Um centenário a ser celebrado
Dito Pituba, sem ser um gênio como Aleijadinho,
foi sem a menor dúvida um artista autêntico,
que legou às gerações modernas o exemplo de um espírito inquieto,
buscando, na humildade do isolamento rural em que se desenvolveu,
soluções que podem hoje servir de exemplo e de inspiração.
Eduardo Etzel
(“Arte sacra popular brasileira”, 1975)
Neste ano comemora-se o centenário da morte de Benedito Amaro de Oliveira, apelidado Dito Pituba, extraordinário e profícuo santeiro popular nascido em Santa Isabel.
Deve-se ao notável Eduardo Etzel (1906-2003) o excepcional trabalho de investigação que o levou à pesquisa de campo, redescobrindo a arte de Dito Pituba (vide blogs: Eduardo Etzel I e II, 17 e 25/08/2007). Foi ele o responsável pela criteriosa coleta de dados e da recolha de centenas de imagens, hoje fazendo parte do acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo.
(261) Uma Assinatura na Arte Anônima: dito Pituba – YouTube
Etzel legou vários livros sobre arte sacra, mormente aquela produzida por artistas populares das cidades fronteiriças à região metropolitana de São Paulo e Alto Tietê, como Santa Isabel a preponderar, mas também Arujá, Parateí, Igaratá, Nazaré Paulista, Itaquaquecetuba, Guararema, Jacareí e localidades menores. Em todas foram encontradas imagens criadas por Pituba. Seu livro “Arte Sacra popular brasileira” é obra fundamental que faz emergir, entre vários temas, a figura de Benedito Amaro de Oliveira.
De alta valia as pesquisas de Eduardo Etzel se considerarmos a busca da origem campesina do santeiro em região que, no século XIX, tinha poucos recursos, a resultar nas escassas referências disponíveis. Escreve: “A esta camada rural pobre pertenceu Pituba, daí ser evidente a dificuldade de se colherem dados biográficos de maior interesse, já que eles simplesmente não existem na vida anônima do pobre. Ressuscitar um morto humilde e desconhecido é tarefa árdua e quase impossível. É como procurar a tumba de um pobre na vala comum do esquecimento. Requer paciência, tenacidade e, sobretudo, uma atenção permanente a nonadas que se ouvem aqui e ali nas ocasionais conversas com contemporâneos”.
Eduardo Etzel, pneumologista consagrado e, nas últimas décadas da existência, psicanalista, foi imenso pesquisador. Tive o privilégio de um longo convívio, que resultou em oportunidades raras nas quais mestre Etzel transmitiu-me conhecimentos extraordinários quanto à pesquisa da arte de Dito Pituba. Incentivou-me a continuar seus aprofundamentos devido à sua faixa etária, que praticamente o impedia de prosseguir as pesquisas de campo. Entre os anos 1970-1980, dezenas de vezes visitei a vasta região cercada por serras, esparsas propriedades rurais, estradas de terra batida e um povo acolhedor. Realizava essas incursões aos sábados, sistematicamente. Após cada viagem visitava-o e aprendi a arte da restauração de imagens sacras. Juntos realizamos uma Exposição no Museu de Arte de São Paulo em 1977, “Dito Pituba – um santeiro paulista”, que teve expressivo incentivo por parte de seu diretor, o notável Pietro Maria Bardi (1900-1999).
Seguindo os passos de Eduardo Etzel, partia sempre de Santa Isabel, cidade natal de Dito Pituba. É certo que o santeiro viveu pouco tempo em três outras cidades, Arujá, Nazareth Paulista e Guararema, localidades onde atendeu à demanda dos devotos, produzindo incansavelmente suas imagens.
O artista isabelense, tendo trabalhado com seu pai em uma olaria, aprendeu a manusear o barro que se transformaria em telhas, tijolos, manilhas e utensílios domésticos. Nascia, sob outra égide, o gosto pela arte sacra criada em barro cru ou cozido e, posteriormente, em madeira (vide blog “Pesquisa de Campo”, 27/09/2008).
Segundo cálculos hipotéticos a mim transmitidos pelo Dr. Etzel, Dito Pituba enriqueceu a hagiografia com cerca de 5.000 peças de arte, divinos, crucifixos e oratórios e, a preponderar, imagens dos santos mais cultuados na região.
