Cidades revisitadas
O que faço só importa
se traduz o que vou sendo
se assim não for tudo é nada
só finjo que estou fazendo
Agostinho da Silva
O Festival de Música Religiosa de Guimarães teve pleno êxito. Programação intensa, a privilegiar repertório específico muito bem elaborado pelos organizadores e pela Câmara Municipal de Guimarães. Louve-se o hercúleo trabalho do Prof. Dr. José Maria Pedrosa Cardoso. Esteve à testa de toda a extensa programação que se estendeu do dia 8 de Abril à Páscoa no dia 16. Quando em São Paulo farei o relato do recital que apresentei no dia 15, assim como o dos outros que estão por vir.
Descemos de Guimarães para Coimbra, do Minho para a antiga província Beira Litoral. O dileto casal Pedrosa Cardoso nos conduz à bela Coimbra, pois, em acréscimo, José Maria foi professor na lendária universidade.
Não poucas vezes me apresentei nas belas e tradicionais cidades portuguesas de Coimbra e Évora, mormente na cidade alentejana. São inúmeras as recordações, amizades aprofundadas em sólidas raízes, mágica e mística apreensão histórica, programas diferenciados que revelaram, entre outras composições, inúmeras criações portuguesas.
Vários blogs anteriores pormenorizaram Coimbra quando de recitais, sendo que o primeiro deu-se em 2004, em circunstâncias que me foram, diria, dramáticas. Contrariando rigorosas restrições médicas para que não viajasse em período em que a saúde estava num quase impasse, atravessei o oceano e me apresentei com programa unicamente dedicado ao grande compositor conimbricense Carlos Seixas (1704-1742), justamente nas comemorações do terceiro centenário de nascimento do músico. Seria possível admitir que, independentemente da qualidade absoluta de sua obra, o fato de ele ter nascido no dia do mês que veria nascer, meu saudoso pai, no final do século XIX, e eu certamente foi estímulo.
Se o local desse primeiro recital foi a belíssima Biblioteca Joanina, cujo início da construção remonta ao ano de 1717, no reinado de D. João V, e é uma das mais importantes Bibliotecas do período barroco na Europa, mais ainda quis conhecer sua história, lendas e particularidades de seu estilo. Adentrando-se pela grande porta, deparamo-nos com três salas que se comunicam, com portais idênticos. Chamam a atenção as distintas colorações das três salas douradas, mas tendo como cor de fundo o verde, o vermelho e o preto, respectivamente. Essa disposição causa uma sensação de grandiosidade graças à perspectiva, mormente se for considerado o enorme retrato de D João V em moldura de extraordinário impacto, justamente a pairar na parede derradeira, como se estivesse num altar. Na foto que ilustra o blog vê-se bem a posição do piano na terceira sala, instrumento doado pela ilustre musicóloga Maria Augusta Barbosa (1912-2012).
Embora o programa seja diferenciado daquele apresentado no Festival de Música Religiosa de Guimarães, inclui, a pedido, as duas lendas franciscanas de Franz Liszt, que me levam a rememorar recital oferecido uma década atrás no qual interpretei essas belas criações lisztianas. Em São Francisco de Assis falando aos pássaros, um rouxinol no alto da biblioteca gorjeava durante várias passagens plenas de trinados, imitando passarinhos. Continuou durante uns bons segundos e desapareceu. Amalgamou-se à composição de Liszt, diria, “vibração por simpatia”, utilizando-me metaforicamente de expressão musical. Causou impressão ao numeroso público e, segundo relato, jamais houve ocorrência de pássaro a cantar no interior da Biblioteca.
No recital do dia 19 não deixarei de apresentar duas Sonatas de Carlos Seixas como introdução ao programa, que terá ainda obras de Francisco Mignone, Almeida Prado, François Servenière, Claude Debussy, Henrique Oswald e Alexander Scriabine.
Desceremos a seguir para o Alentejo, conduzidos pela dileta amiga e gregorianista de mérito, Idalete Giga, tantas vezes presente em meus blogs. O recital será em Évora, na bela capela do Convento Nossa Senhora dos Remédios, e a promoção está a cargo do Eborae Musica. Será o mesmo programa conimbricense. Quantas não foram as vezes que toquei nesse espaço, hoje não mais destinado ao culto, mas que guarda símbolos essenciais da Igreja Católica. Percorrer a estrada que leva à cidade de Évora já é tema especial. A planura alentejana é única com sua vastidão, seus sobreiros, chaparros e oliveiras, o manto de flores do campo e as cegonhas aninhadas nas torres de transmissão. Nossa neta Valentina sonha conhecer o Alentejo, tanto o avô discorreu sobre seus encantos e sobre a paisagem completamente diversa da que ela tem visto em Portugal. Relatei para Valentina dados essenciais do magnífico livro do amigo Joaquim Palminha Silva (1945-2015), “Évora, cidade esotérica e misteriosa”, despertando sua curiosidade.
A quase impossibilidade de acesso ao computador, ainda mais para um músico que teima em não conhecer as atuais “geringonças” manuseadas facilmente por crianças e adolescentes, faz-me refém de minha ignorância. Valentina tem-me ajudado, mas somente quando em São Paulo, após visitar a Bélgica para um último recital dessa turnê, levarei ao leitor minhas impressões, a recepção às apresentações e, logicamente, fotos dos recitais. Essa dificuldade frente à tecnologia obriga-me a redigir textos mais curtos, mercê igualmente de outras atividades: estudo pianístico, atenção dada à entrevista (Antena 2), contatos com músicos portugueses e a edição de Canto de Amor e de Morte de Lopes-Graça, sob minha revisão, quando encontros no Museu da Música Portuguesa em Cascais e com membros do Movimento Patrimonial da Música Portuguesa tornam-se imperativos.
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