O legado se perpetua

É necessário insistir sobre fato elementar e entendê-lo:
O intérprete detém o poder essencial,
pois é para ele que a música existe realmente.
Não aceitando essa evidência,
arrisca-se a falsear todos os problemas da criação musical.
André Souris
(“Conditions de la Musique”, 1976)

Neste terceiro e último post sobre as “Lendas francesas do piano” abordaremos os pianistas-professores de excelência que nasceram entre 1912 e 1952, todos falecidos. O levantamento realizado pela pianista, escritora e musicóloga Catherine Lechner-Reydellet, que demandou anos de pesquisa, não apenas na busca de dados tantas vezes ocultos, mas também na escolha daqueles que testemunharam em sala de aula ensinamentos e que permaneceram atuantes, merece louvor. “Les Légendes Françaises du piano” é livro referencial, indispensável e uma abertura para que, além das fronteiras da França, o conhecimento daqueles que glorificaram a Escola Francesa de piano estabeleça-se por completo. Como no blog precedente, pouparei adjetivos aos ilustres homenageados.

Suzanne Roche (1912-1986) é rememorada por Désiré N’Kaoua, que observa determinados processos pedagógicos da mestra: “entendia necessário trabalhar programas em intervalos a cada vez mais aproximados. Tratava-se de uma espécie de mitridatização para conjurar qualquer espécie de má surpresa no palco”.

Jean-Marc Savelli escreve sobre Monique de la Bruchollerie (1915-1972): “… considerava que o piano deveria ser a continuidade e expressão do espírito e o pianista, amalgamado ao instrumento; nessa conceituação, aproximava-se fortemente da Escola Russa”. Savelli elenca precisos apontamentos do ensino da mestra que abrangia o todo, cada dedo, pulsos, antebraço e toda posição corporal. Comenta: “A interpretação deveria ser consequência da leitura e da construção da obra, elemento por elemento, e não da sua escuta direta, mas sim da escuta da obra através da leitura da partitura”. Em 1966, durante tournée na Romênia, um acidente grave privou-a definitivamente de suas mãos. Nomeada professora do Conservatório de Paris em 1967, permaneceu na Instituição até sua morte em 1972.

Clique para ouvir, na interpretação de Monique de la Bruchollerie, o Finale da Sonata op. 58 de Chopin:

https://www.youtube.com/watch?v=9v1_5dT5TqE

Catherine Joy se debruça sobre Reine Gianoli (1915-1979). Observa a importância que a mestra dava ao toque profundo: “a ponta dos dedos (próxima da unha, para o máximo de clareza e precisão), servindo-se do peso do braço e do ombro e, sobretudo, o papel relevante do punho, que deve ondular constantemente com o fraseio e a pulsação, mas jamais ficar contraído”.

Pierre Sancan (1916-2008), pianista, compositor e professor, foi nome abrangente. Apesar de empregar princípios técnicos após reflexão aprofundada, “considerava o toque natural de cada indivíduo como revelador da natureza profunda da pessoa e essa postura o mestre não colocava em causa”, segundo Jean-François Antonioli, que acrescenta duas outras atenções: “dedilhados engenhosos e o gesto verdadeiro, garantidor da comunicação espontânea, pois gerado do impulso interior não contraído”. Seu outro ex-aluno, pianista Jean-Marc Savelli, pormenoriza os princípios da técnica de seu mestre.

Após ter participado do II Concurso Tchaikovsky em Moscou em 1962, aceitei o convite da esposa de Pierre Sancan, apoiada pela recomendação de seu aluno, Jean-Bernard Pommier, laureado no famoso concurso, e pouco antes de regressar ao Brasil tive uma aula apenas com Pierre Sancam. Realmente inesquecível. Toquei a 5ª Sonata de Prokofiev e o Estudo Transcendental nº 7 “Eroica” de Franz Liszt. Estou a me lembrar de um conselho definitivo: o reflexo rapidíssimo do ataque digital, a excluir a necessidade de se estudar preferencialmente em andamento rápido. Uma aula apenas e o mestre e sua esposa me convidaram para jantar em seu apartamento dias após, ocasião em que conheci a renomada escritora Louise de Vilmorin, senhora sedutora e de rara inteligência.