Na esfera da criação musical enfatizo sempre que o compositor de talento deixa suas impressões digitais. “O estilo é o homem”, frase do pensador conde de Buffon (1707-1788), aplica-se exemplarmente no caso de Dito Pituba. Sua arte foi se moldando, adaptada aos modestos conhecimentos da arte sacra erudita que aprendia através da oralidade clerical, de raras publicações que lhe serviam de modelo, de sugestões de fiéis que a ele recorriam para a confecção de imagens de seus santos de devoção. Não obstante essas circunstâncias, Pituba, a fim de atender à demanda dos devotos, buscou soluções práticas na elaboração de suas peças destinadas ao culto doméstico. Criou um estilo personalíssimo.
Impressiona em Dito Pituba a sua imensa capacidade para chegar aos resultados. Nada o detinha quando da confecção de uma imagem de santo cultuado encomendada por algum fiel, mas fora do seu habitual criativo, que focalizava aqueles mais venerados. Somava-se a experiência a outras tantas e, a partir de uma imagem sacra inédita para ele, a repetição daquele determinado santo ou santa de devoção tornava-se familiar, o que facilitava a tarefa de santeiro.
Durante a longa existência de Pituba é possível detectar as várias fases criativas através dos materiais empregados. Após o início confeccionando imagens em barro cru, cedo aprendeu, através do conhecimento que lhe vem dos trabalhos na olaria, a moldar suas imagens em barro queimado ou terracota, sendo que a denominada paulistinha, imagem em terracota majoritariamente a variar entre 12 e 18 cm e que tem origem em Portugal, passou a preponderar em sua produção. Vazada no interior para não rachar durante a queima, a paulistinha foi em período extenso o veio criativo preponderante de Pituba e outros santeiros. Seria mais acentuadamente nas fronteiras dos séculos XIX-XX que Pituba produziria com mais afinco as suas imagens em madeira. Já tendo um belo acervo hagiográfico, encontrou em determinada espécie mais mole e fácil de ser manuseada, a caixeta, o veículo propício para a produção de imagens, divinos e oratórios, todos com as suas impressões digitais a não deixar dúvidas da autenticidade do autor. Excepcionalmente empregou para oratórios maiores madeira dura encontrada na região.
Do oratório da imagem abaixo foram retiradas quatro camadas de tinta, pois o campesino devoto da região, ao ver enegrecido um oratório, mercê da fuligem do forno caseiro, repintava-o. Vê-se nas portas a pintura original bem apagada, ilustrada com dois divinos. A imagem do Cristo foi elaborada em terracota, mas tem também tecido nos braços e dele foi retirada uma pintura. Oratório e crucifixo datam das últimas décadas do século XIX, e um dos detectores é a presença de cravos no alto da porta direita, pois já no século XX Pituba se utilizaria de pregos industriais. Quanto à imagem de Nª Senhora da Expectação na abertura do blog, foi ela encontrada em uma santa cruz à beira de uma estrada de terra batida. Quebrada em vários pedaços e tendo sido repintada três vezes, após a restauração, é uma das mais expressivas imagens de Dito Pituba.
Sem a sofisticação das imagens eruditas de madeira nas quais o artista, antes da aplicação das tintas, empregava uma camada de gesso por toda a peça, Pituba simplificou o processo no desiderato de atender aos numerosos devotos. Após a confecção, aplicava diretamente as camadas de tinta, o que não garantia basicamente a perenidade. Felizmente centenas de imagens de terracota e de madeira foram preservadas. Estou a me lembrar de ter constatado, em casa de moradores rurais, um número expressivo de pequenas imagens de madeira completamente enegrecidas pelo picumã. Quanto às cores preferidas por Dito Pituba, destacam-se a azul anil e a alaranjada.
Eduardo Etzel comenta: “Ao examinar a arte do santeiro, veremos diferentes fases de produção, que indicam a maleabilidade com que soube adaptar sua arte às contingências externas, do meio ambiente e suas próprias, com o caldeamento de sua experiência até a idade avançada”. A premência na feitura das imagens fê-lo desenvolver uma invejável habilidade manual e adaptar às suas criações a sua visão do cotidiano. Em tantas delas há a expressividade do santo.
No próximo blog comentarei diversos achados de Dito Pituba ao criar suas imagens, assim como a sua captação do entorno, seja ele humano ou relativo àquilo que lhe era apresentado.
This year marks the death centennial of one of the most important artists of popular sacred art, Benedito Amaro de Oliveira, known as Dito Pituba (1848-1923), born in Santa Isabel, not far from the city of São Paulo. He bequeathed us around 5,000 terracotta and wood images, as well as oratories.
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