Incontáveis Tendências
“Os sons não têm significação que lhes seja exterior.
Somente por vagas analogias podemos comparar
tal movimento musical a qualquer outro movimento”.
“Todas as leis da linguagem musical,
todas as regras que constituem o ‘métier’ do compositor,
nada são se não for relacionada à realidade sonora,
a existência concreta da música interpretada.
André Souris (1899-1970)
Marcelo foi direto à questão: “Professor, o que o senhor quis dizer ao colocar como epígrafe do último post a frase de Voltaire ‘a escuta se forma pouco a pouco, e três ou quatro gerações modificam os ouvidos de uma nação’ “? Aluno da década de 1980, Marcelo foi discípulo atento, que completaria curso na França após a graduação na USP. Convidei-o para um curto no local onde nos encontrávamos, após quase trinta anos sem vê-lo ou saber notícias suas. Dedica-se a uma atividade não musical, casou-se e tem prole que o entusiasma, mas não deixa de estudar piano, tampouco de estar atualizado sobre o que se passa na esfera musical. Primeiramente expliquei-lhe que em uma de suas missivas, que se contam às centenas, o grande François-Marie Arouet, que se tornaria conhecido como Voltaire, filósofo iluminista francês, referia-se à mudança de gosto da ópera francesa. Segundo ele, Jean-Baptiste Lully (1632-1687) “deu-nos o senso da escuta que nós não tínhamos. Mas Rameau o aperfeiçoou”. Tratava-se de Jean-Philippe Rameau (1683-1764).
Conversa iniciada, fomos divagando sobre o tema. A certa altura Marcelo me confessou que, mais de uma geração passada após nosso último encontro, deixara de ter afinidade com a música contemporânea, mormente a eletroacústica, e que se perde frente às numerosas tendências existentes. Era um adepto. Acreditando ser preconceituoso, foi a várias apresentações e perdeu-se mais ainda diante de propostas “antagônicas”, como afirmou. Comentei que a quantidade exagerada de autores de música atual se deve em parte àquilo que o compositor francês Serge Nigg (1924-2008) – primeiro a compor música dodecafônica em França – dizia. Segundo ele, estava sempre a ser apresentado a novos compositores, dado o fato de que todos assim se consideravam.
Durante nossa conversa sobre temas voltados preferencialmente à música atual mencionei um livro que lera em 1954, pois me interessava transmitir a Marcelo deduções relevantes. Tratava-se da primeira biografia sobre o J.S.Bach, escrita por Johann Nicolaus Forkel, nascido um ano antes da morte do biografado, ocorrida em 1750. Vertido para o espanhol (“Juan Sebastian Bach”. Mexico, Fondo de Cultura Económica, 1950), apresenta ao final três apêndices, Catálogo, Los Claves e El Clave Temperado, esses dois escritos por um dos mais extraordinários musicólogos do século XX, Adolfo Salazar (1890-1958). Ao abordar o Cravo Bem Temperado, de Bach, fá-lo com precisão, a evidenciar a determinação de Bach em confirmar a denominada “afinação igual”, um passo monumental em termos do caminhar musical. Os dois volumes da obra, contendo cada um 24 Prelúdios e Fugas, percorrem as 24 tonalidades maiores e menores e tem-se nessa gigantesca criação um dos pilares da composição musical. Como salienta Salazar, “a antiga afinação ‘acústica’ ou ‘física’, ‘natural’ ou ‘exata’ chega a se constituir paulatinamente em uma trava para a evolução musical, estorvo que era necessário debelar”. Apesar de debruçamentos anteriores sobre a matéria, Bach encerraria a polêmica com os dois livros do CBT. Quando do segundo volume, de 1744, portanto 22 anos após o primeiro, o temperamento igual já estava consagrado. Nele considera-se a afinação a partir dos doze semitons da escala, tornando, como exemplo, iguais na afinação o dó sustenido e o ré bemol, notas enarmônicas. Pela afinação “exata” anterior, verdadeiro dogma a obedecer a relações matemáticas da escala, existe uma diferença mínima na proporção de 80/81 entre os sons enarmônicos citados.
No apêndice em questão, Salazar apresenta a tabela da série harmônica. Desde a antiga Grécia já era estudada a vibração de uma corda esticada, que produz determinado som. Pitágoras (século VI a.C.), filósofo e matemático, notabilizar-se-ia nesses estudos a partir do monocórdio, instrumento primitivo constituído de uma caixa de ressonância e de uma corda apenas. Pitágoras demonstraria que a altura de um som é inversamente proporcional ao comprimento de uma corda. Dividindo-a ao meio e ao ser tocada a corda, teremos a oitava superior do som inicial. Dividindo-a em três partes e sendo novamente tocada (utilizavam um plectro), o terço da corda esticada resulta na quinta e assim sucessivamente (vide ilustração). Suas conclusões atravessaram os séculos.