Clique para ouvir, na interpretação de Pierre Sancan, de Claude Debussy, quatro Préludes:

https://www.youtube.com/watch?v=AuiIj1O0uAw

Raymond Trouard (1916-2008) é lembrado por seu ex-discípulo Marc-Henri Lamande e, entre mais situações, por instigante observação do tutor: “Você estuda muito, é cansativo, faz transpirar! Vá passear. Você notou que no campo, quando caminhamos, vemos uma árvore, um animal que passa, um rochedo em tal lugar. Ao final do caminho você retorna no sentido inverso, o animal não mais lá está, o rochedo tem outra perspectiva e você nem repara mais na árvore. Todavia, foi o mesmo percurso. Com as frases musicais é a mesma coisa, é necessário conhecê-las nos dois sentidos. É necessário que a virtuosidade esteja a serviço da expressão, não para agradar à galeria ou porque as notas estão escritas e é preciso executá-las. A virtuosidade deve ser compreensível, clara. Estar preparado 120%, pois diante do público não sabemos o que pode ocorrer. Se preparado 120% haverá sempre 80% para se chegar a termo e bem”.

Claire Chevalier, ao pormenorizar o ensinamento de Hélène Boschi (1917-1990), rememora Marie Jaëll, comentada no blog anterior: “Explicou-me que sua técnica transformou-se após a leitura dos escritos da pianista e pedagoga Marie Jaëll, ao pesquisar, mudar e adaptar seu toque para se aproximar o mais possível dos trabalhos dessa aluna e amiga de Liszt”. A técnica compreendia todos os aspectos físicos, da nuca, do dorso até a ponta dos dedos para em seguida se concentrar sobre o movimento circular do dedo e desenvolver velocidade e sensibilidade”.

Helène Desmoulin comenta, entre outras profícuas observações, algo relevante concernente à Geneviève Joy (1919-2009): “dizia que era preciso saber tocar em não importa qual piano e em várias circunstâncias”. Em 1946 casou-se com o compositor Henry Dutilleux. Foi igualmente camerista e apresentou uma quantidade de obras significativas em primeira audição.

Annie D’Arco (1920-1998) salientaria, nas palavras da ex-aluna Catherine Joly, “a busca incessante pelo legato para assegurar a condução equilibrada da melodia e que o mais difícil a obter numa execução era a passagem em pianíssimo, sinal do mais perfeito domínio do toque pianístico”.

Quanto à Germaine Mounier (1920-2006), Françoise Thinat aborda, entre outros itens, dois aspectos fulcrais: “Nenhum extremismo, mas a adição de todas as técnicas: exercícios de Brahms, estudos de Moskovsky, notas presas de Cortot e o jeu perlé de Marguerite Long, sempre com eficácia e convicção. Sabia abordar a obra, fosse ela qual fosse, com um mergulho no universo do compositor”. Outra ex-aluna, Nathalie Lanoé, observa que Mounier estimulava a escuta das gravações dos compositores tocando suas próprias obras, mesmo quando sem o esmero de pianistas de carreira, para se estar mais próximo do texto.

Ginette Doyen (1921-2002), após traçado biográfico de Catherine Lechner-Reydellet, é comentada através da recepção crítica.

Sobre Pierre Barbizet (1922-1990), Joël Rigal comenta que inicialmente o mestre recomendava, para o estudo técnico do aluno, “Czerny, Czerny e sempre Czerny”! Rigal transmite frases de Barbizet em sala de aula: “Quando toco piano, penso sempre estar com um arco (violino)”; tocar todas as notas, uma após outra, exatas, respeitando os valores, tocar uma verdadeira semínima, uma verdadeira colcheia”; “a obra de Beethoven constitui uma moral, a ética preexiste à estética e a domina”. Nos anos 1950 ouvi-o mais de uma vez em recitais memoráveis juntamente com o violinista Christian Ferraz. Na Itália, em 1960, participou do júri do Concurso Internacional Viotti, em Vercelli, ano em que fui laureado.

Maria Paz Santibanez revela uma abordagem inusitada por parte de Claude Helffer (1922-2004): “Que um aluno fosse dotado, medianamente ou nada dotado, não lhe trazia problemas. Isso não quer dizer que o mestre fosse desprovido de senso crítico. Pelo contrário, era muito exigente, mas acreditava que qualquer um poderia aproveitar uma proposta de troca, um convite ao questionamento para chegar às soluções e respostas, estabelecendo assim as próprias escolhas interpretativas”.

