A reverência do ilustre ex-aluno ao notável mestre

[...] a única coisa que podemos fazer
é levar às últimas consequências
os instrumentos tradicionais: cravo elétrico,
piano preparado com parafusos nas cordas,
tapas na boca do trompete, guitarra elétrica.
Nada disso é revolucionário,
mesmo o vibrafone que usamos é tradicional.
O que se pode fazer com eles é procurar usá-los de novas formas.
Isso muitas vezes não é compreendido pelo público.
Por exemplo, quando bato nas teclas do piano com o antebraço,
isso não é uma agressão ao piano,
mas uma maneira de materializar em efeito sonoro desejado.
Jorge Peixinho

Após os posts sobre o livro referencial de Ana Cláudia de Assis, “A caminho de novos portos”, recebi do notável compositor Eurico Carrapatoso uma mensagem: “Partilho reflexões recentes numa entrevista para um mestrado na Universidade de Aveiro do meu ex-aluno, hoje guitarrista ilustre, o Pedro Lopes Baptista”. Selecionei algumas argutas perguntas e as respostas do Eurico, que conjugam testemunho importante do convívio entre os dois compositores, como, sob outra égide, carregam uma encantadora redação transmontana.

“Como foi o seu contacto com Jorge Peixinho? Como e quando se conheceram? Privaram de que forma, em que contextos e ao longo de que janela temporal?

Conheci Jorge Peixinho (JP) em 1989 quando ingressei no Conservatório como professor de composição. Fui seu aluno no Curso Superior de Composição entre 1991 e 1993. Fui o último aluno a fazer o exame segundo o modelo antigo (exame final com clausura de 15 dias para escrever uma orquestração e uma forma-sonata). Concluí este exame em Setembro de 1993.

Existem influências assumidas da música de Jorge Peixinho na música do Professor Eurico Carrapatoso?

Não há influências quaisquer ao nível da linguagem. Há apenas um legado humano, cívico e intelectual que as suas aulas me proporcionaram. JP, de um certo modo, acabou por ter forte influência não na linguagem mas no modo de estar, de ser e de ensinar, na fruição da infinita liberdade do gesto da criação que sempre me significou como professor e amigo ao deixar intocado o meu caminho, tão diferente do dele para alívio de todas as partes.

Relativamente à sua obra Deploração sobre a morte de Jorge Peixinho (1998), de que forma é uma homenagem ao compositor e em que dimensões? Como foi pensado o tributo?

Essa obra é um filho diferente na minha produção, tendo feições que raramente se reconhecem na minha música vista como um todo. Amo-a, como um pai ama um filho diferente. Faz parte de um processo de auto-descoberta, então, no final dos anos noventa, ainda à procura da minha voz, na montanha-russa da especulação abstracta, com concepção formal do ritmo, da melodia, da harmonia, da dinâmica. Enfim, um campeonato de esgrima façanhuda, numa linguagem de raiz serial que rarissimamente revisitei na minha vida. A homenagem a JP deve-se ao facto de, na altura, ainda todos estarmos chocados com a sua partida no verão de 1995. Eram as saudades do professor e do compositor. Mas, acima de tudo, do amigo. Já pude ouvir a obra várias vezes, nomeadamente ao vivo em diversas versões. Tem algo de elegíaco. E isso é bom, justo e honesto, dado o programa a que tal obra se propõe.

O último andamento é salvífico, um oásis a que regressei. Sinto-me bem naquelas paragens paradisíacas. Aí sou eu, dono da minha voz “.

Clique para ouvir, de Eurico Carrapatoso, Deploração sobre a morte de Jorge Peixinho (1998),

https://www.youtube.com/watch?v=wjMmRh2mzWU&t=177s

“E quanto a Cinco canciones para ensemble y voz emocionada (2015), de que forma é uma homenagem a Jorge Peixinho?

Aqui, sim. Uma obra de maturidade. Sou eu de raiz. Aquela é a minha voz. Sóbrio, sem máscaras, ali canto a minha admiração por JP que, a propósito dos textos ali usados, tanto admirava o mesmo García Lorca que eu tanto admiro. ‘Relembrando Jorge Peixinho pelos versos de um dos seus poetas amados, Federico García Lorca’, pode ler-se no rosto da partitura. Aqui está o vórtice exponencial da admiração mútua. Cumplicidades, conversas nas classes de composição. Amor pelos poetas: Rimbaud, Verlaine, Rilke, Lorca e por aí fora. JP era um poço sem fundo de cultura, nomeadamente no elemento da cultura como expressão artística. Foi um privilégio privar com ele. Contaminação se chama. Uma gripe boa que me pegou”.

Clique para ouvir, de Eurico Carrapatoso, Pórtico, 5ª das Cinco canciones para ensemble y voz emocionada, na interpretação de Sónia Grané (soprano) e José Manuel Brandão (piano):

https://www.youtube.com/watch?v=GUBhWMwS2gA

“Que compositores poderão ter influenciado ou ter sido influenciados por Jorge Peixinho?

Ele admirava os pilares da vanguarda, a começar no Nono, o Boulez e o Stockhausen; mas, simultaneamente, admirava os poetas da libertação do jugo serial: o Ligeti, o Crumb, o Feldman, o Berio, etc. Valorizava a poética da cor e do timbre. E, mais para o fim, tinha cada vez menos paciência para contas e continhas.

