François Servenière e a perenidade do sagrado
Para mim, a criação musical não exige somente talento, mas também,
e antes de tudo, caráter, personalidade,
a certeza de que temos um caminho a seguir,
e que nada conseguirá nos tirar do caminho.
Serge Nigg (1924-2008).
Fui impactado ao receber do ilustre compositor francês François Servenière (1961-) sua última criação, gestada longamente, plena de simbologia, rica nos processos escriturais. Sendo conhecedor das múltiplas tendências da música contemporânea, Servenière há décadas professa alguns contextos delas derivantes, mas optou por uma linguagem desviando-se do cerebralismo tantas vezes inócuo.
François Servenière escolheu o seu caminho voltado à criatividade sem se submeter ao Sistema, mas sem perder de vista o passado glorioso da música. Essa escolha, se de um lado lhe deu a possibilidade de se expandir em diversos direcionamentos, fruto do acúmulo musical e humanístico adquiridos com critério, sob outra égide, devido ao culto ao passado, sem dele se tornar refém, cerceou-lhe várias possibilidades de expansão junto ao público e às fontes do Estado, estas que seguem majoritariamente ideologia precisa.
Tendo conhecido inúmeras obras de François Servenière, “The Sacred Fire”, para dois pianos e orquestra, coloca-se entre as maiúsculas criações do compositor, entre elas “Seasons Vertigo” (1993-2007) para quatro pianos e orquestra. Quando a escrita destina-se ao piano, poder-se-ia acrescentar que Servenière tem seu idiomático. Há virtuosidade plena na escrita pianística do “Fogo Sagrado”, característica que o autor sempre desenvolve sabiamente, pianista que foi. Em “The Sacred Fire”, a virtuosidade pianística diante de uma orquestra, avassaladora por vezes, amalgama-se magnificamente. Poderíamos acrescentar que o apreço do compositor pelo jazz, que vem da juventude, está presente em vários segmentos. Como bem enumerou o ilustre compositor pátrio Ricardo Tacuchian, haveria entre as tendências composicionais da atualidade quatro fundamentos e suas ramificações, sendo que em um desses caminhos não há exclusão ao culto a determinados procedimentos que têm origem na tradição. François Servenière, estando bem atualizado quanto aos novos processos, mantém-se fiel à sua escrita enriquecida pelo acervo adquirido, mas a saber selecionar atributos novos, excluindo aqueles nitidamente panfletários e sem lastro, cultuados em guetos
Tive o privilégio de gravar várias de suas obras, entre as quais os sete “Études Cosmiques”, mais o “Outono Cósmico”, inspiradas nas magníficas telas do artista plástico Luca Vitali (1940-2013), coletânea que ao meu ver situa-se entre as mais significativas do gênero. Figuram os oito Estudos no Youtube.
Sobre o seu Concerto para dois pianos e orquestra, “The Sacred Fire”, a presente apresentação está toda programada através dos meios eletrônicos, a antecipar uma futura première instrumental. Servenière respondeu à pergunta que lhe formulei sobre o processo atual: “A respeito dos procedimentos informáticos que levaram ao presente resultado, não se trata mais de uma questão, pois todas as músicas hoje, mesmo as clássicas, são fabricadas ou recopiadas sobre softwares informáticos… Que você utilize Finale, Studio Vision, Studio One, Pro Tools, Presonus, Sony ou Apple, a resposta será sempre extraída do cérebro do criador”.
Quanto à origem da obra, Servenière é enfático: “O Fogo Sagrado’ é uma permanência dos escritos bíblicos desde Moisés e sua sarça ardente. É uma metáfora para a vida, para a reprodução através da sexualidade, para a energia vital e simbólica que reaparece regularmente na história humana, quando a existência biológica é confrontada com seu pior inimigo: o niilismo, a negação da criação, o desejo de controle político da natalidade através da manipulação genética e ideologias não naturais, como o malthusianismo. Nos primórdios, os humanos lutaram contra o Bezerro de Ouro, enquanto a moda deletéria atual é a do transumanismo… Uma das manifestações mais grandiosas do ‘Fogo Sagrado’ é a do milagre do Santo Sepulcro, renovado com certeza todos os sábados santo desde o Século IV dC na liturgia ortodoxa”.