Agnelle Bundervoët (1922-2015) é descrita por Christine Généraux. “Sua pedagogia era sem apelo. Sob total controle, sem saída possível! Éramos obrigados a aceitar sua versão tão convincente das coisas! O Contato com a música tinha algo de ‘esportivo’, assim como ‘dominador’ em relação ao instrumento. Assim era ela. Necessário se fazia ‘domar a besta’ e, para tal desiderato, todos os meios técnicos eram bons”. Outro ex-aluno, Gérard Parmentier, observaria que “os bons alunos eram tratados bem mais severamente do que os que tinham dificuldades no curso”.

Samson François (1924-1970) recebe o testemunho de sua única aluna, Myriam Birger. “Seu senso do fraseado era excepcional. Conhecido por certas liberdades nas interpretações dos textos, não cometia um deslize musical. Recomendava estudar, parando sistematicamente no fim de cada frase antes de encadear a próxima. Dizia ‘É menos mal cometer falsas notas do que falso fraseado’. Que conceito verdadeiro”.

Yvonne Loriod (1924-2010) formou gerações de alunos, a maior parte desenvolvendo sólidas carreiras. Catherine Lechner-Reydellet já se debruçara sobre a artista em seu livro referencial resenhado neste espaço, “Olivier Messiaen, l’empreinte d’un géant” (Paris, Séguier, 2008 – vide blogs 10, 17, 24/11/2018). A autora menciona alguns itens relacionados à didática de Yvonne Loriod, entre os quais o trabalho com as escalas utilizando-se de dedilhados não convencionais e com vários tipos de ataque (toque); não estudar jamais além de uma hora e meia em seguida; trabalhar lentamente e com nuances, assim como em pianíssimo; abordar obras clássicas e contemporâneas; realizar recitais temáticos.

Nicole Henriot-Schweitzer (1925-2001) recebe os comentários de Thérèze Malengreau. Entre esses, o de deixar repousar uma peça, depois retomá-la e redescobri-la através de um estudo paciente. Um amálgama das Escolas se daria, pois, segundo a ex-discípula, “Nicole Henriot, tendo estudado com Marguerite Long, possuía o jeu perlé e a clareza tão enaltecidos da Escola Francesa, mais o cantábile e a pujança da Escola russa, da qual era admiradora”.

Aldo Ciccolini (1925-2015), no dizer de Lechner-Reydellete “O imenso! A lenda”!, nasceu em Nápoles, mas tinha igualmente a nacionalidade francesa. Segundo sua aluna Agnès Postec, “sua abordagem instrumental era extremamente natural. Incrível variedade sonora, grande economia de gestos, de onde a impressão de verdade e de simplicidade na expressão musical. Dava poucos conselhos mecânicos, mas em contrapartida exemplificava ao piano. Considerava a escuta elemento central da realização pianística. Ensinava-nos a buscar, a criticar, a questionar”.

Clique para ouvir, na interpretação de Aldo Ciccolini, de Wagner-Liszt, A Morte de Isolda (gravação ao vivo, 2010):

https://www.youtube.com/watch?v=nnH3E8Q7l3A

Françoise Clidat (1932-2012), denominada pelo crítico Bernard Gavoty de “Madame Liszt”, realizou a proeza de, numa mesma noite, ter apresentado as quatro obras para piano e orquestra de Liszt. Seu assistente e amigo Paul Blacher testemunha: “ela nos dizia que temos a chance de ouvir as gravações dos grandes pianistas do passado”. Aos alunos dizia: “vocês têm de seduzir e convencer”.

Gérard Frémy (1935-2014), “defensor absoluto da música de seu tempo”, nas palavras de Cathérine Lechner-Reydellet, recebe dois testemunhos. Bernard Geyer conta a proximidade maior do mestre com seus alunos em detrimento de seus colegas professores. Contrariamente a tantos outros mestres cujo universo se limita unicamente ao piano, Gérard Frémy “aconselhava-nos a ver um filme ou determinada exposição de pintura que ele vira e apreciara. Conversas giravam constantemente em torno da música, assim como da poesia e da literatura”. Geyer dirá mais: “A qualidade do som era para ele primordial, a insistir que o som deveria ser ‘esculpido’. Sem essa prerrogativa a execução tornar-se-ia superficial”. O testemunho de Karolos Zouganelis corrobora a afirmação de seu colega sobre o som. Estou a me lembrar de frase de Claude Debussy em carta a Bernardo Molinari aos 6 de Outubro de 1915 “… poucos se preocupam com a beleza do som”.

