Através dos depoimentos de seus ex-alunos

O estudo de piano necessita longos esforços.
Não obstante, eles não consistirão em lutar contra a natureza.
Uma mão normal é feita para tocar piano
e todo pianista que não partilha essa convicção é indigno de sua arte.
Marguerite Long
(“Le Piano”)

Catherine Lechner-Reydellet, pianista e professora de ensino artístico no Conservatório Regional de Música de Grenoble, tem dons outros de escritora, poetisa e, sobretudo, de investigadora musical a desvendar caminhos. Entre seus livros sobre música, dois foram resenhados neste espaço: “Messiaen, L’empreinte d’un géant” (I e II, 10 e 17/11/2018) e “Traité de technique musicale pour tous” (02/02/2019). No presente livro, a autora aprofunda-se em tema que lhe é caro e que, sob outra égide, está desenvolvido em “La Grande École française du piano” (2014). No desiderato de dar a conhecer as metodologias didáticas de 50 relevantes pianistas franceses que desempenharam, concomitantemente à atividade pianística, o professorado competente, Lechner-Reydellet buscou nos depoimentos de ex-alunos, que se destacaram em suas futuras atividades musicais, as observações obtidas em sala de aula, majoritariamente no Conservatório de Paris. Nesse sentido, deu liberdade aos convidados de não apenas enveredarem na estrita visão didática, nos processos técnico-pianísticos aplicados pelos mestres, como na interpretação e escolha repertorial. Permitiu-lhes comentários sobre caraterísticas pessoais do professor, sua integração com os futuros pianistas, seu humor, sua afirmação como pianista e didata.

Catherine Lechner-Reydellet explica os propósitos de “Les Légendes Françaises du piano” (France, Aedam Musicae, 2020) na nota introdutória: “Consagrado à memória dos pianistas franceses do século XX, o livro tem como vocação descobrir como os artistas de hoje foram influenciados pelas figuras de ontem, e resgatar a herança dos mestres do passado legada aos grandes intérpretes que os sucederam. Parte ao encontro de testemunhas da história das ‘lendas francesas’ para descriptografar a técnica dos ‘antigos’, sua captação pedagógica, sua maneira de transmitir o saber”.

Primeiramente, impressiona o número de relevantes pianistas que representaram a Escola Francesa e que tiveram carreiras consagradas no mundo. O debruçamento sobre dezenas de pianistas-professores evidencia que alguns deles são notoriamente conhecidos mundialmente e outros, destacados intérpretes que, mesmo sendo respeitados, não granjearam a divulgação merecida por vontade pessoal ou por motivos vários. Catherine Lechner-Reydellet, antes do testemunho desses ex-alunos que se notabilizaram nas várias ramificações da arte musical, explana com propriedade o perfil do homenageado. O leitor tem a oportunidade de apreciar todos os personagens “lendários”, mormente aqueles menos conhecidos do grande público, todos já falecidos. Se Alfred Cortot (vide blog: Alfred Cortot e a poética inefável, 29/02/2020), Marcelle Meyer (vide blog: Marcelle Meyer – A redescoberta merecida, o6/03/2007) , Marguerite Long (vide Marguerite Long – permanecerá na história, 11/04/2020 e Marguerite Long – Livros e método didático, 18/04/2020), Yves Nat, Vlado Perlemuter, Jeanne-Marie Darré, Yvonne Lefébure, Robert Casadesus, Jean Doyen (vide blog: Jean Doyen – A interpretação inefável, 31/08/2007), Monique Haas, Pierre Sancan, Yvonne Loriod, Samson François, Brigitte Engerer, entre alguns mais, são sempre lembrados pelos aficionados, o pormenorizar pianistas menos ventilados, mas excelentes, revela por parte da autora a determinação do resgate necessário de luminares da Escola Francesa de Piano. Dois que tiveram dupla nacionalidade estão presentes: Magda Tagliaferro, a grande pianista e professora brasileira que obtivera a nacionalidade francesa, e o notável Aldo Ciccolini (ítalo-francês).

Clique para ouvir, na interpretação de Jeanne-Marie Darré (1905-1999), a Toccata de Saint-Saëns:

https://www.youtube.com/watch?v=ZJMi_DD0b5s

“Les Légendes françaises du piano” é uma verdadeira enciclopédia, a desvelar pormenores da denominada Escola Francesa de piano em sua linha mestra, mas a conter vertentes. Determinadas palavras serviram durante décadas para definir o técnico-pianístico francês: clareza, jeu perlé, articulação digital, desvio de excessos interpretativos, pedalização quase sempre econômica, som que se poderia considerar como “característico” da Escola Francesa e tantas outras. Todavia, dos 50 pianistas-professores, não poucos sofreram influências de outras tendências, como a da Escola Alemã e certamente a da Escola Russa. Essa combinação de metodologias de ensino aplicadas por cada pianista-professor, mormente no Conservatório de Paris, é desvelada criteriosamente pelos testemunhos de ex-alunos de maneira não unânime, mas com inúmeras concordâncias. Não fosse o levantamento hercúleo de Lechner-Reydellet, o olvido implacável seria definitivo para pianistas-professores menos ventilados em França.

