Bach-Liszt – “Prelúdio e Fuga em lá menor”

A unidade da obra tem sua ressonância.
Seu eco, que penetra nossa alma, ressoa de um em um.
A obra finda se expande para se comunicar
e retorna enfim ao seu princípio.
Igor Stravinsky (1882-1971)

Não poucas vezes abordei o tema das transcrições (vide blog: “Transcrição e interpretação”, 27/08/2022). Elas existem sob inúmeras destinações instrumentais e surgem, a preponderar, da admiração de um compositor pela criação de um antecessor. A obra de J.S.Bach (1685-1750) foi manancial para inúmeros compositores pósteros realizarem transcrições de algumas de suas criações, mormente aquelas originalmente para órgão, voltadas doravante para o piano. O próprio Bach não transcreveria criações de Antonio Vivaldi (1678-1741)? Puristas entendem como desrespeito, enquanto os afeitos à qualidade dessas leituras d’après originais, como homenagem. A transcrição da monumental composição para piano de Moussorgsky, “Quadros de uma Exposição”, realizada por Ravel para grande orquestra tornou-se icônica. Shostakovich (1906-1975) e Francisco Mignone (1897-1986) também orquestraram a criação do compositor russo. Claude Debussy (1862-1915) deu o seu nihil obstat para a transcrição que seu editor Jacques Durand (1865-1928) realizou de suas duas danças, “Danse Sacrée et Danse Profane”, originariamente compostas para harpa e orquestra de cordas. Quantos compositores mais não tiveram suas obras transcritas?

Durante a pandemia, em que a terceira e a quarta idades foram “convidadas” a permanecer reclusas, e que salas de concerto ficaram silentes, tive o grato prazer de ler uma série de transcrições realizadas por músicos que permaneceram na História. Ratifiquei minha admiração pelas suas feituras qualitativas, que só foram realizadas mercê do apreço deles pelos originais e pela vontade de torná-las possíveis também em instrumentações outras.

Naquele período sombrio revisitei duas, realizadas pelo notável compositor e saudoso amigo Gilberto Mendes (1922-2016) após minha solicitação no sentido de que elas também soariam bem se realizadas para piano solo: “Ulysses em Copacabana, surfando com James Joyce e Dorothy Lamour”, para 10 instrumentos, assim como “O Pente de Istambul”, para duo de percussão. Apresentei-as em duas programações do Festival Música Nova, fundado por Gilberto. A prática da “autotranscrição”, se assim podemos definir, foi inúmeras vezes realizada por notáveis compositores. Jean-Philippe Rameau (1683-1764) transcreveria a “Chaconne”, peça final da ópera “Les Indes Galantes”, para cravo, assim como outras de suas criações operísticas. Gabriel Fauré (1845-1924) fê-lo ao transcrever a “Ballade op. 19” para piano solo em versão para piano e orquestra de cordas; Henrique Oswald (1852-1931) também o fez, ao transcrever para quinteto de cordas e piano o seu “Concerto para piano e orquestra sinfônica”. Sugeri ao compositor francês François Servenière (1961-) a transcrição para piano de “Promenade sur la Voie Lactée”,  criada para orquestra sinfônica. Gravei-a para o CD “Retour à l’Enfance”.

Clique para ouvir, de François Servenière, “Promenade sur la Voie Lactée”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=JQDkWn1HcpQ

Ilustres figuras realizaram transcrições de composições de J.S.Bach. Ferrucio Busoni (1866-1924) transcreveu para piano vários corais de Bach e a magnífica “Toccata, Intermezzo e Fuga”; Tausig (1841-1871) seria consagrado com a transcrição da “Toccata e Fuga em ré menor”; Liszt (1811-1886) transcreveria o “Preludio e Fuga” em lá menor, assim como composições de vários outros autores; Wilhelm Kempff (1895-1991); Alexander Siloti (1863-1945); Myra Hess (1890-1965) e outros mais visitaram composições de Bach e foram tentados a ouvi-las ao piano.

Nos tempos pandêmicos, minha dileta amiga, professora Jenny Aisenberg, ligou-me a dizer que ouvira a transcrição Bach-Liszt do “Prelúdio e Fuga em lá menor”, de Bach, composta originalmente para órgão, na interpretação da notável pianista russa Maria Yudina (vide blog: “Maria Yudina – 1899-1979, 15/08/2020). Conhecia esse “Prelúdio e Fuga”, mas fiquei fascinado pela força emotiva de Maria Yudina. Revisitei essa transcrição junto a tantas outras do gênero.

Nessa última turnê, que assinalou o término de meus recitais na Europa em países que me são particularmente caros, Bélgica e  Portugal, no dia a seguir ao meu derradeiro recital europeu, em Lisboa, dei palestra com vários exemplos musicais de notáveis compositores portugueses: Carlos Seixas (1704-1742), Francisco de Lacerda (1869-1934),  Fernando Lopes-Graça (1906-1994) e Eurico Carrapatoso (1962-). Um ouvinte, que estivera no ano passado no recital que ofereci em Tomar, lá estava em Évora e pediu-me para tocar o “Prelúdio e Fuga” em lá menor, Bach-Liszt. O técnico Gavela, que assessora o Eborae Mvsica, gravou em vídeo a interpretação e me ofereceu. O dileto amigo Elson Otake, responsável há anos pelas minhas gravações no Youtube, introduziu essa magnífica transcrição. Como se tratava de palestra com exemplos, sequer abri a tampa do piano. Contudo, a magnífica igreja barroca de Nossa Senhora dos Remédios tem ótima acústica e abriga algumas aulas especiais e recitais promovidos pela Escola Eborae Mvsica, tão bem dirigida pela professora Helena Zuber. Elson acrescentou, ao final dessa gravação em apreço, três outras transcrições de obras de Bach que gravei em 2005 na Capela Saint-Hilarius em Mullem, Bélgica, presentemente no Youtube: Bach-Hess (Coral “Jesus alegria dos homens”), Bach-Kempff  (“Despertai, a voz está a soar”) e Bach-Siloti (“Prelúdio para órgão em sol menor”).

Clique para ouvir, de J.S.Bach-Liszt, “Prelúdio e Fuga” em lá menor, na interpretação ao vivo de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=VBSv8zoIHdI&t=2s

Sponsored by Eborae Mvsica,  on May 31 of this year I gave a lecture with musical illustrations in Évora, in the Baroque church of Nª Senhora dos Remédios, performing Portuguese composers. Previously I had been  asked to play also the Prelude and Fugue in A minor by Bach-Liszt, a beautiful transcription. The recording is on Youtube . It was my last recording of the year in which I end my public performances at the age of 85. Also on Youtube are  my recordings of three other transcriptions of works by J.S.Bach: Jesu, Joy of Man’s Desiring (Bach-Hess), Awake, the voice is sounding (Bach-Kempff), Organ prelude in g minor (Bach-Siloti).