Lembranças que Permanecem
Aos domingos,
folga de meu pai,
pegávamos o bonde para visitar a tia Olímpia,
irmã e confidente de minha mãe,
em Santana.
Drauzio Varella
Minha neta Ana Clara (23) leu a resenha que fiz do livro “Correr”, de Drauzio Varella (vide blog 03/10/2015). Gostou imenso e teceu comentários. Ana Clara já participou de duas corridas com o avô e se prepara para mais uma, agora com a irmã, Maria Teresa (17). Uma alegria só. Ao comentar o blog, lembrou-se de um livro que apreciou, quando ainda criança, escrito por Drauzio Varella, “Nas Ruas do Brás” (São Paulo, Companhia das Letrinhas – Coleção Memória e História, 2000). Destinado, em princípio, aos miúdos, o livrinho está fartamente ilustrado com desenhos de Maria Eugênia, coloridos e apropriados a cada situação, além de fotos do período, a enriquecer as curtas e deliciosas narrativas. Impressiona vivamente a lembrança fotográfica do autor ao rememorar episódios tão distantes, quão mais verdadeiros se, ao puxarmos por nossa própria memória, fatos bem comuns àqueles que viveram esse período tão especial não pululassem também.
“Nas Ruas do Brás” evoca a infância vivida em bairro operário em que a fábrica se apresenta como um epicentro. Pais, tios, amigos têm suas vidas ou ligadas a uma fábrica ou a alguma atividade de serviço autônomo. Imigrantes italianos ou espanhóis são revividos por Varella em seus hábitos trazidos nessa imigração que se fez necessária. Vivendo modestamente em habitações coletivas, pois geralmente um só banheiro servia a várias famílias. Isso trazia uma série de conflitos cotidianos entre as muitas mães que habitavam espaços restritos, mas tudo, segundo o autor, tinha felizmente chama efêmera e a paz se restabelecia.
O olhar daquele menino que participou de tantas molequices, que corria atrás de balões durante as festividades juninas, que brigava, apesar da pouca idade, com meninos maiores, que estudava, mas sempre atento ao cotidiano, fica com clareza, humor e precisão fixado nessas suas histórias em idade edipiana. Fez-me lembrar leituras percorridas nos meus poucos anos e que me marcaram: “Cuore”, de Edmondo de Amicis (1846-1908), “Os Meninos da Rua Paula”, de Ferenc Molnár (1878-1952) e “Cazuza”, de Viriato Corrêa (1884-1967). “Nas Ruas do Brás” é narrativa de vida, os três outros romances, de formação com viés memorialista.
Estive a me lembrar, durante a companhia do pueril e agradável “livrinho” de Drauzio Varella, da minha própria infância. Quanta proximidade com a essência daqueles tempos, apesar de meus cinco anos a mais, num período em que as transformações tendiam a se acelerar a cada ano, como de fato aconteceu. As nítidas diferenças de infância vivida em bairro eminentemente operário, onde as dificuldades para a sobrevivência digna eram maiores do que aquelas da Vila Mariana, onde cresci, não descartam tantas identidades características da meninice. Ficaram as lembranças das brincadeiras bem próximas àquelas narradas por Varella, como correr atrás de balões que despencavam dos céus; “pescar” com peneira pequeninos guarus que existiam num córrego límpido próximo à av. Rodrigues Alves, destinados a povoar dois aquários de cimento que tínhamos em casa, assim como pegar sapos, que meu irmão Ives e seu colega Armando levavam para o laboratório de sua escola, Colégio Bandeirantes – o portador de batráquio ou outro pequeno animal para dissecação tinha nota alta garantida! -; fazer pipas triangulares ou hexagonais; rodar pião; descer a av. Rodrigues Alves com carrinho rolimã no asfalto que existia na trilha dos bondes – certo dia, à altura da Rua Rio Grande, bati num poste, daí resultando corte profundo na “canela”, escoriações, hematomas e, pior, a proibição paterna para que jamais voltasse à prática, não sem antes ter recebido boas e doídas chineladas -; pular o muro para jogar bola em casa dos Bogossians; praticar pingue-pongue em casa com meus irmãos e jogo de dominó com o pai. Todas, distrações que se davam nos intervalos dos inflexíveis horários de estudo de piano aos quais meu irmão João Carlos e eu nos dedicávamos com afinco. Lembro-me de ter sempre