Poderia apontar algumas características da música de Peixinho?

Liberdade e poesia. Música sem grilhões de qualquer espécie. Coração aberto à experiência, à novidade, ao acontecimento imprevisto, até, mas tudo concatenado numa coisa maior, com a rédea curta própria do espírito superior que sabe, como ninguém, distinguir os efeitos e suas teatralidades da integração orgânica e coerente de tais efeitos em função de uma coisa maior, una e capaz. Não faltava a JP o juízo crítico que fazia maravilha com o forte acento onírico da sua expressão artística.

Diria que existem normas ou princípios de interpretação específicos para a música de Jorge Peixinho? Se sim, poderia dar exemplos?

O código de JP era claro. JP é claríssimo. Sabe perfeitamente o que quer e como pedi-lo. Basta estudá-lo, lendo, logo à partida, o glossário de termos e as explicações prévias. Não é uma leitura à primeira vista. Nem tem de sê-lo.

Que conselhos e alertas daria a um músico que queira abordar a obra de Peixinho? Que erros de interpretação devem ser evitados e que aspetos devem ser valorizados?

Valorizar a poesia do momento. A entrega. A bolha do concerto onde o intérprete se tem de ‘travestir’, numa dádiva total à inovação e, se necessário, à iconoclastia, derrubando o modelo de concerto estranhamente em uso nos tempos que correm – ainda! – com o mesmíssimo cerimonial oitocentista: intérpretes vestidos de preto cerimonial com a gravata ou o papillon para um público que leva para ali a sua melhor roupinha.

Recorda-se de aspetos que Peixinho valorizasse muito e nos quais insistisse particularmente? Quer na composição, quer na interpretação das suas obras.

Entre outras, a liberdade, a espontaneidade, a iconoclastia. Ele próprio assim foi toda a vida: livre, espontâneo e iconoclasta. O José Luís Borges Coelho testemunhou um episódio acontecido no Ateneu Comercial do Porto nos anos sessenta, por volta do tempo em que eu nasci: JP improvisava ao piano para um público convencional burguês que ali viera numa rivalidade tonta de chapéus e toilletes. A certa altura, fez um desenho dramático no piano, como motivos musicais descendentes. Atingido o extremo grave do piano, prosseguiu o gesto, tocando imaginariamente na perna esquerda do piano, e depois no chão e, depois ainda, subiu pela estátua alegórica do Comércio que orna o palco, uma escultura de uma senhora bem abonada, apalpando o seu peito e beijando demoradamente, finalmente calmo e langue, a boca da estátua. O público sussurrou em escândalo salazarento.

O evitar da oitava enquanto intervalo ‘demasiado’ consonante aplica-se a Jorge Peixinho? À partida, em contraponto, Peixinho preferirá o uníssono em vez da oitava?

JP não tinha esse trágico complexo de Édipo musical: o complexo da oitava. Isso é mais para puritanos, que usam a oitava como os anacoretas usam o cilício. JP era meridional e não resistia a qualquer intervalo, fosse qual fosse, para uma bela feijoada acústica.

Qual era a posição de Peixinho quanto à colaboração compositor/intérprete?

Todo ele era ouvidos. Escutava com atenção os aspectos da exequibilidade prática e negociava com os intérpretes até chegar a um compromisso a contento das partes, muitas vezes num ambiente de grande excitação amical, aparentando os ensaios do GMCL, não raro, um doce caos organizado, muito frutífero no balanço final.

Qual era a posição de Peixinho quanto à margem de liberdade interpretativa na sua música?

Desde que a ideia fosse entregue a bom porto, tudo corria de feição. Liberdade, uma vez mais, que nunca ultrapassou a responsabilização individual e de todos no grupo.

Qual era a posição de Peixinho quanto à procura de novos timbres e desenvolvimento de novas técnicas instrumentais e de novos símbolos na notação.

Mel para os seus ouvidos. Vital, mesmo. Um exemplo: inventou um excelente instrumento de percussão, à guisa de rela, nos aros da roda da bicicleta – o velofone – para a sua obra tão teatral quão cómica, ‘Ciclo Valsa’

No que diz respeito à relação entre música e texto, como é que Peixinho trabalhava a palavra? Por exemplo, havia a preocupação de traduzir através da música o sentido das palavras cantadas? De que forma?

Uma vez mais, com muita imaginação e liberdade. Mas sempre com a preocupação, em momentos estratégicos, de entregar o texto a bom destinatário, como forma de respeito pelo sentido original do discurso poético. O JP não costumava levar o texto ao ‘iron maiden’: apenas lho apresentava”.

Agradeço ao dileto amigo Eurico Carrapatoso o envio da reveladora entrevista. Como é essencial a descrição de alguns processos criativos de um grande compositor por parte de um não menos ilustre.

Ratifico a importância de “A caminho de novos portos”, de Ana Cláudia de Assis. Uma pesquisa modelo da pianista, que certamente despertará interesse dos leitores ligados à música contemporânea, mormente a de Jorge Peixinho.

The illustrious Portuguese composer Eurico Carrapatoso sent me an interview in which he talks about his relationship with his former teacher Jorge Peixinho, his teachings and the freedom that made him a non-dogmatic master. Despite taking different paths, Carrapatoso reveres Jorge Peixinho.