Um Passeio com Firmino, o Homem do Mar e do Vento
Assim o povo, que tem sempre melhor gosto
e mais puro do que essa escuma descorada
que anda ao de cima das populações,
e que se chama a si mesma por excelência a Sociedade…
Almeida Garret (Viagens na Minha Terra)
A paisagem do Algarve, em seu trajeto de algumas dezenas de quilômetros a partir de Lagos rumo a Sagres, ganha sentido outro quando percorrida de ônibus a ligar localidades da região. Percorrer freguesias, distritos e pequenas cidades nessas condições proporciona um outro olhar. Firmino, o pescador aposentado que, certo dia, confessou-me que o segredo do mar é o vento, acompanhou-me, e minha neta Ana Clara quis apreender o pensamento de vida e de sobrevivência nas águas algarvias, onde, durante 60 anos, Firmino viveu sua saga. Lentamente, o autocar deslizou pelas tortuosas vias e desfilaram Espiche, Almádena, Val do Boi, Budens, Salema, Figueira, Raposeira, Vila do Bispo (lá dei recital em 2011) e Sagres. Em todas, uma parada com direito a algumas curtas conversas do motorista com passageiros que subiam. Uma mulher, que desde o início da viagem falou em voz alta ao telemóvel, fez bem entender a fala da região, por vezes ininteligível. Sua narrativa era do cotidiano sem esperanças. Outros mais dialogavam sem emoção assuntos ligados ao tempo, ao frio e à chuva. As paisagens, passando rapidamente pela janela, mostravam um solo cansado, mas propício ao cultivo do milho, cevada e forrejo (forragem). Para tanto há necessidade da vontade, que existe para alguns e mostra-se desesperançosa para muitos. O maravilhoso das paisagens próximas ao mar mostra-se paradoxalmente antagônico à aridez de um solo sujeito aos ventos fortes que sopram acima das altas falésias.
Sagres. Em blogs anteriores já descrevi o deslumbrante espetáculo. Para quem vai ao Cabo São Vicente, ponto mais sudoeste da Europa e epicentro da Arte da Navegação através da Escola de Sagres, fundada pelo Infante D. Henrique no século XV, impossível não imaginar a intrepidez dos navegantes portugueses que deslumbraram o mundo com suas descobertas no período. Das altas falésias de São Vicente, serpenteadas além de Sagres, o mar se apresenta como desafio maior. A linha do horizonte sinaliza caminhos marítimos para o oeste, em direção às Américas, e para o leste, a fazer imaginar tantas histórias vindas do norte da África.
Dessas falésias, ao lado de Firmino, conta-me o amigo os desafios costeiros em seu barco, que à noite enfrentava águas tantas vezes bravias. Respeita profundamente a voz da natureza, pois bastam alguns minutos para que ventos e ondas gigantescas se formem, elevando às alturas a adrenalina do timoneiro. O mar é sempre soberano e tem-se de atentar aos seus humores. Como todo homem de profundo bom senso, Firmino conheceu a face da morte. Sim, foram repetidas as oportunidades em que se defrontou com o medo. Qual herói não o sentiu?
O amigo encontrou-se com velhos companheiros pescadores. Deles ouvi relatos do cultivo de ostras e da grande produção, que segue preferencialmente para a França. Mostraram-me curiosos utensílios. Por sua vez, Firmino Pereira fez-me conhecer os alcatruzes (potes) com uma entrada, que servem para a captura dos polvos, e também a maneira como as redes são estendidas para a pescaria. Um sábio nesse tema tão apaixonante. Fica-me a impressão do comprometimento pleno desses heróis, que enfrentam mares inóspitos e não se intimidam ante a possibilidade do não regresso.
Num dia que se iniciou sombrio, frio e chuvoso, ao fim de tarde ensolarado e com temperatura bem mais amena, a luz da região sofre mutações. Como os impressionistas souberam captar essas nuances da cor nesse choque atávico das águas contra as rochas! Dá para minimamente entender o encantamento que esses pescadores sentem com essas transformações. Reservados em suas narrativas, de nenhum ouvi “histórias fantasiosas” de pescador. Essa gente algarvia denota sinceridade e o que é, simplesmente é, sem subterfúgios.
Vieram ao nosso encontro, conduzidos por Zé, irmão de Maria Elias, mulher de Firmino, Pedrosa Cardoso e Regina. Visitamos a igreja de Sagres, outros grandes paredões rochosos, pequenos vilarejos e praias de forte beleza, tendo como fronteiras as falésias.
A se pensar na atividade desses pescadores, hábitos, costumes, tradições e maneira de viver, percebemos que ainda não foram influenciados pelos grandes centros urbanos. O sentido da coletividade simples, do congraçamento, da ajuda mútua se faz presente. O dia, reservado ao descortino de uma atividade que sempre me surpreende, enriqueceu-me.
O homem do mar, em condições muitas vezes solitárias, tem no barco a tebaida exemplar. Não seria essa solidão, comum a tantas comunidades pelo mundo que sobrevivem daquilo que vem do mar, o eremitismo mais sagrado?
Fotos dos recitais em Saint-Germain en Laye e Lisboa, assim como as do encontro com o escritor Sylvain Tesson durante palestra, debate e noite de autógrafos de seu último livro, serão postadas tão logo chegue em São Paulo.
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