A montagem visual de “The Sacred Fire”, na presente modalidade, teve por parte de Servenière uma magnífica exposição de imagens caracterizando o transcorrer da obra. Riquíssima escolha de paisagens, mas especialmente de pinturas da Idade Média ao presente. Para tanto, separei “O Fogo Sagrado” em três links que, ao gosto do leitor, poderão ser acionados na sequência ou em partes.
A construção da primeira secção da obra baseia-se estruturalmente num ostinato, a consolidar intenções. Esse ostinato é rítmico e formado de acentuações incisivas. Quanto às imagens, Servenière apresenta uma série de paisagens áridas do Oriente Médio em sítios onde manuscritos foram encontrados e que corroboram o entendimento dos Testamentos Bíblicos. Cenas a anteceder e a assinalar o nascimento de Cristo, o batismo de Jesus por João Batista, a entrada em Jerusalém até à prisão de Cristo enriquecem a composição.
https://www.youtube.com/watch?v=fqoAuj_Zb7I&list=PL3ycBpUN-VORx9toHcV0tfcOpPI3SR5od&index=1
A segunda parte do Concerto é ilustrada com imagens do calvário de Jesus, da prisão ao julgamento, da longa trajetória até a crucificação e a morte. Incisivamente, um tema principal apresentado sob tantas vestimentas percorre o “Lento Lamento”. Em determinado segmento, a enriquecer o discurso musical, imagens se sucedem à maneira de flashes, com aparições contundentes a seguir as acentuações em alta frequência sonora contidas na partitura. Por vezes, Servenière sobrepõe imagens, a potencializar intenções.
Lento Lamento
https://www.youtube.com/watch?v=9p2laHw0VXo&list=PL3ycBpUN-VORx9toHcV0tfcOpPI3SR5od&index=3
O terceiro movimento se caracteriza por um feerismo total, rítmica implacável e eflúvios jazzísticos. Poder-se-ia pensar numa redenção plena da humanidade. Servenière explora, com raro talento, não apenas o diálogo pianos-orquestra, mas extremadas e incisivas atuações de acordes em fortíssimo, que surgem como em um relampejar. O compositor, na montagem audiovisual, ratifica a inserção das imagens nesses “relâmpagos sonoros”, a provocar o ouvinte nessa volúpia voltada aos extremos. Após verdadeira apoteose de sons, Servenière finaliza a obra com um lento e breve arpejo solado pelo piano e em baixa sonoridade, seguido de brevíssima aparição orquestral, levando “The Sacred Fire” à paz. Jamais alcançada ?
Allegro quasi presto
https://www.youtube.com/watch?v=9p2laHw0VXo&list=PL3ycBpUN-VORx9toHcV0tfcOpPI3SR5od&index=3
O título da obra já sugere intenções precisas e o conteúdo musical já bastaria. Não obstante, em “The Sacred Fire” as imagens, sob a imaginação do compositor, não apenas permitem ao leitor-ouvinte integrá-las ao conteúdo musical, mas também a sua penetração em parte no de profundis de Servenière. Quão mais conheço as suas criações, mais me convenço de que o misterioso universo criativo musical através dos séculos tem sempre suas origens na imaginação, majoritariamente não revelada pelos autores. Quando poemas, libretos, natureza e outras mais inspirações servem de bússola, o amálgama pode se dar. Como bem reza Vladimir Jankélevich, “o segredo pode ser revelado, mas o mistério é insondável”. Não é uma dádiva saber que o misterioso universo interior que propiciou a criação pode ser inspiração possível para a reinterpretação? Ao músico intérprete consciente a resposta ao tornar viva a partitura.
Creio que em “Promenade sur la Voie Lactée”, para piano solo, François Servenière não apenas expõe outro momento criativo, mas nos leva a uma verdadeira experiência etérea.
Clique para ouvir “Promenade sur la Voie Lactée”, de François Servenière, na interpretação de J.E.M.:
“The Sacred Fire”, the last creation of the remarkable French composer François Servenière for two pianos and orchestra, is a singular work. To the technical compositional mastery, Servenière adds fertile imagination. Initially produced by electronic means, hopefully it will soon be performed in concert halls. Consider the excellent selection of images in the montage for the Internet.