Posicionamento que Merece Atenção
Inútil comentar que aqueles que têm em conta a Academia
tornaram-se totalmente surdos a qualquer música natural.
Formam uma casta de técnicos para os quais
o valor de toda a música se mede através da complexidade da escritura.
Para eles, o canto gregoriano e a música dos trovadores não têm interesse,
pois comportam uma só voz , resultando música fácil.
André Souris (1899-1970)
Ao considerar a proliferação de compositores e filósofos, baseando-me na observação de Serge Nigg (1924-2008), primeiro músico francês a compor obra dodecafônica em França, na qual frisava que a partir de certo momento só era apresentado a compositores, pois “todos” assim se intitulavam, observei que, ao longo da última década a preceder minha aposentadoria em 2008, cada vez mais frequentemente alunos cursando ou egressos dos cursos de música-composição e filosofia pronunciavam-se como compositores e filósofos. Mais penetram em elucubrações a partir das tendências multidirecionadas da composição e do pensar, mais acentuadamente tentam diminuir as definitivas contribuições de compositores que permanecerão. André Souris, autor da epígrafe, menciona J.S.Bach, Beethoven e Debussy como alguns exemplos, “vítimas” de determinadas correntes “composicionais”. No pensar filosófico, Russell Jacoby e Vitor J. Rodrigues (vide blogs 21/03/2009 e 14/08/2010, respectivamente) já sinalizavam empáfias similares às apontadas.
Quanto à música, seria possível constatar que a ascensão dos meios eletroacústicos, que não necessariamente implicou qualidade dos “compositores”, camuflou capacidades, em parte embaçando-as por “falta” de parâmetros de julgamento, levando à multiplicação de autores. Dezenas e dezenas de compositores têm obras selecionadas para as Bienais de Música Contemporânea aqui e alhures. Serge Nigg observa: “Diria que todos foram subitamente tocados pelas graças das musas”. Seria isso crível? Como bem intuía o grande escritor e poeta português Guerra Junqueiro (1850-1923): “Sim, o crítico dos críticos é só ele – o tempo. Infalível e insubornável”.
O compositor e pensador francês François Servenière escreveu-me após a leitura do blog de 5 de Julho, a considerar vários fatores influentes nessa multidirecionada diversidade de meios de composição da atualidade. Sente em França o peso de tendências institucionais corroborando a edificação de”mitos” inacessíveis, ininteligíveis para a grande maioria daqueles que labutam em áreas como música e filosofia. Elegem-se oráculos de suas gerações e assim são tratados pela mídia “especializada”. Extraí segmentos de sua longa mensagem.
“Para retornar ao tema de seu blog, só posso, infelizmente, pensar como você. ‘O hábito não faz o monge’ e os estudos de composição, como os de filosofia, não tornam aspirantes a compositores ou filósofos realmente capazes. O tempo se encarregará da decantação, se houver. A sequência de minha vida musical revelou-me uma verdade imanente: O melhor gramático não faz automaticamente um artista, um compositor, um escritor ou um filósofo. Para que o artista ou o pensador flua há a necessidade de outra flama, que implica a compreensão íntima e a partilha das forças do Universo em si. Não nego que as matemáticas constituem uma das forças que arquitetam a música e o Universo, se bem que música e Universo existam antes das matemáticas, estas relativamente recentes. Todavia, tenho a mais extrema reserva em relação aos compositores que entram na música pelas matemáticas. Diria mesmo que, se eles entram por essa porta, não encontrarão aquilo que procuram, como no caso do ‘albergue espanhol’ (lugar por onde passam pessoas de diversas procedências). Os compositores que vivem a acrescentar sons e notas, sob pretexto da infalibilidade de modelo matemático (o caso da série aplicada a todos os parâmetros musicais é um dos maiores equívocos teórico-musicais, a mais extrema incompreensão do material original da música), apenas produzem dramas acústicos e desentendimento literário para os ouvidos do público.
