Gesto Relevante que não Pode Ser Esquecido
Pensarem Brasil e Portugal como uma imensa possibilidade
de formação, investigação e intercâmbio artísticos.
Pensarem-se também como parte integrante do mundo lusófono e íbero-americano,
que continua a esperar em vão pelo “evento” que tarda
(“evento” entendido como estratégia ou atitude essencialmente cultural).
Há que soltar a “jangada de pedra” das amarras da sua condição periférica
e trazê-la de volta carregada de potencial contra-hegemónico.
Mário Vieira de Carvalho (26/02/2011)
Em um café de minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, que apresenta ultimamente sinais de degradação mercê do descaso público, estava a conversar com amigo bem articulado em sua ligação com o meio que cultua no Brasil música erudita, de concerto ou clássica. Esse encontro se deu há alguns anos. Eu acabara de retornar de digressão anual às terras lusíadas. Perguntei-lhe sobre o que pensava da música portuguesa. Respondeu-me que dela conhecia apenas respeitada pianista nascida em Portugal, que nos visita sempre atendendo a convites das sociedades de concerto de São Paulo. Insisti: “sobre a música portuguesa”. Finalizou: “creio já lhe ter respondido”. Comentei que ter nascido em Portugal, mas a perpetrar unicamente obras sacralizadas de alhures, não significa ter relação com a música portuguesa. A presença física do intérprete cosmopolita torna-o – seja qual for a dimensão de seu valor – apenas mais um cosmopolita, mormente se ignora por completo suas raízes. Pode-se ser cosmopolita, mas a relação sanguínea fá-lo divulgar o plasma criativo que percorreu e está sempre a deslizar pelo território que o viu nascer. Divulgar a essência essencial da criação de seu torrão natal e espalhar esse constante pulsar dimensiona a estatura sociocultural de um intérprete, sua verdadeira aspiração, seu objetivo, seu distanciamento da vaidade, palavra esta que, ao ver de Saint-Exupéry não é um vício, mas uma doença. Infelizmente, não se trata de caso isolado. Sem precisar aprofundamento maior, verificamos o ardor com que intérpretes russos, franceses, italianos, alemães, espanhóis, húngaros, brasileiros e de tantas outras latitudes e longitudes divulgam com reverência o repertório sacrossanto internacional, mas igualmente aquele de seus respectivos países.
Décadas têm passado e o desconhecimento no Brasil da qualitativa música produzida em Portugal, através dos séculos, caracteriza descaso e despreparo cultural de nossas organizações de concerto. Muitos dos intérpretes que nos visitam, vindos do hemisfério norte, retornam duas, três ou tantas mais vezes. Motivos insondáveis excluem sistematicamente o músico português. Raríssimas exceções. Tantos há de grande valor que poderiam apresentar-se anualmente no Brasil. Interpretam o acervo composicional estrangeiro, mas tocam e gravam o repertório português. Se, de um lado, há desinteresse das organizações, sob outra égide portugueses e luso-descendentes, que integram as inúmeras associações “culturais” portuguesas em São Paulo, não apenas desconhecem, como não se interessam minimamente pela música de concerto composta em Portugal ou alhures. Isso é um fato real. As pouquíssimas ações realizadas não tiveram a menor sequência, o que é uma lástima. Após mais de cinquenta anos a divulgar repertórios de nossos dois países, posso afirmar que o qualitativo composicional português dialoga tantas vezes com o que de melhor se tem em países tradicionalmente detentores de programações de seus autores consagrados. E não seria por falta de edições. Elas existem em Portugal, país tão menor que o Brasil, e obras do século XVI ao atual continuam a ser editadas. Recentemente escrevi sobre o “Passionário Polifônico de Guimarães” (vide post 23/11/2013), uma obra prima de editoração sob os cuidados do ilustre musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso. Os mais relevantes compositores portugueses continuam a ser editados, mas nós, brasileiros, desconhecemos e evitamos interpretá-los, pois não pertencem à “tropa de elite” constituída pelos autores superventilados, fora do sofrido “eixo cultural” Portugal-Brasil voltado à música. Nossos intérpretes não ousam frequentá-los e, se exceções meritórias existem, não conseguem romper a barreira estabelecida. Enumerar os excelentes compositores portugueses e o valor intrínseco de suas criações seria tarefa para muitos outros posts, a somar os que já escrevi a respeito. Pregar no deserto ou na aridez de nossa cidade têm a mesma dimensão do vazio ou do desconhecimento, tout court. Na ausência de convites para que músicos de terras lusíadas realmente envolvidos com a difusão da Música Portuguesa aqui se apresentem, situação constrangedora de indigência cultural se afigura entre nós. Não sendo convidados, menor ainda a oportunidade de conhecermos o repertório português e os músicos lusíadas que o reverenciam. E estamos a falar de Brasil e Portugal, em que a relação deveria ser de amálgama pleno. Triste ilusão.
