Diálogos que Enriquecem
Só os trâmites importam.
Eles é que permanecem e não o fim,
mera ilusão do caminhante que vai de pico em pico,
como se o fim alcançado tivesse um sentido.
Assim como não há progresso sem aceitação do que existe.
Antoine de Saint-Exupéry (Citadelle, cap. XLIX)
Um dos prazeres que a vida nos oferece é o diálogo. Há inúmeras possibilidades e níveis que se apresentam. O diálogo, nessas circunstâncias, se enriquece devido aos conteúdos trocados e às experiências em áreas aparentemente antagônicas, que se intercalam e abastecem a mente. Se Carlos, paraibano, meu companheiro de corridas, é um sábio nas tarefas mais intrincadas do cotidiano como pintura, eletricidade, encanamento, estando sempre a apresentar soluções exatas para problemas que, para mim, são de dificílima resolução quando o consulto, ainda assim é funcionário exemplar de uma empresa há cerca de 27 anos. Nas corridas, aos 50 anos, Carlos é, logicamente, mais rápido, pois não carrega 25 anos a mais. Carlos ou Batoré ou, ainda, Peba (apelido de infância que vem da Paraíba, pois costumava arrastar-se pelo chão à maneira do tatupeba existente no agreste) está sempre disposto. Nosso diálogo em torno do cotidiano tem interesse imenso, pois aprendo sempre com esse amigo de forte sotaque e linguajar simples e envolvente, que pontualmente me espera antes de raiar o dia quando das corridas oficiais de rua em São Paulo ou no interior próximo à nossa cidade. Nas corridas de 10k é Carlos que me aguarda na linha de chegada, já com a medalha de sua participação pendurada no pescoço e com palavras estimuladoras para o velho corredor.
Num universo outro, a troca semanal de e-mails com o compositor e pensador francês François Servenière, desde 2010 mais intensamente, preenche até a presente data bem mais de 1.000 páginas!!! Música a predominar, mas também literatura, aventura, cotidiano, degradação cultural que se acentua e a política plena de subterfúgios e de escândalos de nossos dois países. Diálogo virtual a atravessar o oceano nessa velocidade que nos espanta. Nosso intercâmbio de ideias pressupõe a existência do trâmite e, quando um de nós atinge o fim proposto, a somatória do diálogo permanece, a substanciar a longa caminhada.
Selecionei alguns temas esparsos desses últimos e-mails, para transmiti-los ao prezado leitor. Escrevia eu que, acentuadamente, artigos arbitrados e livros analíticos sobre música distanciam-se de minhas preocupações atuais por motivos claros: quantos não são aqueles escritos com a finalidade precípua de contar pontos em avaliação acadêmica, quantificar currículos ou obter recursos em Instituto de Fomento para serem lidos em incontáveis congressos que pululam nas agendas universitárias? É tão claro distingui-los, mas eles tendem a ser maioria nesse impulso voltado à produção. Sim, é preciso escrever para ser respeitado como scholar e, para o medíocre ou não vocacionado, a tarefa da elaboração de um texto torna-se um fardo que é preenchido pelo vazio de ideias, pela quantidade de notas de rodapé, tantas delas forçadas, e pela precisão do número de caracteres. Muitos são aqueles artigos que, espremidos, não produzem uma gota de saber. Justamente estava a ler livro com dezenas de artigos, alguns notáveis, outros de que desistia já no primeiro parágrafo. E mais grave, esses últimos aceitos e… publicados.
François Servenière comenta: “Sou um pouco como você desde sempre. Na minha juventude li grande quantidade de livros teórico-musicais do passado e da atualidade. Posteriormente, essa literatura acabou por me causar enfado, como uma serpente que morde sua cauda. Como você, encontrei mais inspiração nos relatos de escritores viajantes e nas aventuras épicas que me provocam arrepios, sensação que encontro ao descobrir partituras e gravações que me entusiasmam, mesmo que concernentes à música da segunda metade do século XX. Desta, mais acentuadamente tenho dificuldade de achar composições que me deem a sensação do absoluto e das exóticas terras virgens. Consideremos que há quantidade de teses que levam os leitores a zonas totalmente estranhas ao objeto precípuo do trabalho acadêmico. Quantas não são as vezes em que o mestrando ou doutorando é órfão da criação ou da interpretação e tem a imperiosa necessidade de compensar essa criatividade frustrada por elucubrações fora de propósito. É o que fez estancar minhas críticas sobre determinadas áreas, pois inúmeras vezes essas críticas podem ser filhas da frustração pessoal”.
