Recente turnê pelo Brasil

Recente turnê no Brasil

Porém, a arte só beija quem por ela almeja ser beijado.
A arte exige uma liturgia,
um ritual, que se prende com a fonte
da dádiva e a aproximação ao amor.

Miguel Real (1953-)

Através de meu sobrinho, Ives Gandra Martins Filho, ministro do Tribunal Superior do Trabalho, tenho imenso gosto nesses últimos dois anos de trocar correspondência com a excelente pianista norte-americana Solungga Liu, Coordenadora da Área de Piano e Professora Associada de Piano no College of Musical Arts, Bowling Green State University, EUA. Solungga desenvolve uma bela carreira, tendo se apresentado nos cinco continentes não só como solista frente a renomadas orquestras, como em inúmeros recitais com ampla aceitação crítica e pública. Seu repertório extenso aborda tanto obras sacralizadas como, preferencialmente, as composições contemporâneas ou pouco executadas do repertório tradicional norte-americano, mormente criações do início do século XX. Dedicatária de criações de vários autores relevantes dos Estados Unidos, entre eles Steve Reich (1936-), Stephen Hartke (1953-), Gregory Mertl (1969-) Aaron Travers (1975-) e Eric Nathan (1983-), Solungga Liu visitou o Brasil pela oitava vez e, nesta última estada, participou do 5º Festival de Música de Câmara PPGM-UFPB em João Pessoa, na Paraíba, onde se apresentou como camerista, recitalista e professora. Após, apresentou-se em Brasília.

Nossa amizade, intermediada pelo sobrinho Ives Filho, deu-se através de um Estudo para piano de destacado compositor norte-americano, Stephen Hartke (1953-). Em 1985 coordenei um caderno de homenagens ao compositor romântico brasileiro Henrique Oswald (1852-1931). Naquele ano, Stephen Hartke estava a oferecer um curso na Universidade de São Paulo, no Departamento em que eu atuava. Convidei-o e, engenhosamente, Stephen compôs Template, criação bem contemporânea, mas estruturada a partir do Étude-Scherzo de Oswald, composto em 1902. A fotocópia do manuscrito original, que me foi presenteado pela neta do compositor, a saudosa Maria Isabel Oswald Monteiro, encantou Stephen, que fez minucioso recorte aproveitando-se de notas, compassos ou segmentos do estudo, uma “espécie” de kirigami, arte japonesa antiquíssima a partir de folha de papel harmoniosa e simetricamente recortada em seu interior. O leitor, através da imagem da primeira página de Template, poderá observar o processo utilizado. Apresentei as criações de Oswald e de Stephen Hartke no Festival Música Nova, dirigido pelo compositor Gilberto Mendes (1922-2016), em Santos e São Paulo no mesmo ano. De maneira magistral, Solungga Liu, intérprete de várias obras de Harke, executa na sequência os dois Estudos. Como curiosidade, Template foi o primeiro Estudo da coletânea que reuni e que se estendeu de 1985 a 2015, a corresponder a 30 anos do Estudo para piano nas fronteiras dos séculos. Recebi ao todo 85 criações vindas de inúmeros países.

Clique para ouvir, nas interpretações de Solungga Liu, os Étude-Scherzo de Henrique Oswald e Template de Stephen Hartke:

(268) Henrique Oswald: Estudo-Scherzo {Solungga Liu, piano} – YouTube

(268) Stephen Hartke: Template, from Post-Modern Homages, Set 1 {Solungga Liu, piano} – YouTube

Reiteradas vezes neste espaço tenho ressaltado os vários caminhos a que um intérprete se propõe. Aqueles que, majoritariamente oriundos dos mais afamados concursos internacionais de piano, tendem a prosseguir suas carreiras vitoriosas para um público maior, tendo como prioridade o repertório sacralizado, desfilarão seus talentos cultuando as obras preferidas das plateias do planeta. Todavia, acredito que há um dom inalienável, nem sempre presente, o da curiosidade. Se bem pensarmos, o repertório sacrossanto, importantíssimo e que deve fazer parte da seleção de composições de todos os intérpretes, é a ponta do iceberg. Há incontáveis tesouros ocultos de antanho que estão sendo revelados lentamente e com critério, e esses só serão visitados se o intérprete tiver o dom da curiosidade. Buscar, pesquisar e revelar preciosidades mantidas em tantos arquivos espalhados nas bibliotecas do mundo.