Os contributos testemunhais por vezes se atêm a mais de um professor. É o caso específico do excelente pianista Désiré N’Kaoua, meu colega em Paris, que se debruça sobre sete homenageados com quem teve a oportunidade de estudar. Outros mais comentam dois ou três mestres. Considere-se que alguns pianistas-professores receberam mais de um testemunho a enriquecer a qualidade de ensino, pois apresentam olhares diferentes sobre a metodologia do didata. Yvonne Loriod, notável pianista e professora, esposa do compositor Olivier Messiaem, é retratada pela autora a partir de excerto retirado de seu livro acima mencionado sobre o ilustre músico. Frise-se que todos os colaboradores desenvolveram proficuamente suas carreiras. Tive o privilégio de escrever sobre dois de meus mestres, Jean Doyen e Jacques Février. Marguerite Long, com quem estudei, foi pormenorizada por N’Kaoua em diversos dados inéditos.

A riqueza de “Les Légendes françaises du piano” vem dessa captação de elementos diversos. A partir de uma coluna mestra estabelecida através da denominada Escola Francesa de pianoforte-piano, alicerçada desde as primeiras décadas do século XIX, seus epígonos, nascidos nas décadas finais daquele século — exceção à Marie Jaëll (1846-1925) —, souberam transmitir seus conceitos essenciais a uma plêiade de expressivos pianistas pedagogos: Marguerite Long (1874-1966), Alfred Cortot (1877-1962), Armand Ferté (1881-1973), Lazare-Lévy (1882-1964), Blanche Selva (1884-1942), Jeanne-Célestine Blancard (1884-1972) Nadia Boulanger (1887-1979), Yves Nat (1890-1956), Marcel Ciampi (1891-1980). Dessa coluna mestra didática, vertentes surgiram em consequência prioritariamente das individualidades, contudo sem haver olvido das orientações de antanho. Desses mestres, como não se lembrar dos contributos extraordinários deixados através da publicação de métodos e tratados pianísticos criados por Marguerite Long, Alfred Cortot, J.-Célestine Blancard e sobretudo, mercê da extensão qualitativa, as referenciais obras de Marie Jaëll e Blanche Selva que serviram de esteio aos pósteros?

Em seus depoimentos, os ex-alunos não têm nem poderiam ter um discurso unânime sobre a decantada Escola Francesa de piano, o que demonstra pluralidade. Esse fato evidente revela, entretanto, que os quesitos básicos técnico-pianísticos persistiram. Os métodos com exercícios e estudos fundamentais para o aprimoramento da técnica seriam basicamente os mesmos. A aplicação do ensino a visar à virtuosidade, essa sim, estaria a depender da personalidade de cada pianista-professor. Quanto ao repertório, estende-se basicamente de J.S.Bach aos compositores modernos, preferencialmente franceses. E seria nesse conjunto repertorial que alguns conceitos sobre a Escola Francesa de piano estariam ampliados, mercê dos depoimentos sobre a aplicação didático-metodológica. As declarações daqueles que viveram o aprendizado e aperfeiçoamento em sala de aula estendem e enriquecem a conceituação que se tem da Escola Francesa, universalizando conceitos antes enraizados.

Numa visão abrangente, a maior parte dos pianistas-professores franceses lembrados estudou com seus antecessores no Conservatório de Paris e a maioria dos depoentes foi premiada nessa Instituição de ensino. Sob outra égide, os 50 intérpretes focalizados, tantos os sobejamente conhecidos como aqueles igualmente competentes, mas menos divulgados, exerceram a atividade de intérpretes dentro do território francês, na Europa, nas Américas, mormente a do Norte, e por vezes no Extremo Oriente. Seria evidente a troca de informações e a assimilação por muitos deles de processos aplicados em terras outras.

Clique para ouvir, na interpretação de Samson François (1924-1970), L’Isle Joyeuse de Claude Debussy:

https://www.youtube.com/watch?v=evU5ubgtRXA

Duas pianistas relevantes que se notabilizaram, mormente pelas pesquisas sobre a técnica pianística, Marie Jaëll (1846-1925) e Blanche Selva (1884-1942) integram a preciosa lista e os textos a elas pertinentes foram extraídos de publicações da Bibliothèque National de Strasbourg e das Éditions Symétrie, respectivamente.

Clique para ouvir, na interpretação de Blanche Selva, o tríptico Prelúdio Coral e Fuga de César Franck, (gravação de 1928):

https://www.youtube.com/watch?v=IdlM-nK8ppM

Em um segundo blog serão tratados aspectos desenvolvidos em sala de aula e comentados por ex-alunos, quando a diversidade de ensinamentos – apesar de um eixo paradigmático da Escola Francesa existir -, faz-se sentir.

The pianist, pedagogue and writer Catherine Lechner-Reydellet has already had two of her books commented on in my blog. Today I write about her new work, “Les Légendes Françaises du Piano”. In her own words, the book intends to find out how artists of today have been influenced by those of yesterday and to rescue the heritage that great masters of the 20th century bequeathed to the performers that followed them. It does so through the testimony of former students of fifty masters of the distinctively French piano style, trying to decode their techniques, their way of transmitting knowledge, the pedagogical pianistic lineage they helped establish. The classroom experience of such witnesses, all of them great interpreters in their own right, improves our knowledge of the so-called French piano school, also unveiling the influence on some of the legendary teachers of new approaches to technique and interpretation borrowed from other national schools of piano.