No ato de compor, jamais pensei nas matemáticas, jamais, mesmo considerando ser meu espírito rigoroso e matemático. Sob outro prisma, sempre estive em concordância com recomendações de Debussy, bem antes de conhecer suas frases e conselhos históricos. Nunca deixei de pensar no prazer. Fui por ele guiado. Permanentemente me perguntava como Debussy deveria fazê-lo no ato da composição: ‘Se você quiser levar o prazer aos seus ouvintes, torna-se absolutamente necessário começar por ter prazer ao compor’. Desde que sentia o prazer desaparecer de minha partitura, eliminava a passagem ‘não prazerosa’, sem qualquer remorso. Por várias vezes fiz ligações ou junções pela técnica composicional pura, pela sintaxe teórica e as cadências. Todavia, permanentemente as aperfeiçoava da mesma maneira que o pedreiro faz junções artísticas ao manusear belas pedras ou um marceneiro realiza cuidadoso encaixe para associar dois bonitos pedaços de madeira entalhados. Após muitos anos de labor, creio ter chegado a um êxtase que bem antes, numerosos compositores excelsos sentiram, como Gabriel Fauré. É o momento em que concluo que teria dificuldade em ensinar música teórica, tantos são os termos e ‘teorias’ agregados de ordem acadêmica que surgem nessas novas tendências, ininteligíveis para o público no resultado final, a composição.
Cheguei a um ponto onde a música sai de meu cérebro (como sempre, mesmo nos tempos de juventude, quando a ausência técnica freava o processo criativo, evidentemente) diretamente sobre a partitura, sem interface acadêmica. Nenhuma outra reflexão sobre a técnica musical aparece no ato criativo, só ‘o prazer como regra’ a guiar meu mouse e meus dedos a partir do comando cerebral. Essa regra é minha condutora e sempre o foi. Ao contrário dos teóricos, a prática (práxis), o material a ser trabalhado, limado, recortado, lapidado, interessava-me. Única razão de viver na música, nela pensar. Recusei funções docentes na Universidade de Rouen e na École Nationale de Musique em Laval. Entendia não ser o ensino meu caminho primordial.
Quando você aborda esses temas, apreendo fortemente seu ponto de vista, que me parece essencial e central. Assiste-se hoje em França a figuras institucionais em postos de poder se atribuírem títulos (de glória) de compositores, de ‘criativos’ que, na realidade, não merecem. Justificam esses títulos e postos por seus magistérios no Collège de France, o cume do ensino no país para todas as ciências enquanto que suas músicas convencem um número bem pequeno de ouvintes. Eis um caminho tortuoso evidente do sistema atual, que encoraja não somente esse tipo de carreira, mas também provoca o desvio da verdade ‘eu sou um compositor’ ou sou um ‘filósofo’, pelo razão de se ter estudado nas grandes instituições do mais alto nível (o status de compositor considerado um pouco como função administrativa, com intenções de luta para a ascensão social e profissional em direção ao ápice, quando o essencial seria o desenvolvimento da mente criativa). Considerem-se igualmente os modelos típicos de carreiras mediáticas maiores, mas duvidosas sob o aspecto essencial da arte, só obtidas pelos portadores de diplomas e títulos e saberes de toda ordem. Essa situação para compositores, filósofos, escritores… O sistema demonstra, pois, que basta ser o melhor gramático para ser adulado como o melhor artista institucional. Onde estão as obras mestras? Busca-se sempre! E aí reside o profundo, manifesto e trágico erro. Vemos estranhos sábios, e a música (a verdadeira, a linguagem do coração) desaparece pouco a pouco de seus propósitos musicais institucionais. ‘Atentem para a minha música inteligente’, dizem eles! ‘Os senhores não a compreendem, e eu vou explicá-las durante seis horas, pois’. ‘Sim, ela é inteligente, mas ela não me causa qualquer efeito, ela não me diz nada’, responde em coro o público. ‘O que importa’, respondem os compositores institucionais, ‘se o povo não ama nossa música, nossos propósitos ou nossa ideologia, mudemos o povo, divulguemos, divulguemos nossas obras sem cessar, até que o povo nos compreenda’… E eis que nos sentiríamos num Stalag ou Goulag, ou nas escolas de reenquadramento mental das ditaduras ou mesmo tendo de engolir o Pequeno Livro Vermelho, sem compreender o que realmente está escrito, recitando à maneira pavloviana propostas que não nos interessam.
O relativismo colocado em evidência pela mídia, mais a ideologia e o marketing institucional, estabelecem o mesmo nível para todas as obras. É um equívoco, evidentemente. Não obstante, os indivíduos e os povos, desde que tenham meios, direcionam-se para os melhores produtos, para as ofertas mais qualificadas, mesmo as culturais. Não podemos resistir por muito tempo aos efeitos do Belo, e o ‘Clair de Lune’ de Debussy é aceito em quantidade apreciável de filmes. Não se trata de problema de cultura ou de ensino. Cada indivíduo é tocado pelo que é bonito, e isso está inscrito na alma dos seres vivos desde o momento que tiveram acesso ao primeiro por do sol. A arte é solar! Não sem razão as civilizações mais expressivas do planeta tiveram o sol como Deus (Egito, Atenas, Roma, Europa…). Sol, água e o Belo. Metaforicamente, temos num plano inverso a sombra, o escurecimento, a morte, o niilismo, a frieza técnica e matemática, a supressão da vida nas obras, o risco da perda da identidade.