Pierre Froment (1937-2016). Romain Hervé traz observações expressivas: “Nossas discussões poderiam durar horas… verdadeira alegria… Ensinou-me a honestidade musical relacionada ao compositor, a si mesmo e ao público; algo puro onde não havia lugar para a inveja, a competição, o egocentrismo. Para ele nada era impossível, fosse o real ou a vivência dos sonhos”.

Catherine Collard (1947-1993) é rememorada por Marc Vitantonio e Laura Presti. O primeiro observa: “Seus cursos correspondiam à imersão total na obra trabalhada. Nenhum compasso sequer deixava de ser exemplificado pela mestra para evidenciar propósitos, nenhum conselho técnico sem a sua aplicação pessoal de maneira hábil e convincente”. Laura Presti concorda com seu colega: “Sabia desvendar as fraquezas dos alunos, orientava-os, dava-lhes as chaves técnicas e musicais, exigindo que não a imitassem, pois cada um deveria guardar sua própria personalidade, sua própria dimensão interior”.

Brigitte Engerer (1952-2012). Emmanuel Mercier, assistente da pianista no Conservatório de Paris, testemunha a admiração de Engerer por seu professor durante nove anos em Moscou, Stanislav Neuhaus – filho do mestre Heinrich Neuhaus: “É com muita sensibilidade e afeição que evocava sua lembrança, emocionada e calorosa”. Inexplicavelmente o pai, em seu livro “A Arte do Piano”, entre tantos nomes elencados não cita uma vez sequer seu próprio filho! Prossegue Mercier: “Sua abordagem musical e pianística era essencialmente sensível e expressiva, próxima àquela de seu mestre Stanislav Neuhaus, inspirada no método de Stanislavsky aplicado à atuação dos atores, que devem imaginar e viver eles mesmos as situações. Para Brigitte, necessário se fazia ‘viver’ a música, desenvolver a imaginação e realizar a interpretação da melhor maneira possível”.

A longa viagem pelo livro “Les Légendes Françaises du piano” faz-me refletir sobre a imperiosa necessidade da preservação da memória. Não fosse o projeto da infatigável Catherine Lechner-Raydellet, a entender que o escoamento do tempo implicaria o desaparecimento dos ex-alunos dos homenageados, todos estes já falecidos, a névoa sombria e irreparável apagaria os vestígios de tantos luminares franceses do piano. Oxalá esse esforço pioneiro repercuta em Escolas de outros países que cultuaram e ainda cultuam a arte do piano. Só entenderemos caminhos a serem trilhados conhecendo o passado. Ele nos conduz, mostra-nos a origem originária da ideia que leva pouco a pouco às novas descobertas, novas técnicas e assim sucessivamente. Como entender o boom da Escola Chinesa de piano e seus caminhos, mormente voltados à alta virtuosidade, sem admitirmos que em suas entranhas estão todos os princípios das Escolas Francesa, Alemão e Russa, para não mais dizer?

Se tenho mais acentuadamente nos últimos meses apresentado neste espaço os nomes referenciais da arte pianística do passado, vem essa ideia da obliteração que se dá. A mídia implacável busca o novo que traga visibilidade e lucro, tenha ou não qualidade. Há por vezes um olhar “benevolente” aos mestres de antanho, mas efêmero e infrutífero. O leitor atento poderá observar em aplicativos como o YouTube, voltados à música clássica, de concerto ou erudita, a diferença entre o número de acessos não à altura da qualidade dos intérpretes luminares da arte do piano do passado e de alguns recém-entrados no cenário. Impressiona e faz pensar. Civilização do espetáculo. Continuarei a cultuar e a divulgar esse legado que ainda pulsa através das gravações.

Creio imprescindível ao menos duas traduções de “Les Légendes françaises du piano”, para o inglês e o mandarim: pois na China, segundo dados comprovados, 30.000.000 estão a estudar piano.

In the third and final post about Catherine Lechner-Reydellet’s book, “Les Légendes Françaises du Piano”, I quote comments made by former students on great French pianists-teachers born between 1912-1952, all already deceased. The book, a gigantic task conducted by Lechner-Reydellet, requiring years of research, is likely to become a reference in its field. The author has understood the importance of preserving the past to understand the present. I hope her pioneering effort will inspire other studies on national schools of piano. At least two translations of “Les Légendes Françaises du Piano” would be essential: into English and also into Mandarin, the language spoken by 30 million piano students.