A obra para piano de Jorge Peixinho e a importância dos cinco Estudos

…o problema da escrita-notação é de capital importância,
porque ele deu origem, ao tentar suprir, num determinado momento histórico,
as lacunas da notação de tipo tradicional, deu origem, dizia eu,
à alteração qualitativa da própria música, isto é, produzindo, em grande parte,
uma transformação da própria mentalidade musical.

Jorge Peixinho
(Entrevista para “O Século ilustrado” de Lisboa, 1974)`

Neste segundo post mencionarei aspectos da relevante e complexa criação para piano de Jorge Peixinho, que apresenta enormes problemas para análise e execução, apesar de o compositor assinalar preliminarmente, em quase todas as peças, indicações em uma “planilha”, corroborando entendimentos para a interpretação. Tantos outros seus contemporâneos assim agiram na prática das várias correntes composicionais, mormente a partir da segunda metade do século XX. Com extrema competência, Ana Cláudia de Assis embrenhou-se nesse mister analítico e, através de seu precioso livro “A caminho de novos portos”, parte da criação para piano de Jorge Peixinho é desvelada, fato importante para os intérpretes que penetram na criação do mestre de Montijo.

Dentre as 18 peças para piano elencadas pela autora, entre as quais se destacam “Sucessões Simétricas” (1961), “Harmônicos I” (1967), “Villalbarosa” (1987), “Glosas 1” (1990) e “In Folio: Para Constança” (1992), verifica-se em Jorge Peixinho uma constante preocupação com a textura musical, sempre em busca da renovação escritural, com ideias novas possibilitadoras de investidas ousadas quanto ao resultado sonoro. Pianista de méritos, divulgaria não apenas as suas criações, mas as de outros seus conterrâneos, assim como as de compositores brasileiros e alguns da América Latina. A produção para piano de Peixinho não é numerosa e se estende de 1959 a 1994, multum in mínimo. Peixinho se debruçaria substancialmente sobre cada composição e seria preferencialmente nos cinco Estudos (1968-1992), obras até certa visão herméticas e monolíticas nos propostos, que os avanços composicionais do compositor mais se evidenciam. Ao todo, como assinala a autora, Jorge Peixinho apresentou em première, como executante, 16 peças para piano. Tive o privilégio de sê-lo em duas composições, “Villalbarosa” e o “Estudo V”.

Em 1994, a meu pedido, Peixinho define o gênero Estudo: “Como qualquer Estudo que se preze, e tomando como referência os exemplos magistrais de Chopin, Liszt ou Debussy, uma peça com este título deve conter dois vectores fundamentais, a saber: ser um ‘estudo’ simultaneamente de execução para o instrumento respectivo (neste e naqueles casos, o piano) e para o compositor igualmente, como laboratório de novas experiências e dilatação dos seus limites técnico-expressivos” (“Introdução a um Estudo sobre o ‘Estudo V – Die Reihe Courante’ – para piano” (São Paulo, Revista Música, vol. 5 – nº 1 – maio 1994, Universidade de São Paulo)”. Creio que essa posição de Peixinho, presente no livro, corrobora as análises que Ana Cláudia realiza dos Estudos. Indica a coerência de Jorge Peixinho.

Necessário se faz considerar que excelsos compositores como Chopin, Liszt, Debussy, Scriabine, Rachmaninov, escrevendo Estudos para piano, agrupavam-nos em coletâneas, o que evidencia a proximidade temporal criativa dos mesmos. Sob outro prisma, processos técnico-pianísticos particularizados e a virtuosidade prevalecem nessas composições, “obedecendo” aos limites do instrumento. A efervescência do pensar levou Peixinho à necessidade de sempre se renovar. As tendências escriturais, que nas fronteiras da segunda metade do século XX entendiam outras possibilidades para o piano, não foram ignoradas por ele, que soube engenhosamente criar seus Estudos sempre a ampliar o técnico-pianístico na busca de resultados sonoros inusitados. As viagens que empreende na escrita dos cinco Estudos são amplas e o piano não é apenas o instrumento tradicional, mas aquele que seria para o criador um laboratório sonoro, uma ampla caixa de ressonância. Cordas acessadas sem a utilização do teclado, objetos entre e sobre elas ou na estrutura metálica povoavam a mente de Peixinho. Sob outro aspecto, no “Estudo V”, Peixinho não se utiliza de materiais alheios ao piano. Todavia, nessa peça, para glissandos sobre teclas pretas e brancas tocadas simultaneamente, há a necessidade da utilização de luvas de lã ou acrílico para que o deslize sobre elas se dê convenientemente.