A política e as artes do século XX omitiram aspectos vitais da arte e da política. Retiraram a alegria, a felicidade, o partilhar, a dança, o prazer de viver e de respirar… e pariram não apenas os piores crimes da humanidade, como tiveram necessidade de bunkers para proteger suas ‘obras’ e sua ‘ciência superior’.
Eis minha prosa desta manhã, que se junta de maneira visceral e espontânea à sua, cultivada, talentosa, plena de experiências profundas e sensíveis, mas não divergente da minha. Não poderia ter um outro discurso diante das situações pelas quais você passou com esse jovem professor de filosofia que se diz ‘filósofo’. Tudo que escrevo sobre a música se aplica igualmente à área desse jovem. Como eu te compreendo!!!” (Tradução: J.E.M.).
Às observações sensíveis sobre a composição soma-se o desvirtuamento que se amplia, em termos brasileiros, na área da filosofia. Se apontamos Russell Jacoby e Vitor J. Rodrigues, que denunciam desvios do pensar direcionados a estranhos holofotes, como não mencionar três casos típicos oriundos dos bancos universitários. “Filósofos” em pauta: uma vocifera ódio visceral contra a classe média, outro incita a invasão da propriedade privada e outra mais estimula o vandalismo. Casos recentes. Os dois primeiros de São Paulo e o terceiro do Rio de Janeiro. Se pensarmos que o último ex-presidente aplaudiu a fala em que a classe média mereceu frases descabidas e, sob outro aspecto, também tem vociferado em linguajar tantas vezes chulo a proclamar o “ódio” que a oposição teria ao seu partido, muito fácil entender que essa palavra não é pronunciada pela dita oposição. Reflexões, apenas reflexões.
P.S. Após a publicação do post da semana recebi e-mail de meu dileto amigo Magnus Bardela. Tece reflexões a partir da afirmação de Servenière pela qual “não podemos resistir por muito tempo aos efeitos do Belo”, pois somos irremediavelmente por ele subjugados. Pertinente, insiro, dias após a postagem, as considerações de Magnus:
“Concordo com o Servenière. Como já bem explicitado, é mais fácil se esconder nas sombras da técnica fria. Nem todos possuem luz própria – até no espaço sideral é assim… Sob outro aspecto, comentaria sobre o processo criativo de ‘tentativa-e-erro’ (trial and error, termo bastante usado em inglês em tantas áreas do conhecimento).
Depreendi do texto que há no método de compor do Servenière esse processo iterativo do ‘fazer – julgar/analisar – refazer’, até que se atinja um patamar de aceitabilidade. O parâmetro do aceitável é a autocrítica, o acervo técnico e a consciência do Belo e do prazer – como ele próprio escreveu. Entendo que esse procedimento criativo seja natural no homem, presente no artesão mais simplório e até nos mestres que reverenciamos. Pode ser uma obviedade, mas, para mim, é esse o processo original, movido pela curiosidade e criatividade/inventividade, resultando na expressão verdadeira do indivíduo. É uma construção de “baixo para cima”, em que as experiências se somam, se agregam, atingindo novas alturas. Por sua vez, os métodos (as ‘matemáticas’), se adotados às cegas e de maneira obtusa, sem a bagagem da experimentação, como se fossem ‘atalhos’ ou ‘fumaças’ para distração, só trariam resultados desprovidos de qualquer identidade, absolutamente vazios e sem significado. Impossível a aplicação ‘de cima para baixo’. Não há fundamento! Pergunto: Não seria essa a evidência da indiscutível necessidade dos 90% de transpiração (leia-se trabalho, empenho, interesse, dedicação, vocação direcionada) para que proporcionem, se tivermos sorte, a existência dos 10% restantes de inspiração?”
For the past years I’ve been receiving feedback from readers. One in special, the French composer François Servenière, often honors me with valuable comments on the subjects I address. His messages enrich my blog thanks to the great depth of what he writes. It was not different with his e-mail about the self-proclaimed philosophers and composers, which I quote here so that readers may see the subject in a new light.