Coube a um grupo de jovens idealistas, e até visionários, ousar trazer ao Brasil uma série de apresentações com repertório de Portugal. Antes dessa atitude tiveram a ousadia de sacudir, de maneira por vezes incisiva, o meio musical português, ao propor uma revista sobre música portuguesa, Glosas, não tendo basicamente apoios financeiros. Formaram o “Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa” (MPMP) e foram à luta. Comandados por Edward Luiz Ayres de Abreu, jovem compositor e musicólogo, lançaram-se numa aventura plena de desafios e incertezas. Guardando-se todas as devidas proporções, os navegadores dos séculos XV e XVI também não o fizeram? Está no sangue lusíada ser intrépido. Criaram a Revista Glosas e, ao longo de vários posts, externei o meu entusiasmo pela publicação que não encontra paralelo qualitativo no Brasil. Conseguiram chegar ao número 11, sempre nessa batalha insegura em nossos dias, a qualidade sem concessão. Como é difícil, lá como cá, não sucumbir aos apelos desse mal concessivo em detrimento da qualidade!!! A certa altura Edward Luiz e sua equipe buscaram singrar os mares em busca de uma identidade lusíada espalhada pelo mundo. O idealismo tem seu tributo a pagar e o grupo do MPMP bem sabe dessa barreira, mas, de maneira altaneira, está a conseguir com imensas dificuldades seus intentos. Vários núcleos foram criados, formados por especialistas do Brasil, da África e da Ásia. O grupo português já estava consolidado, integrado pelos jovens idealistas. Consultado por Ayres de Abreu, este músico, nos seus 75 anos, teve o prazer de indicar os nomes do núcleo brasileiro. Foi-me confiada uma coluna para cada número, “Ecos d’Além Mar”, sempre a tratar de tema relacionado, de alguma forma, à música portuguesa, permeando-a também, quando se faz necessário, por elementos importantes a envolver a música brasileira. Essa integração provocou acontecimento inédito, diria, pois artigos sobre compositores brasileiros e concernentes ao nosso passado e contemporaneidade foram publicados, redigidos por especialistas pátrios. Constância antes impensável. Um número (9) teve na capa o compositor romântico brasileiro Henrique Oswald e vários textos sobre o músico. No lançamento, em Setembro último, juntamente com dois também jovens talentosos músicos portugueses (Nuno Cardoso, violoncelo e Rita Morão Tavares, soprano), apresentamos récita na belíssima sala dos espelhos do Palácio Foz em Lisboa, unicamente com as obras camerísticas de Henrique Oswald. Entusiasmo e sala repleta, friso, e o leitor saberá as razões da ênfase. Lorenzo Fernandes, Guerra Peixe, Almeida Prado, Ricardo Tacuchian e outros mais já penetraram as mentes dos leitores portugueses através de textos brasileiros sobre suas obras e atuações publicados na revista Glosas. Infelizmente, está a me parecer, mão única.
Após uma longa busca relativa a apoios, enfim obtidos, Edward Luiz e seus colaboradores resolveram atravessar o Atlântico para aqui se apresentar, trazendo na bagagem obras relevantes de vários compositores portugueses do passado à contemporaneidade e realizando palestras. Tiveram guarida em várias capitais brasileiras: Rio de Janeiro, Salvador, Brasília, Goiânia, Belo Horizonte e São Paulo. O grupo se espalhou e, em cada uma das cidades, recitais foram apresentados com repertório camerístico (quarteto de cordas), canto e piano, piano a quatro mãos e piano solo.
Tive o prazer de assistir, no último dia 25 de Março, ao magnífico recital do jovem e promissor pianista português Philippe Manuel Vicente Marques (22 anos) em repertório maiúsculo, pois foram ouvidas obras de Antônio Fragoso (1897-1918), João Domingos Bomtempo (1775-1842) e Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Infelizmente, a sala do Centro Cultural São Paulo era imprópria para abrigar repertório inédito de envergadura. Piano sofrível, cadeiras a ranger, ruídos constantes do metrô!!! Primeiramente, expresso a minha alegria ao ouvir o talentoso pianista interpretando criações importantes que um executante em sua idade busca evitar, pois este estará muitíssimo mais preocupado com repertórios sacralizados, a atender a programação dos concursos internacionais e das sociedades de concerto, que mantêm a hegemonia repertorial. São tantos os interesses para que essa programação se perenize!!! E é nessa fase que tantos valores se integram de corpo e alma às obras que serão repetidas ad nauseam durante toda a vida. Isso é fato comprovado e as temporadas oficiais apenas ratificam a situação, hélas, vigente.