acompanhado minha mãe à feira livre no Ibirapuera (hoje av. Dante Pazzanese), puxando o carrinho de madeira, daí minha frequência extremamente prazerosa às feiras-livres de sábado na minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo. Reminiscência mais antiga vem das filas diárias a que minha mãe e os quatro filhos se submetiam para a cota de pão de milho em tempos dos conflitos na Europa. Vivíamos a era do rádio e me recordo do alto falante do quintal de casa anunciar, aos seis de Junho de 1944, a invasão da Normandia pelas tropas aliadas durante a IIª Grande Guerra. Estava eu para completar seis anos dias após. Todos os vizinhos correram para a rua, saudando o acontecimento. Servindo-me de uma frase de Varella, diria que também “aos domingos, pegávamos o bonde para visitar” nossos avós, em Santo Amaro. A foto a estampar caminhão que entregava leite em frascos de vidro era também comum em minha infância, assim como habitual em meu bairro a chegada, uma vez por semana, de cabras leiteiras, anunciadas, ao descerem a av. Rodrigues Alves, graças aos sinos pendurados aos pescoços. O lixo era recolhido por grandes carroções puxados a cavalo. Nessas comparações, que forçosamente surgiram durante a aprazível leitura, só não havia esse total congraçamento entre a criançada, pois no Brás, segundo Varella, as habitações proporcionavam esse salutar convívio, o que era mais difícil em meu bairro, pois muitas residências eram construídas em terrenos espaçosos e a avenida não possibilitava peraltices da criançada. Diria que o relacionamento era mais íntimo, familiar.
O que torna o relato de Drauzio Varella tão encantador é o fato de que em todos os breves capítulos há a presença de algumas argutas observações, normalmente esquecidas graças ao acontecimento efêmero, mas que ficaram presentes na memória do médico oncologista. Reteve lembranças dessas casas privadas de conforto e seus corredores escuros, pormenorizando os espaços partilhados que por vezes levavam às desavenças, reparadas logo em seguida; a amizade com miúdos da sua idade que participavam das mesmas peraltices; a gastronomia que imigrantes e seus descendentes mantinham como elo às terras distantes e tantas outras situações de interesse, inclusive para a compreensão de período crucial da cidade. Acompanha com ternura e inocência o longo definhar de sua mãe, que morreria precocemente. Fez-me pensar no relato do grande pianista Wilhelm Kempff (1895-1991) ao viver situação bem próxima, quando da morte de sua avó (Cette Note Grave, Paris, Plon, 1955).
Drauzio Varella deve ter paulatinamente anotado todas as situações por que passou. É comum, mormente sur le tard, uma névoa encobrir a realidade vivida, o que torna relatos suspeitos. A precisão, o pragmatismo e, paradoxalmente, o encantamento que flui das poucas páginas de “Nas Ruas do Brás” testemunham um período histórico da cidade e revelam hábitos, costumes e tradições de um dos mais acarinhados bairros de nossa megalópole. Foi com prazer, curiosidade e inevitáveis comparações que li “Nas Ruas do Brás”, que tão intensa impressão deixou em Ana Clara e em seu avô, que carinhosamente agradece a indicação.
My comments on the book “Pelas Ruas do Brás” (On the Streets of Brás), written by the oncologist Drauzio Varella, in which he recalls delightful moments of his childhood spent in the forties at Brás, a traditional working class district in São Paulo, predominantly inhabited by Italians and their descendants. Revealing habits, traditions and social conditions of a historical period of São Paulo, the author’s remembrances made me feel dominated by emotions, since they reminded me of my own childhood lived in the same city around the same time.
Post Scriptum
Recebi de meu dileto amigo, o musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso, que abrilhantou o ciclo “Viagens e História” promovido pela Unibes Cultural e pelo Consulado Geral de Portugal em São Paulo, a camisa de seu time de eleição em Portugal, Vitória de Guimarães. Tive o prazer de correr com a gloriosa camisa na Corrida Shopping Aricanduva deste último dia 25 de Outubro.