Na tabela apresentada por Assis tem-se: “Estudo I: Mémoire d’une présence absente” (1969); “Estudo II: Sobre as 4 estações” (1970); “Estudo III: Em si bemol maior” (1976); “Estudo IV: Para uma corda só″ (1984) e “Estudo V: Dei Reihe-Courante” (1992). O inusitado distanciamento entre eles faz supor que uma sequência de Estudos poderia, em tese, configurar para Peixinho a repetição de processos, fator que não fazia parte de seu pensar criativo. Portanto, cada Estudo é uma entidade. Ana Cláudia, através de suas análises, dá a conhecer a individualidade dos Estudos. A autora recolheu posição relevante de Peixinho sobre a melodia: “Hoje não se pode criar uma melodia. Todas as melodias que julgamos que são novas não passam de plágios, de adaptações conscientes ou subconscientes, de resultados estruturais dum passado mais ou menos próximo, mais ou menos longínquo e, portanto, do nosso repositório cultural, ou, tratando-se de um instrumento, do repositório técnico”. Um dos mais importantes compositores brasileiros do século XX, Francisco Mignone (1897-1986), já observava a respeito do plágio: “Todos os grandes artistas de todas as artes foram enormes plagiários. O plágio só é condenável quando feito com a intenção de roubar o sucesso alheio” (“A Parte do Anjo”, 1947).

Clique para ouvir, de Jorge Peixinho, Estudo I, “Mémoire d’une présence absente”, na interpretação de Ana Cláudia de Assis (vídeo de João Pedro Oliveira):
“Estudo I para piano” – Jorge Peixinho – YouTube

(449) Jorge Peixinho Estudo 1 – YouTube

Tecerei algumas posições sobre o “Estudo V Dei Reihe-Courante” – uma obra-prima – que não transmiti em meus textos sobre esta obra. Em blog bem anterior dediquei um post ao “Dei Reihe-Courante”, inserindo ao final um belo poema da notável gregorianista Idalete Giga, “Ars longa vita brevis” (“Um Estudo para Piano de Jorge Peixinho – Estudo V Die Reihe-Courante”, 13/06/2009), impactada pela força expressiva dessa criação. A composição de Peixinho integra o projeto que acalentei, visando à trajetória do técnico-pianístico na passagem dos séculos XX – XXI. Propunha trinta anos para tal. Iniciado em 1985, foi finalizado em 2015 e, ao todo, recebi 85 Estudos vindos de vários países e de nossas terras. De Portugal, Jorge Peixinho e Eurico Carrapatoso (“Missa sem Palavras” – cinco Estudos litúrgicos) colaboraram.

Segundo Ana Cláudia de Assis, “O ‘Estudo V…’, o último da série para piano, é sem dúvida o grande estudo de Peixinho. O mais completo sob o ponto de vista da interpretação, demanda do pianista grande domínio técnico e uma vasta paleta de sons para revelar a complexa arquitetura da obra”.

Apresentei-o em primeira audição absoluta na Universidade Federal da Bahia, em 20 de Setembro de 1993. Logo após, aos 11 de Outubro, em Lisboa. Estou a me lembrar de que pela manhã, antes do recital no Instituto Franco-Português, toquei para Peixinho o “Estudo V”. Nele, há em determinado compasso uma “permutação ad libitum”, mas as precisões quanto aos tempi são constantes. Se precedentemente os autores marcavam a indicação metronômica no desiderato de norteamento para a peça inteira ou segmentos dela, assim como flexibilizações, rubatos, ritenutos e acelerandos, Peixinho não prescinde da orientação fixada pelo metrônomo, mas  indica os segundos para determinados trechos.