O belo Noturno em ré bemol maior do promissor e infortunado António Fragoso, falecido aos 21 anos atingido pela gripe espanhola, teve interpretação a valorizar os tantos segmentos que se apresentam. Romântica, a obra enriqueceu-se pela variedade de timbres, emprego da dinâmica e da agógica, que demonstraram a maturidade do pianista. Duas sonatas de Domingos Bomtempo foram interpretadas. O compositor, basicamente desconhecido entre nós, tem criações relevantes. Suas mais de uma dezena de Sonatas são muitíssimo bem escritas (Obras para piano – edição facsimilada. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1980) e, não raras vezes, nos fazem lembrar Muzio Clementi (1752-1832) ou J.B. Cramer (1771-1958). Salientaria a Grande Sonata em mi bemol op. 9 nº 1. Bomtempo exibe clareza na construção, virtuosidade característica do período e contido lirismo no movimento central. Philippe Manuel esteve sempre a revelar com segurança e inspiração conteúdos intrínsecos da Grande Sonata, valorizando-os e provocando os ouvintes que, pasmos, ouviam obra inédita qualitativa entre nós!!! O diminuto público conheceu igualmente a Sonata op 15nº 2.
De Fernando Lopes-Graça ouvimos Variações sobre um tema popular português (1927), primeira obra de seu imenso catálogo para piano, em que o compositor já apresenta suas impressões digitais, e o culto reinterpretado do cantar e da rítmica populares portugueses já se fazem presentes, assim com um tratamento timbrístico singular. Philippe Manuel soube diferenciar as 12 variações de maneira convincente. Das seis sonatas para piano de Lopes-Graça, a Sonata nº 2 (1939) caracteriza-se por intensos contrastes, a partir dos acordes dissonantes incisivos e repetitivos iniciais, sempre recorrentes durante o discurso do Allegro giusto. O pianista captou intensamente a mensagem do Andante. Sob outra atmosfera, o hispanismo contido no Allegro non tanto, uma das páginas que mais revelam a apreensão ibérica, fez valorizar o domínio técnico-pianístico de Philippe Manuel, que apreendeu inteligentemente a magia da flutuação de andamentos nessa obra singular.
O brilhante recital que, anunciado, deveria merecer público numeroso, contou com cerca de 40 ouvintes privilegiados. Para este intérprete, que está a batalhar há tanto tempo no sentido de revelar a música portuguesa no Brasil, mormente Lopes-Graça, é triste verificar que os músicos de São Paulo não compareceram para ouvir um recital tão significativo. Reiteradas vezes afirmei que a história ainda estará a evidenciar que Lopes-Graça está no patamar maior da composição do século XX. Compositor a dialogar na dimensão exata com os seus grandes contemporâneos europeus e, em termos brasileiros, com Villa-Lobos. Friso, dimensão idêntica. Sem contar o grande pensador que foi, pois deixou vasta literatura sobre música da maior valia. O nosso público se interessou pelo programa? Os nossos intérpretes visitam obras de Lopes-Graça e de outras figuras referenciais portuguesas? Perdida ótima oportunidade. Contudo, nesta nossa cidade imensa, há salas perpetrando a rotina. E para esses auditórios, certamente o público acorrerá. Nada, mas nada a fazer, a não ser lamentar.
No dia 24, Edward Luiz e eu nos deslocamos a Santos, pois o dirigente do MPMP queria entrevistar o notável compositor Gilberto Mendes para publicação posterior em Glosas. Aos 91 anos, Gilberto, sempre arguto, lembrou aspectos da trajetória e sua amizade fraterna com o grande compositor português Jorge Peixinho (1940-1994). Horas de congraçamento sob a égide da música.
Many times in this post I have mentioned Glosas, the magazine that covers the world of classical music in Portugal. Visionary and bold, the group of young musicians responsible for the magazine embarked on a tour in Brazil to promote Portuguese composers, performing in some capital cities. In São Paulo, I had the privilege of listening to the exceptional performance of the young (22) and promising pianist Philippe Manuel Vicente Marques and his daring recital programme: Antonio Fragoso, João Domingos Bomtempo and Fernando Lopes-Graça. Unfortunately, the city lethargic musical milieu did not attend the recital. As I insist in saying, concert-going public and promoters prefer the obvious show pieces, fearing new and untraveled paths. It is the standard repertoire that sells tickets. More-of-the-same is safer and perpetuates the huge mistake of presuming that what’s new is not good.