Um Livro do Médico Drauzio Varella
Correr é experimentar a liberdade suprema,
é voltar aos tempos de criança.
De minha parte,
se alguma coisa aprendi com as maratonas
e os treinos necessários para completá-las,
foi não levar a idade em conta.
Confrontado com um desafio,
procuro ver se me acho em condições físicas e intelectuais
e se terei disciplina para enfrentá-lo;
jamais considero o número de anos que juntei,
porque a questão da idade
vem contaminada por preconceitos arcaicos.
Drauzio Varella
Ao longo destes anos, inúmeras vezes pormenorizei a corrida de rua, nela a encontrar uma das mais salutares práticas esportivas nessa busca incessante do ser humano em direção à qualidade de vida. Prazerosa, enriquecedora física e mentalmente, a corrida de rua tem recebido a cada ano, aqui e alhures, um número cada vez maior de adeptos otimistas. Diria que um impulso interior torna esse praticante da corrida de rua um apaixonado pela atividade, que se traduz na frequência permanente aos inúmeros eventos que se realizam neste país. Para o observador, não é difícil visualizar rostos já memorizados de corridas anteriores, sempre com vontade, determinação e alegria.
Anteriormente, neste espaço, resenhei o excelente livro do consagrado escritor japonês Haruki Murakami, que narra suas maratonas (vide post: Do que eu falo quando falo de corrida, 19/02/2011). É pois alvissareiro o lançamento do livro do mediático médico oncologista Drauzio Varella, autor de tantos livros consagrados, e célebre através das intervenções constantes na TV. Pormenorizando-se nas maratonas, traz contribuição efetiva, mormente para os praticantes dos 42,195k (Correr – o Exercício, a Cidade e o Desafio da Maratona, São Paulo, Companhia das Letras, 2015).
Nascido em 1943, Varella apenas começaria a participar de corrida de rua aos 50 anos. Fumante inveterado, não se esqueceria de frase do também oncologista já falecido, Fernando Gentil, para que parasse de fumar. Desistiu do hábito nefasto e pôs-se a correr, almejando não as corridas curtas, ou a clássica 10k, mas a pensar apenas na maratona. Disciplina férrea levou-o a treinamentos intensivos e de 1983 até o presente já são inúmeras as maratonas percorridas.
Drauzio Varella tem o dom da linguagem direta, sem subterfúgios. Apresenta uma panorâmica histórica da maratona na Grécia Antiga, a trazer ao leitor leigo as básicas informações sobre a mítica corrida. A preceder as maratonas das quais participou, em pontos geográficos tão diversos como Blumenau e Rio de Janeiro, Nova York (inúmeras), Chicago, Boston, Tóquio, Buenos Aires, Berlim… , Drauzio Varella conta descontraidamente os preparativos físicos, a expectativa que sempre acomete o corredor antes de qualquer corrida e… observa. Em várias oportunidades não deixa de olhar o entorno e de apreciar o que a visão alcança, tecendo comentários pitorescos. Há fino humor em suas narrativas.
“Correr” tem segmentos que poderiam parecer fora do contexto, mas não o são. Não por acaso, uma das palavras do subtítulo é Cidade. Hilariante a sua aventura em Miami, para onde foi a fim de participar de Congresso e, em treino pelas ruas da cidade, perde-se, e o desenrolar dos episódios dessa “aventura” tem graça, assim como o treinar no centro de São Paulo e passar pela cracolândia. Em ambas as situações, é clara a intenção do médico observador de estudar fisionomias e as ações – hostis, passivas ou entusiasmantes – dos personagens citadinos dos quais tem um vislumbre efêmero. Lagoa Rodrigo de Freitas, Floresta da Tijuca, Haga Park em Estocolmo, Parque do Ibirapuera, Centro Histórico de São Paulo, Minhocão são pormenorizados nos treinos constantes e prolongados, visando às árduas maratonas. Seria o arguto senso de observação que o faz narrar a história de desencanto amoroso no capítulo Love Story, pois, em seus treinos pelo centro de São Paulo, encontra um desiludido. Também de interesse suas observações em Buffalo, onde realizava um curso e saiu para treinar. Maravilha-se com a quantidade de gaivotas às margens do lado Erie, seus pios, suas revoadas. Curiosamente, tenho sempre essa impressão, quando em Gent, na Bélgica, para gravações de CDs, vejo de meu quarto essas lindas aves brancas e ouço seus pios esganiçados, mas característicos, mormente durante voos rasantes no canal em frente à janela.
Extremamente úteis os capítulos dedicados ao físico do atleta e aos cuidados necessários para a preservação da “máquina” nos itens essenciais: as lesões osteomusculares, os joelhos; suas repercussões várias, digestivas, cardíacas, renais e pulmonares; a problemática da hipotermia e a desidratação. Esses capítulos, distribuídos entre os temas da maratona e da cidade, tornam a leitura prazerosa, não concentrada em um assunto apenas, entrelaçando-se de maneira harmoniosa com o todo da narrativa.
Drauzio Varella é especialista em vários segmentos da medicina, comunicador de grande talento e escritor que se tem notabilizado a cada obra publicada. Em seu ótimo “Correr” teria, talvez, faltado um capítulo ao qual poderia dar enorme contributo, se bem que o subtítulo já enfatiza a distância a que se propõe. Se considerado for que a imensa maioria das corridas de rua privilegia distâncias que se estendem dos 5 aos 10k, umas outras às 10 milhas ou à meia maratona, é certo que, apesar de algumas dezenas de milhares de corredores dedicarem-se à maratona, ela ocorre bem menos frequentemente. Preparação prolongada e a “impossibilidade” de um corredor amador realizar mais de duas provas ao ano (o recomendável extremo) tornam essa distância de 42,195 km menos habitual no calendário. É só verificarmos os calendários de corridas de rua espalhados pelo mundo. Assim como, para um corredor de maratona, distâncias menores são “minimizadas”, assim também é fato que, para o corredor de ultramaratonas (em suas várias distâncias de 50km às 24hs, sempre a correr), a maratona também é “minimizada”. Em uma de minhas participações nos 10k no Parque do Carmo, conheci um ultramaratonista que chegara às 7 da manhã para a prova, tendo já corrido 30k até a largada. No final dos 10k disse-me que correria mais 15 até a casa de sua sogra, onde almoçaria. Um ano após encontro-o na corrida do Centro Histórico (9k). Não correria, apenas estava dando suporte a amigos. Sorrindo, levanta a camisa e mostra um imenso corte que atravessava todo o tórax no sentido vertical. Problemas coronários logo após as 24hs de uma corrida em Florianópolis (sic).
Treinadores e corredores sabem que a maratona exige preparo outro que o destinado aos 10k ao à meia maratona. Mais horas de treinamento, exercícios tipificados para longas distâncias e condicionamento físico outro. Médico competente que é, Drauzio Varella seria lido atentamente pela legião de corredores dos 5, 10, 12, 15, 16 e 21.1k, se capítulo a pormenorizar distâncias menores estivesse inserido. No livro há menção de ter realizado os 10k em treinamento. Apenas fica essa sugestão, que não altera em nenhuma hipótese o prazer e o aprendizado que a leitura de “Correr” trouxe-me. Recomendo-o vivamente.
Today’s post addresses the book “Correr” (Running), written by the oncologist and marathoner Drauzio Varella. I really enjoyed the stories about his marathons around the world, his professional look at the various aspects involving physical fitness, training and problems that may arise, as well as the funny events he experienced during his trainings. Worth reading for runners or anyone who is curious about the subject.