Progressiva Curva Descendente
Deve-se estar atento às ideias novas que vêm dos outros.
Nunca julgar que aquilo em que se acredita é efectivamente a verdade.
Fujo da verdade como tudo,
porque acho que quem tem a verdade num bolso
tem sempre uma inquisição do outro lado pronta para atacar alguém;
então livro-me de toda a espécie de poder – isso sobretudo.
Agostinho da Silva (Entrevista)
Aposentado pela compulsória desde 2008, conheci em anos anteriores a efervescência que levou a Universidade de São Paulo à crise sem precedentes, à queda acentuada constatada em avaliações internacionais, à ascendência de minoria com fortíssimo viés ideológico nos três níveis, constituída por alunos, funcionários e docentes, respectivamente, e à consequente degradação dos alicerces universitários.
Se, durante cerca de 27 anos na Universidade, senti paulatina mas inexorável diminuição da firmeza de atitudes dos dirigentes da USP que impedissem desvarios dessa minoria nas três categorias, a gota d’água, na minha avaliação, viria de exemplo emblemático quando da invasão de alunos numa reunião do Egrégio Conselho Universitário presidido pelo Reitor, o ilustre Jacques Marcovitch (gestão 1997-2001). Pasmos, assistimos seguranças tentando sustentar as portas que permaneciam fechadas, sem o conseguir. Após destruir essas portas de madeira, a turba adentrou a sala munida de vasos sanitários, que foram arremessados em frente da mesa onde estavam o Magnífico Reitor, Vice-Reitor, Secretária Geral e outros dirigentes universitários. Vociferando palavras de ordem, celerados acenderam sinalizadores, que provocaram um fumaceiro colorido à maneira do que ocorre nos estádios de futebol. Logicamente, a reunião do Conselho Universitário daquela lamentável terça-feira foi suspensa. Naquele momento comentei com dois colegas que estávamos a assistir à continuação de um acirramento que deveria levar a Universidade ao impasse. O prejuízo do imóvel foi grande, pois vidros das janelas foram estilhaçados, cadeiras quebradas, portas… Em reunião anterior, um líder dos funcionários bradara palavras grosseiras e ofensivas contra o Reitor. Apesar de filmados, não houve sequer expulsões. Acinte, desrespeito, impunidade. A ausência de decisões firmes tem tributo a pagar, e o que ocorre presentemente é apenas consequência.
Já àquele momento essa minoria organizada, que pouco se importa com a destruição do bem público, pleiteava, entre outras reivindicações, a paridade de toda a comunidade uspiana no que concerne à eleição do Reitor. O voto paritário estabelece o mesmo peso para aquele depositado por jovem recém-ingressado na universidade e o da totalidade de docentes, alunos e funcionários, eliminando, pois, a representatividade de cada categoria junto aos vários conselhos universitários. Obviamente o ingressante pode ser facilmente manipulado pelo simples fato de desconhecer quaisquer currículos dos candidatos a Reitor ou de Diretores de Unidades da USP. Quantas não foram as vezes em que perguntei aos mais exaltados alunos da universidade o que eles sabiam dos candidatos a Reitor ou a Diretor. As respostas não deixavam margem à interpretação. Desconheciam carreiras, trajetórias acadêmicas, mas empunhavam bandeiras escarlates bem conhecidas no campus. E toda a distorção estava estampada.
Lembro-me de que, em eleições para Diretor da Escola de Comunicações e Artes (ECA), uma das unidades da USP, por vezes alunos formaram verdadeiro corredor polonês no longo acesso à sala da Congregação, buscando intimidar votantes. Alguns docentes, movidos por estranhos propósitos, estimulavam veladamente a manifestação ruidosa. Para aqueles professores que não comungavam das ideias desse “batalhão”, palavras fortes e até xingamentos ecoavam pelo corredor. Gritavam, cantavam e rufavam tambores em nome da… democracia.
Hoje, distante do campus e muitos anos após esses incidentes, verifico com tristeza que a Universidade de São Paulo agoniza. A autonomia uspiana, que deveria ser solução, tem sido um entrave. Minorias, movidas pela mesma ideologia desse passado recente, chegam tantas vezes à anarquia e ao vandalismo, e comandam intimidações, invasões e depredações, sob o amorfismo, letargia e indiferença da grande maioria de alunos, funcionários e docentes. Greves têm apresentado recrudescimento sempre mais intenso. Se a Constituição respeita a greve e o direito ao trabalho, este é simplesmente ignorado por pelegos que sabem que não serão punidos pela afronta à Carta Magna. Falta pulso forte para decisões que podem soar impopulares, mas necessárias. A impressão é sempre de temor pelo que estará por vir, nunca para melhor. Não há mais o menor respeito à hierarquia, aos preceitos básicos da convivência, à lhaneza ou mesmo à civilidade. Truculência, palavreado que faz corar cultores da língua portuguesa, atitudes as mais absurdas, como as invasões da Reitoria, seguidas de destruição, saque e permanência de “bandoleiros” nos recintos que não deveriam jamais ser maculados, provocam o pavor dos dirigentes, sem coragem necessária para expulsá-los, o que seria possível se leis fossem aplicadas. Contudo, temem-nos, com receio de “maior” conturbação. A invasão da Reitoria por membros do corpo discente durante semanas no ano anterior, quando destruíram e picharam seu interior, roubando computadores e até peças dos banheiros, independentemente da imensa sujeira que deixaram, na qual não faltava grande quantidade de preservativos, é prova da delicada situação atual na USP. A greve deste ano, que dura tempo desmesurado (mais de três meses), provocada por grupelhos de funcionários, alunos e docentes, é prova inconteste do desvario.
