Fronteiras nem sempre entendidas
Todo o mundo vê os materiais que estão ao seu redor:
somente aquele que tem algo a dizer
descobre seu conteúdo,
embora a forma
continue a ser um segredo para a maioria.
Goethe
Das inúmeras mensagens referentes ao último post, separei duas que atingem o cerne de uma temática nem sempre compreendida, a transcrição e a “modalidade” da intervenção arbitrária, esta, tantas vezes improvisada ou simplesmente alterada ao prazer de quem assim age. Eliane Mendes, viúva do nosso notável compositor Gilberto Mendes, escreve sensível mensagem:
“Na música erudita sempre houve a orientação para se manter o original do compositor. Mas isso nem sempre aconteceu, como vemos até mesmo nas revisões que mudam tanto, nos deixando sempre na dúvida de como seria o original, com diferenças muito grandes entre os diferentes revisores, mudando inclusive algumas notas, ligaduras e tudo o mais…
Cheguei a ver, num documentário recente sobre um dos concertos para piano e orquestra de Chopin, o regente e o pianista mudando todo um trecho do concerto, dizendo que não estava bem composto e que eles iriam melhorar. Ousadia e desrespeito devido ao Ego exacerbado dos intérpretes, não é verdade?
Na música popular o natural é o arranjo, com muitas vezes os músicos populares se dando ao direito de arranjar algumas músicas eruditas, como uma vez um dos cantores populares brasileiros fazendo um arranjo de uma música de Villa Lobos, dizendo que ‘tinha dado uma melhorada na música’. Arrogância não tem limites na sua audácia, não é, José Eduardo?
Mas a decadência cultural é o que se vê hoje em dia, em todas as áreas. Desde sempre o povo se espelhou no erudito, mas hoje em dia o erudito se espelha no povo. Cabe a nós, individualmente, fazer a seleção para nós mesmos, independentemente do baixo nível que a moda quer nos impor.
Uma vez eu vi um filme inglês que mostra a ignorância rindo da inteligência e da sabedoria, quando então um observador comenta: ‘O ignorante sempre faz questão de mostrar sua ignorância!’.
Integridade, respeito, beleza interior é o que nos cabe acessar, por serem virtudes intocáveis, totalmente indiferentes à moda”.
Gildo Magalhães, Professor titular da FFLECH-USP, escreve:
“Sábias e contidas palavras, seguidas por exemplos fulgurantes!
Sempre me interessei por uma espécie particular de transcrição, que são os filmes baseados em obras literárias. Sabemos que poucas vezes o filme chega às alturas do livro, e raríssimo é o caso de uma superação, sendo vários os fatores intervenientes, geralmente a duração da película não é suficiente – mas sempre há a possibilidade de nos deleitarmos com ambas as criações, cada uma com seu valor. Acredito que as transcrições musicais também podem ser assim encaradas. E no caso musical há ainda um fator a mais, quando se trata de uma transcrição de vários instrumentos para um só, como o piano: é a possibilidade de facilitar sua execução e divulgação. Como não admirar uma transcrição como a que Liszt fez para piano da abertura de Guilherme Tell?”
A transcrição existe há séculos e pressupõe o prazer daquele que transcreve visando a um novo olhar. Transcrições são realizadas majoritariamente movidas pelo respeito ao compositor eleito, seja ele de antanho ou coetâneo. Ao se ler a importantíssima correspondência entre Franz Liszt (1811-1886) e Richard Wagner (1813-1883), pode-se sentir o afeto do compositor húngaro pelas aberturas das óperas de seu amigo e genro alemão. Tannhäuser, Lohengrin, Parsifal, Tristão e Isolda e outras óperas de Wagner têm a admiração confessa de Liszt, independentemente dos laços afetivos (vide blog: “Remetentes e destinatários de missivas em torno da Música”. 23/11/2019). As transcrições de Liszt de segmentos fundamentais da criação wagneriana se estenderiam igualmente para outros autores, entre os quais J.S.Bach, Schubert, Schumann, Verdi, sem contar as Sinfonias de Beethoven…, tantas dessas versões plenas da mais elevada virtuosidade. A consubstanciar esse atributo lisztiano, escreve o notável filósofo Vladimir Jankélévich (1903-1985): “No virtuosismo de Liszt há um interesse tecnológico, ao mesmo tempo que uma homenagem à demiurgia artesã do homem. Nada é impossível ao homem, tudo o que ele pode fazer com seus dez dedos, tudo o que o homem-virtuose realiza diante do teclado! O virtuosismo implica, como corolário, a solidão genial do herói… O homem diz bravo à performance do homem, aplaude o evento quando esse é o triunfo do homem, uma proeza, uma recuperação perigosa! O pianista é um animal com suas duas mãos preênseis, com o polegar oposto aos outros dedos; em plena época do maquinismo, sem máquinas e sem ferramentas, o pianismo leva ao extremo a tensão heroica da Mão” (“La Rhapsodie – verve et improvisation musicale”. France, Flammarion, 1955).
Clique para ouvir, na magistral interpretação de Geörgy Cziffra, a abertura da ópera Tannhäuser, de Richard Wagner, transcrita para piano por Franz Liszt, desafio para os pianistas, mercê, entre outros méritos, da virtuosidade transcendente.
https://www.youtube.com/watch?v=13zFjZ7OLDw
Quanto aos dois exemplos mencionados por Eliane Ghigonetto Mendes, tem-se a clara interferência que bem poderia ser nomeada transgressão. Apesar das controvérsias relativas ao gênero, transcrições no decurso da História tem revelado verdadeiras obras-primas arquitetadas por mestres. A presença da transcrição com o signo da qualidade é uma das contribuições que permanecerá ao longo da História.
I received numerous messages regarding the previous blog. I include two of them in the present post and make further considerations about transcription, focusing on the figure of Franz Liszt.
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