Após um bom diálogo, disse-lhe que entendia seu desejo, mas, tendo percorrido o repertório barroco, clássico, romântico, simbolista, moderno e das décadas a seguir, sentia-me no “Estudo V” preso à cronometragem. Disse-lhe igualmente que, apesar das aparências, havia muita emoção em um sem número de segmentos e que eu, sentindo-a, gostaria de expressá-la. Jorge Peixinho aquiesceu. Houve o recital, estivemos juntos em um jantar no Toni dos Bifes, no Saldanha, um de seus lugares eleitos, hoje descaracterizado. Qual não foi a minha grande surpresa ao ler no livro de Ana Cláudia um trecho sensível de Peixinho em carta a Gilberto Mendes, que eu desconhecia: “Como sabe, o José Eduardo Martins esteve por cá e realizou dois recitais estupendos no Instituto Franco-Português de Lisboa. Num deles, ele tocou, entre outros, o seu ‘Estudo Magno’ e o meu ‘Estudo V / Die Reihe-Courante’. Gostei bastante da sua peça, cheia de intimismo e subtilezas. Quanto à minha, ela é uma peça muito complexa, com dificuldades novas e específicas. Neste momento, estou preparando um artigo sobre esta minha obra, destinada à ‘Revista Música’ da Universidade de São Paulo, a convite do José Eduardo” (29 de Dezembro de 1993). Era eu o editor responsável da Revista e o artigo foi publicado no vol. 5, em Maio de 1994.

Ana Cláudia insere um comentário meu publicado na Revista Música da USP (nº11 – 2006). Relatava impressões retidas de turnê que Jorge Peixinho e eu realizamos em cinco apresentações no Brasil em Agosto de 1994: Belo Horizonte, Ribeirão Preto, Santos e São Paulo (dois recitais). Abria o recital a interpretar os seguintes autores: Herbert Brun, Gilberto Mendes, Paulo Costa Lima, Domênico Barbieri, Fernando Lopes-Graça (“Sonata nº 5″) e Jorge Peixinho (“Villalbarosa” e “Estudo V Die Reihe-Courante”). Na segunda parte, Jorge Peixinho apresentava criações de Filipe Pires e Clotilde Rosa, assim como algumas de suas composições referenciais: “Sucessões Simétricas”, “Estudos I e III”, “Aquela Tarde”, “Glosas I” e “In Folio/Para Constança”.

“Essa pequena tournée serviu para um conhecimento maior do pensamento criativo de Jorge Peixinho, assim como a maneira sui generis como se apresentava como pianista, com um senso de dinâmica realmente especial e uma utilização dos pedais a evidenciar um raro senso das ressonâncias. A técnica de pedal traduzia-se, entre outros processos, numa flexibilização constante, e Peixinho os acionava com uma espécie de ‘virtuosidade’ dos pés. Os vários clusters e o consequente prolongamento dos sons ganhavam, através desse recurso empregado pelo pianista-compositor, dimensões outras”.

Clique para ouvir, de Jorge Peixinho, “Étude V – Die Reihe-Courante”, (Julho-Agosto, 1992), na interpretação de J.E.M. (gravação realizada em Maio de 2019, na Capela Saint-Hilarius, Mullem, Bélgica, 2019):

https://www.youtube.com/watch?v=Uc1PTtYbnoA

Após o primeiro post sobre o livrro de Ana Cláudia de Assis, recebi de Eurico Carrapatoso um instigante questionário a respeito de seu relacionamento com Peixinho. Mercê do espaço a que me proponho para os blogs, separei segmentos da relevante entrevista, que serão divulgados no blog do próximo sábado.

In this post I’ll be discussing Jorge Peixinho’s five piano studies, especially the Study V Die Reihe Courante, a masterpiece.