Querem à força ver atendidas reivindicações. Apesar de contarem com a lei, dirigentes submergem frente às violências. E todo o mal está feito. Tudo indica que novas quedas nas avaliações internacionais deverão ocorrer, não sem razão.
No programa “Bom Dia Brasil” da TV Globo, do dia 15 de Agosto, a repórter Renata Cafardo comentava a crise da USP, estendendo-a aos grandes prédios inacabados, como o Centro de Convenções, o Museu da USP e o Centro de Difusão Internacional. Do primeiro, salientou que foram gastos 80 milhões de reais, faltando outros 40 para a finalização. Disse ainda que nesse centro haveria “um grande palco com elevação mecânica e instalação do maior órgão da América Latina, já comprado e armazenado na USP”. Nessa reportagem Renata Cafardo informou que, devido à crise, cogita-se a transferência desses prédios para a Secretaria do Estado da Cultura.
Voltemos ao órgão. Os gastos exagerados promovidos pelo Reitor que antecedeu o atual, Professor João Grandino Rodas, tem um exemplo flagrante na compra do órgão mencionado na reportagem acima. Não empreendeu a direção da Universidade diligências aprofundadas no sentido de se debruçar sobre um magnífico órgão Tamburini de fabricação italiana, mantido em containers no campus. Tratativas vãs foram realizadas e o órgão jaz enclausurado. No site da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que adquiriu na década de 1950 um instrumento de tubos, lê-se: “O instrumento foi construído pela Fabbrica D’Organi Comm. Giovani Tamburini, da cidade de Crema (Itália), fundada pelo organeiro Giovanni Tamburini (1857-1942) em 1893. Foi encomendado pela diretora da Escola Nacional de Música, Joanídia Sodré, para substituir o antigo órgão Sauer de fabricação alemã, comprado por Leopoldo Miguez para o Instituto Nacional de Música”. A inauguração do instrumento se deu no dia 13 de Agosto de 1954.
Um histórico que levou à doação do órgão Tamburini mantido no campus merece umas poucas linhas. O instrumento data de 1951 e foi instalado no ano seguinte no salão principal da residência da organista e incentivadora das Artes Alda Hollnagel, em Itapecerica, perto de São Paulo. Foi inaugurado pelo mesmo organista italiano que fez a première do instrumento da Escola Nacional de Música, Fernando Germani, organista da Basílica de São Pedro do Vaticano e Professor da Academia Santa Cecília de Roma. Na minha juventude, várias vezes assisti aos recitais promovidos pela anfitriã Alda Hollnagel. Quando a sucessora do instrumento, irmã de Alda Hollnagel, Teresa, resolveu dar uma destinação ao magnífico órgão, José Luís de Aquino, Professor da Universidade de São Paulo e organista respeitado internacionalmente, entrou em contato comigo e, após várias reuniões que mantivemos com a Sra. Teresa Hollnagel, esta generosa mecenas resolveu doar o instrumento à USP, com a condição de vê-lo instalado e ouvir um recital de José Luís de Aquino durante a inauguração. Quimera, infelizmente. Depois de longos entendimentos de ordem administrativa, o órgão foi doado à Universidade de São Paulo (abertura do processo, dia 7 de Junho de 2005).
O instrumento é realmente extraordinário, com cerca de 3.000 tubos, 4 teclados e pedaleira de 32 notas; portanto, completa. Tantas outras informações José Luís e eu colhemos e anotamos durante as reuniões com a Sra. Teresa Hollnagel e que, pela especificação técnica, fugiriam ao propósito do presente post. O certo é que documentações internas de ordem burocrática cruzaram as várias instâncias da USP e nada de prático resultou após 9 anos!!!
Não saberia as razões da compra daquele “maior órgão da América Latina”, segundo a repórter Renata Cafardo. Tenho lá minhas dúvidas quanto a essa dimensão. Não seria este um exemplo flagrante de desperdício de dinheiro, pois o órgão Tamburini atenderia maravilhosamente às necessidades no campus da USP? Ao Reitor não teria faltado pulso e vontade para fazer “ressurgir” a preciosidade oculta? Com o Centro de Convenções inacabado e órgão novo armazenado, são agora dois instrumentos que permanecem silenciosos.
Não deve ser poupado de críticas o atual Reitor, Professor Marco Antônio Zago, que foi Pró-Reitor de Pesquisa na gestão anterior, pela ação tímida com que está a conduzir a crise inusitada. É nesses momentos que se conhece o verdadeiro líder. Há muitíssimo a fazer, mormente sabendo-se que a USP gasta atualmente 105% do seu orçamento com a folha de pagamento de seus servidores. Terá o atual Reitor pulso forte para demitir, cortar gastos promovidos por seu antecessor e provocar o verdadeiro saneamento? Se a restrita comunidade uspiana está cada vez mais isolada em seus muros, a imensa quantidade de contribuintes do Estado, que sustenta as três universidades públicas que compõem o Conselho de Reitores das Universidades do Estado de São Paulo (CRUESP), aguarda soluções em breve, tardiamente diga-se, hélas.
Às vésperas das eleições estaduais, não se descartem fins escusos motivadores da greve.
This post addresses the strikes that every year hit the State University of São Paulo – USP, the ideological roots that feed them, the repeated acts of vandalism and violence on the part of students, with occupation of buildings and destruction of public property, inaction on the part of authorities – nobody is ever arrested or charged – and the continuous fall of USP in the world university rankings. With such recurrent disruptions of learning, the once highest-ranked university of South America seems to be in its death throes.