Em reiterados posts abordei livros concentrados nos desafios de intrépidos aventureiros. Sob égide não distante do tema, desloquei minha atenção para os depoimentos de esportistas ou técnicos. Seus ensinamentos e a constante evolução de métodos visando ao aperfeiçoamento dimensionam nosso entendimento relativo aos quesitos essenciais para o músico: compreensão, disciplina, horas de labor, concentração, performance sem pressões. São tantos os canais televisivos de esporte e entrevistas com técnicos de todas as modalidades esportivas do Brasil e, sobretudo, do Exterior, deveriam fazer parte de diálogos entre professores de música e seus alunos. Paradoxalmente, esses ensinamentos têm analogia com procedimentos de um intérprete, assim como do corredor amador que eu insisto em ser. Acredito também que há maior atualização na técnica esportiva se comparada àquela aplicada à performance musical. Como esse processo tem a ebulição nos treinamentos (ambas as áreas) visando ao resultado final, a execução “físico-mecânica”, estou sempre mais propenso a ouvir uma gravação de mestres do passado àquela de um jovem egresso de importantes concursos internacionais, pois nesta consigo extrair o ato performático que tantas vezes surpreende nossos sentidos, mercê da virtuosidade em expansão, e naquela transparece a essência essencial de uma obra, razão de sua perenidade. François Servenière, excelente compositor e pensador, praticou muitos esportes, entre os quais alpinismo, esqui alpino e vela. Trocamos mensagens permanentes também sobre a temática da aventura que nos apaixona, daí tantos livros que resenhei nesse espaço. O diálogo em circunstâncias internéticas tem lá seus resultados. Escreve-me Servenière: “Minha biblioteca, como a sua, está repleta desses opus marítimos e terrestres que são, na verdade, os livros que me fazem partir para ‘fora’. Sou amador dos livros de ficção científica e de conflitos marítimos, nos quais a coragem dos homens é testada no alto das montanhas, no mar, nas tempestades”. Arguta sua reflexão sobre a possibilidade da morte em circunstâncias tantas vezes provocadas pelo “instante do acontecido”, no dizer do filósofo Vladimir Jankélévitch. Servenière, ao comentar um de meus posts sobre livros de aventura, escreve: “Desde muito tempo sou fascinado pelo contraste entre a relação épica das histórias nos livros e filmes. Temos sempre a impressão de que as aventuras são vividas sob grandes orgias de músicas sinfônicas, tais como são apresentadas em documentários. Sobre esse tema, tendo praticado muito montanhismo, esqui e navegação marítima, posso confirmar que a natureza não é sonorizada em estéreo sinfônico nem em hard rock quando a tensão se apresenta palpável em circunstâncias trágicas. Muitos aventureiros do mar e das montanhas insistem permanentemente sobre esse aspecto da aventura. A maior delas, melhor organizada, com o melhor barco, com o melhor equipamento e a melhor equipe de montanhismo, para imediatamente quando algum tripulante cai no mar ou um alpinista, numa fenda. É meu pesadelo recorrente quando trabalho mentalmente à noite sobre meus projetos de travessia oceânica. Como ter a certeza de que uma queda no mar não pode acontecer? Barcos seguros afundaram e marinheiros experientes sucumbem sempre, assim como no caso dos alpinistas e suas quedas extraordinárias. Nas aventuras o risco zero não existe”. (tradução JEM).
Essas divagações sobre diálogo permanente e enriquecedor com Servenière tem a dádiva da diversidade de temas. Se a música prepondera na grande maioria de e-mails trocados, e não foram poucas as vezes em que inseri segmentos expressivos do ilustre amigo, os mais variados assuntos são evocados. Divagações prazerosas que, oxalá, prossigam.
This post is about the simple pleasure of conversations with friends and acquaintances. It is illustrated by my own experience with two friends of opposing personalities. On one hand, my fellow street racer Carlos, a good-hearted and simple guy of humble birth, with infinite skills to handle the practical side of life. I turn to him in case of problems with leakages, broken tiles, car mechanics, wall painting. On the other hand, the French composer François Servenière —well known by readers of my blogs — a reflective man with whom one may talk about almost everything. Different dialogues with different types of people, but the same pleasure of being in communication with others.
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