Inspirados nas telas Cósmicas de Luca Vitali (1940-2013)
Na verdade, a ideia que fazemos de uma obra musical
depende da importância que damos à intervenção do intérprete.
Todavia, a questão que se coloca é saber em que medida
a existência da obra depende de sua execução.
André Souris
(“Conditions de la Musique”)
Meu amigo Elson Otake, maratonista e figura de tantos talentos, responsável por todas as minhas gravações inseridas no YouTube, há tempos pensava disponibilizar aos leitores e àqueles que eventualmente quisessem ouvir os “7 Études Cosmiques” + “Outono Cósmico” do compositor e pensador francês François Servenière (1961- ). Constando do CD “Éthers de l’Infini” (Esolem Productions, France, 2017), tema de blogs em 2017, as criações de Servenière somam-se às dos mestres portugueses Jorge Peixinho e Eurico Carrapatoso, assim como à composição do búlgaro Gheorghy Arnaoudov. Completava com esse CD, gravado em 2015 na Capela Saint-Hilarius, na Bélgica, o ciclo de Estudos para piano constituído pela integral de Estudos de Alexandre Scriabine (1872-1915), Claude Debussy (1862-1918) e mais dois outros, dedicados aos Estudos contemporâneos belgas e brasileiros, respectivamente.
Não poucas vezes mencionei neste espaço as qualidades de François Servenière. Após formação sólida em França, o compositor praticou as tendências composicionais que vigoravam e ainda persistem em seu país, mas resolveu seguir os caminhos em que realmente acredita. A frase decantada de Jean-Philippe Rameau (1683-1764), “la musique c’est le langage du coeur”, pode-se aplicar à retomada empreendida por Servenière, a distanciar-se de algumas tendências hodiernas e praticar, num amálgama homogêneo, técnicas da composição que não desprezam o passado e incorporam linhas advindas de correntes de origem menos cerebrais. Dessa maneira, sua admiração pelo jazz é sensível, assim como a busca de uma linguagem menos intelectualizada, mas em nenhum instante menos competente. Sua escrita navega num oceano onde a precisão, jamais desprovida de comunicação, contagia o ouvinte. Conhece o destino pretendido, sua bússola mostra-se infalível. Logicamente, distanciar-se do pensamento dominante que vigora, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, tem um preço. Servenière saiu de Paris e foi morar na Normandia e, atualmente em Le Mans (região do País do Loire). A criatividade continua a jorrar e, para aqueles que conhecem algumas de suas composições, o prazer de ouvir criações eivadas do domínio escritural e da clareza traz a convicção de estar diante de um músico completo.
Impressiona-me a versatilidade de François Servenière. Como compositor, frequenta com competência vários gêneros. Tem repetidas vezes enriquecido esta coluna com observações pertinentes sobre blog imediatamente anterior. Entusiasmara-me a trilogia a homenagear Francisco de Lacerda (1869-1934), “Trois musiques pour endormir les enfants d’un compositeur” (2011), que apresentei em primeira audição em recital promovido pela Universidade de Coimbra na legendária cidade acadêmica. Ao conhecer a “Série Cósmica” (acrílico sobre tela), de nosso saudoso amigo e magnífico pintor Luca Vitali, Servenière ficou impactado e dedicou-se a compor uma extraordinária série de Estudos para piano inspirada nas pinceladas de absoluta maestria e talento de Luca Vitali. Os sete “Études Cosmiques” amalgamam a qualidade da virtuosidade coerente à escrita, onde se detectam as várias correntes do passado e do presente. Todavia, o autor da coletânea, que deverá permanecer na história do repertório pianístico, encontra ainda abordagens diferenciadas.
O piano, instrumento eleito por Servenière, é apresentado sem quaisquer arbitrariedades. Mesmo as passagens mais transcendentais têm para o intérprete a fluência da escrita, adequando-se às mãos de maneira absolutamente natural. Esse domínio pianístico interfere no conjunto da série de Estudos, rica na diversificação e no desfilar de processos que impactam pela mobilidade sem artifícios. A escrita segura de Servenière não oferece a ruptura com a tradição da técnica para piano, antes enriquece-a, diferentemente de outras que quebram o elo indispensável, tornando a “criação” ininteligível para apreciação mais profunda. Quantas dessas “criações” não são exemplos do vazio de ideias a serviço de uma pretensa originalidade? Já comentei, em blog bem anterior, o encontro em Londres com jovem compositor inglês, que, sabedor de meu projeto voltado à criação de Estudos contemporâneos para piano, que se estendeu de 1985 a 2015 – fronteira dos séculos – ofereceu-me sua contribuição. Ao verificar in loco o Estudo, constatei a impossibilidade de poder executá-lo, e certamente o mesmo deveria acontecer com qualquer outro pianista, tão absurda a proposta escritural. Perguntei-lhe se alguma vez teria escrito uma Fuga, obrigação de ofício para um estudante de composição. “Não”, respondeu-me, “pois se trata de um processo ultrapassado”!!! O total descompromisso com o passado pode provocar aberrações. E o jovem já próximo da idade madura disse-me ter ganho prêmios em concursos de composição!!!
Enfim, Elson e eu concretizamos ideia concebida em 2017, quando do lançamento do CD “Éthers de l’Infini” a conter os sete “Études Cosmiques” + “Outono Cósmico”, obras para piano de François Servenière. O YouTube seria o veículo natural para a escuta e a visualização de cada tela de Luca Vitali, que serviu de motivo propulsor à criação. Diria que os sete Estudos e mais “Outono Cósmico”, derradeira criação do pintor, que morreria de ataque fulminante dois dias após ter dedicado a pintura a Servenière, sendo fotografado ao lado da criação (vide ilustração), formam um conjunto monolítico. Inclusive, a coletânea tem uma Coda (segmento final de uma composição), pois “Outono Cósmico” reapresenta passagens existentes no primeiro Estudo, “Borboletas de Luz”, mas executadas em andamento bem mais lento. “Outono Cósmico” foi escrito In Memoriam de Luca Vitali, logo a seguir os sete “Études Cosmiques”, em momentos de intensa emoção por parte de Servenière.
This post of this week addresses the works of my CD “Éthers de l’Infini” now posted on YouTube. The eight tracks selected have been composed by François Servenière and illustrated with paintings by Luca Vitali, whose work inspired Servenière. My friend Elson Otake was responsible for the video editing. Servenière is a great and creative contemporary composer who merges techniques that do not neglect the past with less cerebral present-day compositional tendencies. The eight études posted represent a valuable contribuition to a genre prone – at its extreme limits – to musical adventures that just reveal a void of ideas.