Não obstante, há também nesses acervos enorme quantidade de composições não bafejadas pelas musas, obras sem um valor escritural maior, apenas fruto do ofício de compor. Independentemente do passado qualitativo, olhar para o presente é fundamental, mas essa visão é mais complexa devido à Torre de Babel representada pela prolixidade de incontáveis tendências composicionais existentes, muitas delas aparências da qualidade. Vive-se no tempo em que cada compositor tem sua técnica particularizada, diferentemente do que ocorria nos séculos passados, em que forma e conteúdo mantinham uma certa homogeneidade. Ao intérprete cabe distinguir e escolher as obras que, a seu ver, contenham significância.

Solungga Liu soube escolher. Admiro sua acuidade frente às tendências. Em seu repertório perpassam criações contemporâneas arrojadas sob a ótica escritural, mas também não despreza, antes cultua, compositores que apresentam linguagem que poderíamos considerar como neoclássicas ou neoromânticas. Pesquisou também o passado norte-americano e, em seus recitais, não deixa de divulgá-lo, caso específico da compositora Amy Beach (1867-1944).

Clique para ouvir, de Amy Beach, Ballade op. 6, na interpretação de Solungga Liu:

https://www.youtube.com/watch?v=_KK3R1bxJaM

Acredito firmemente que o compositor não pode ser julgado pejorativamente por não aderir ao experimentalismo. Se admiro profundamente o compositor Jorge Peixinho (1940-1995), que seguiu os caminhos dos ensinamentos da Escola de Darmstadt na Alemanha (Internationalen Ferienkurse für Neue Musiky), não deixo de admirar Gilberto Mendes (1922-2016), que aprendeu as lições dos cursos proferidos em Darmstadt e frequentou posteriormente tendências múltiplas, sempre a compor criativamente. Tenho igualmente apreço, entre outros compositores, pelas obras do francês François Servenière (1961-), do nosso Ricardo Tacuchian (1939-), que criou técnica inovadora, e do português Eurico Carrapatoso (1962-), este, cultor de tantas técnicas de que remontam ao glorioso passado.

Solungga ficou hospedada em São Paulo, como habitualmente o faz, na residência de seu grande amigo Fernand Alphen, cidadão de grande cultura. Convidaram-nos para um jantar íntimo e enfim pudemos nos conhecer. Solungga interpretou admiravelmente composições contemporâneas de seu repertório e eu, algumas obras, entre as quais criações de Gilberto Mendes, neste ano em que se comemora o centenário do notável compositor santista. Regina e nossa filha Maria Beatriz também ficaram encantadas com as execuções e a simpatia de Solungga.

A mescla repertorial que a pianista realiza nesse árduo, mas prazeroso caminho da interpretação a torna uma artista completa. Se apresentou alguns dos Concertos para piano e orquestra consagrados pelo grande público, visitou nessa configuração criações de Lutoslawsky, Aaron Travers, Gregory Mertl.

Insere-se Solungga Liu entre aqueles que têm a visão multifacetada. Excelente pianista, distante dos holofotes irmanados com o egocentrismo, a pianista realiza suas interpretações com maestria, sem gestual pour épater les bourgeois, como dizem em França, e dotada de algo inalienável, a curiosidade.

Clique para ouvir, de Eric Natham, Remembrances, na interpretação de Solungga Liu:Eric Nathan “Remembrances”

https://www.youtube.com/watch?v=-UfPDiySsyg

For two years now I’ve been corresponding with the American pianist Solungga Liu, whom I had the pleasure of meeting at the home of a great friend of hers in São Paulo. In this post I comment on our meeting and some of Solungga Liu’s magnificent performances.