Voltando à nossa conversa, Marcelo me perguntou a razão das incontáveis tendências da música contemporânea, mormente aquela voltada aos processos eletroacústicos. Foi quando mencionei a tabela da série harmônica apresentada no apêndice citado em que, à medida que a distância intervalar diminui, Salazar acopla-a à própria evolução da música ocidental. Essa interessante observação, não inédita, estabelece o tempo dos períodos da história da música a partir dessas “abreviações” dos intervalos. O leitor, mesmo sem conhecimento da escrita musical, pode acompanhar o processo através da ilustração. Estaria configurada a duração de práticas a partir do período histórico: monodia, polifonia, formação dos acordes, escalas várias e os microtons. “E daí, professor”? indagou Marcelo. Expliquei-lhe que todos os períodos históricos poderiam ter “explicação” considerando-se essas deduções. Se técnicas composicionais estabelecidas tiveram milênios, séculos e decênios dando a elas uma continuação ou transição cada vez mais abreviada, com os microtons e as infindáveis outras vibrações “infinitesimais” já não poderíamos sequer falar em anos ou meses. Seria nessa abreviação temporal acelerada que a metafórica Torre de Babel torna-se visível e… audível. Tem ela sido citada amiúde. Quantas não são as incontáveis tendências da música contemporânea acústica e mormente a da eletroacústica? Aquela destinada aos instrumentos com “sons fabricados pelo homem, produzidos por sua ação, e que ele pode modificar à vontade”, segundo Nigg, esta para aparelhagem eletrônica. Estamos diante de incessantes novos processos, afeitos prioritariamente à eletroacústica, quase todos explicados teoricamente por seus “criadores”. Isso é bom, isso é um mal? Apenas consequência da atualidade em que, anualmente, processos impensáveis anteriormente na área da tecnologia passam e são substituídos rapidamente por outros. Numa mesma cidade, procedimentos composicionais hodiernos não têm sequer homogeneidade escritural, mercê da diversidade e prolixidade. “Essas obras permanecerão”? pergunta-me Marcelo. Temo que não, pois o “compositor” afeito à tecnologia, tantas vezes sentindo-se “profeta”, está geralmente ligado à Academia. Subvenções de Fundações, Institutos de Fomento e Universidades dão-lhe guarida, pois tecnologia abre portas. Obra apresentada será logo mais substituída por outra já encomendada. Dificilmente o passo atrás será dado, pois importa, geralmente, o “inédito”. Como a tecnologia é rápida caminhante, aparelhagens do passado recente são esquecidas pelas do presente e, logo a seguir, estas também seguirão o mesmo destino, pois outras mais avançadas surgirão. Seria possível entender que a ininteligibilidade para o grande público dessas obras experimentais façam-nas permanecer em guetos precisos.
“Haveria solução”? indaga-me Marcelo. Acredito que a pulverização natural, a partir dos microtons da ilustração de 1950, é também sem retorno. Competentes e curiosos continuarão nesse caminho que, paradoxalmente, tem resultados surpreendentes em filmes, onde efeitos especiais exigem sonorização especial. A imagem dá à música eletroacústica uma dimensão interessante. Meu dileto amigo e compositor François Servenière, que praticou alpinismo e ainda pratica vela, escreveu-me recentemente a dizer que a tragédia na montanha ou no mar, na vida real, não tem a aura que o “público” gostaria, pois falta-lhe o som estéreo dos filmes que acompanha esses acidentes. Numa outra direção, creio que tantos são aqueles que romperam ou não aderiram aos muitos processos nessa área tecnológica. Compõem de maneira a criar obras inteligíveis, resultando composições de muito interesse, basicamente utilizando-se do arcabouço instrumental acústico ditado pela tradição e de formas e gêneros “reorganizados”. Na Europa, principalmente, tenho conhecimento de compositores super talentosos que estão a trilhar esse caminho. Sob outra égide, a literatura não é um constante renovar a partir da senda já traçada? A escrita é a mesma há séculos, muda-se o conteúdo. Não há ruptura, palavra muito apreciada, aliás, na esfera da “criação” musical.
Antes de partirmos, Marcelo comentou que “gostaria de anotar o nome de alguns compositores que escrevem para instrumentos acústicos sem esquecer o passado”. Mencionei alguns vivos: Gilberto Mendes, Ricardo Tacuchian, Mario Ficarelli, Paulo Costa Lima no Brasil, Eurico Carrapatoso em Portugal, François Servenière na França, Gheorghi Arnaoudov na Bulgária, Aleksandër Peçi na Albânia, Frédéric Devreese e Lucien Posman na Bélgica, entre tantos outros. Todos com escritas diferenciadas, mas não se esquecendo do passado. Muitas de suas obras podem ser encontradas no YouTube. Conversa revigorante.
I met a former student who I had not seen since the 1980s and during a chat over a cup of coffee we discussed musical trends through time. As a curiosity, I mentioned the harmonic series that, according to the great Spanish musicologist Adolfo Salazar, explain the length of the various historical periods.