som um dos maiores especialistas do planeta, Johan Kennivé. Não é essa uma das identidades com Sylvain Tesson? O desconhecido geográfico, para o excepcional viajante-escritor, não se assemelha ao desconhecido de mente e dedos do intérprete? Longos caminhos a serem percorridos pelo incansável caminhante, imensidão de ideias que estarão a surgir no cérebro do artesão pianista.

Deixamos Paris, um porto seguro desde os meus 20 anos. Inundam-me as recordações de tantos aportamentos à cidade bimilenar. Mais do que os lugares, as pessoas de meu convívio, que percorreram as décadas e já somam bônus na existência. Outras figuras diletas foram surgindo e fazem parte de meu universo afetivo.

E aterrisamos em Lisboa! Minha 49ª viagem à capital dos portugueses. Relação que extrapolou a sanguinidade. Portugal faz parte de meu respirar. Nesta sexta-feira,  aconteceram a conferência e o recital. A mesma temática apresentada em França. No momento em que o blog estiver entrando, Regina, nossa neta Ana Clara, queridos amigos músicos e eu poderemos ainda estar à mesa, a degustar um vinho branco Ermelinda, da península de Setúbal, a regar o bacalhau à Braz no Ribadouro, restaurante que frequento desde 1981. A tradição a partir do congraçamento…

 

Os 100 Anos de “La Boîte à Joujoux”

Claude Debussy Modest Moussorgsky

Confesso que, durante a passagem oceânica, por várias vezes veio-me à mente tantas outras travessias. Jamais iguais. Quando a dedicação foi à não repetição repertorial, toda viagem tem o cunho da diferenciação. O leitor perguntaria: “Não pertenceriam os ‘Quadros de uma Exposição’, incluído no recital, ao repertório tradicionalizado”? Só poderia responder afirmativamente. No presente caso, o que importa é a essência da proposta. Do momento em que levantei posicionamento de uma influência que Debussy teria recebido da monumental obra de Moussorgsky, tornou-se imperativo para este intérprete apresentar “La Boîte à Joujoux” junto aos “Quadros…”. Doravante amalgamaram-se na mente do intérprete.  Quanto ao ballet pour enfants, essa extraordinária criação que apresentei no Musée Debussy, na casa em que o compositor nasceu, é pouquíssimo apresentado. Tocado isoladamente já se sustentaria, graças à raríssima feitura e beleza rara. Pode-se juntar a obras consagradas de compositores super ventilados quando da montagem de um recital. Ousariam fazê-lo? Mas não, a frequência às criações de Debussy é quase sempre a mesma e, hélas, é insistentemente apresentado em recitais pelo mundo em obras que “penetraram os ouvidos”. Interessa aos empresários, satisfaz a mídia, acomoda a escuta do ouvinte, que não se preocupa com o descortino de outras composições do músico francês. O compositor é voluntariamente diminuído quando não se tem consciência de que tantas de suas obras são importantíssimas. Como exemplo, o ballet “Khamma”, escrito no mesmo período de “Jeux”, não é interpretado. Porém, um excelente músico francês, Charles Koechlin (1867-1950),  considerava-o superior a “Jeux”.  Princípio básico, “La Boîte à Joujoux“, original para piano, é obra prima para o instrumento, mas minimamente tocada. A versão para orquestra mostrou outros caminhos, assim como a transcrição para orquestra dos “Quadros…”, empreendida por Maurice Ravel. Frise-se, outros caminhos.

Nesse centenário que se está a comemorar, minha alegria é ainda maior, pois sempre que visito “La Boîte…” faço-o amorosamente, mormente nestes 100 anos de existência e na casa em que Debussy nasceu.

Sob a égide do entendimento o recital transcorreu a contento. A pequena, mas aconchegante sala do Muséé Debussy, abrigou admiradores da obra do grande compositor. Alexandre Martin-Varroy, ator, comediante, musicista e cantor preparou textos criando clima para a apresentação. Escritos de Debussy, de André Hellé e Moussorgsky foram lidos com rara expressão. Poderia acrescentar que estive sempre absolutamente à l’aise durante todo o recital que não teve intervalo. “La Boîte à Joujoux” e os “Quadros de uma Exposição” transcorreram no plano amalgamado, irmanados. A recepção não poderia ser mais intensa. Figuras ilustres da musicologia e criação fizeram-se presentes, entres as quais Myriam Chimènes, Alexandra Laederich, Anik Lesure, François Servenière e José Maria Pedrosa Cardoso.

A escolha individual tem de seguir o impulso natural. No final dos anos 1960 encontrei a minha senda. Ao atravessar o oceano na semana que passou estava consciente que a mensagem a ser transmitida não comportaria a repetição. Esse caminho pessoal faz-me, à maneira do viajante que busca o desconhecido, encontrar uma surda alegria. A renovação que nasce com a mudança das estações, com a vida que reencontra seu fluxo em todas elas, não seria a luz a nos indicar que a permanência no ar rarefeito, pode prolongar a vida, mas nunca oxigenar a contento nossas intenções?

Corroborando o pensamento, estive neste domingo pela manhã no lançamento do livro de um de meus autores preferidos, Sylvain Tesson. O acaso levou-me a ter conhecimento do evento. Durante a viagem estava a ler “Dans les Forêts de Sibérie“, e o novo livro “S’Abandonner à Vivre” era o centro do encontro. Durante mais de uma hora Sylvain Tesson respondeu aos questionamentos. Teremos tempo brevemente para voltar ao tema. Dizia o autor que esse renovar planejado é a essência da vida. Não importa o caminho encontrado. São tantos. A mente se abre ao descortino. Reflexões…