Navegando Posts publicados em dezembro, 2023

O planeta sentirá saudades?

Seria preciso não viver para negar que o mundo seja mau;
mas é nessa mesma maldade
que devemos procurar o apoio em que nos firmamos
para sermos nós próprios melhores e, como tal,
melhorarmos os outros.
Agostinho da Silva

Há muitas décadas não passávamos por uma transição de ano tão prenunciadora de tempos ainda mais controversos. O pipocar dos fogos, as festanças espalhadas pelo país anunciam 2024, que não configura um ano alvissareiro. Os vaticínios se mostram cautelosos ou pessimistas.

Nesta coluna, publicando posts hebdomadários desde Março de 2007, sem jamais ter perdido um sábado, nunca me posicionei politicamente, apenas mantenho distância das ideologias extremadas.

Tive admiração plena pelo Supremo Tribunal Federal, outrora constituído por juristas incontestáveis, que se mantinham como guardiões da Carta Magna. Ministros reverenciados. Esvaiu-se o apreço. Para muitos e para um leigo nessa temática, como eu, a nitidez de determinadas decisões do STF apenas evidencia “desvios” do que rege a nossa Constituição de 1988. É sempre bom lembrar que, desde o século XVI, a Justiça é representada com venda nos olhos em estátua grega, venda esta a significar a isenção absoluta nos julgamentos. Daí as consagradas palavras “Justiça cega”, imparcial e sem máculas. A retirada da venda nos olhos apontaria para a parcialidade. O meu saudoso amigo e excelente artista plástico, Luca Vitali (1940-2013), fez uma charge a ilustrar o meu blog “A Justiça – Interpretação de uma charge” (24/10/2009). Luca não pensou na balança de dois pratos, isenta e equilibrada. A suportar o Código, um medidor com apenas um prato, muito comum nas feiras de antanho e, a subsituir o cão fiel, uma raposa. Futuramente a História se posicionará de maneira criteriosa, sem paixões, sobre os tempos conturbados que estamos a viver.

Sobre a Cultura, ou Culturas, progressivamente se instaura no país uma decadência sem retorno, como uma rocha a despencar de uma montanha e que, no seu avanço, torna-se mais veloz e destrói o que há pela frente. As conquistas internéticas atingiram, para o bem e para o mal, as mais variadas camadas da população. A “grande” mídia impressa, falada e presente nos sites, que deveria publicar noticiário isento de partidarismo, basicamente não o faz, perpassando a atualidade política e econômica com propósitos tendenciosos. Sob outra égide, dedica parcela dos espaços à derrubada dos costumes, à ascensão de temas sobre sexo nas mais variadas configurações, aos polêmicos temas raça e gênero provocando embate e cizânia, à violência em ritmo geométrico, à insegurança que atormenta as populações. Acresce-se o absoluto desvio do bem escrever, pois erros propagam-se na maioria das colunas de jornais, revistas e sites. Outrora essas falhas eram corrigidas no exemplar seguinte! Presentemente elas são assimiladas e se tornam rotineiras, trágica certeza.

Converso com muitos jovens. Raríssimos leem livros ou, quando muito, poucas páginas e… desistem. O desprezo pela Cultura Humanística terá consequências irreversíveis com o decorrer do tempo. Estas serão sentidas tardiamente com a ascensão de gerações que não mais terão ligações com o passado literário, artístico, espiritual… Perder as origens e ter como fundamento a história recente desde a início da proliferação dos celulares, como exemplo, é trilhar o caminho da homogeneização das mentes sempre em valores decrescentes. Sombria visão no horizonte.

Quão pouca importância se dá hoje à família tradicionalmente constituída e que permanece como legado a ser preservado. Raríssimas vezes a mídia no sentido amplo sobre ela se debruça.

As guerras que assolam várias regiões do planeta forçosamente trazem dúvidas quanto à saúde mental de dirigentes. Terroristas sempre serão terroristas. Não há, hélas, possibilidade de exterminá-los. Gerações afetadas pelas ações extremistas guardarão tenebrosas lembranças, mas a consequente represália em excesso apenas estimulará descendentes sem ligações com o terror a aderir à causa extremista. À testa dos governos autoritários, hélas, vários títeres que permanecerão títeres.

Esperanças? Aos 85 anos continuo a tê-las. A música é uma respiração que não falha até… Tenho à cabeceira do meu leito frase a anteceder o final do extraordinário romance “Jean-Christophe”, de Romain Rolland (1866-1944), no qual o personagem confessa sua devoção à Música: “Eu jamais te traí, tu jamais me traíste, disso temos plena segurança. Partiremos juntos, minha amiga. Fique ao meu lado até o fim!”.

A família e os fiéis amigos permanecem como âncoras que possibilitam ver melhor o mundo que nos cerca.  Meu saudoso Pai, admirador confesso de J. Krishnamurti, legou-me um precioso livro do mestre indiano, “Auto-Preparação”. Dele extraio um segmento essencial:

“Cada um de nós emergirá, ao fim do Ano Novo, ou maior ou menor; ou então absolutamente não teremos crescido, permanecendo em completa inércia, exatamente aquilo que agora somos. Porém, para aqueles dentre nós que sentem entusiasmo pela vida, o que um Novo Ano significa? Poderia ter esta significação: somos semelhantes a viajantes, penetrando, em nossa longa jornada, por um país novo e desconhecido, onde fados estranhos e estranhas aventuras nos esperam. Nesta terra, à medida que o peregrino observador a percorre, oportunidades se acumulam sob seus passos. Porém, para aproveitá-las necessita ser sábio e estar alerta. Pois de uma coisa deve lembrar-se – que é um viajante e que o que lhe compete não é se deter, mas passar adiante.”

A todos os meus leitores envio meus votos de um Ano Novo promissor, mas também de resiliência frente às adversidades que se descortinam.

As the year closes, I wish all my readers a promising New Year, but also one of resilience in face of the adversities that lie ahead.

 

A sensibilidade que aflora

De todas as histórias que nos contava
guardei apenas uma vaga e imperfeita lembrança.
Porém, uma delas ficou tão nitidamente gravada em minha memória,
que sou capaz de repeti-la a qualquer momento –
a pequena história do nascimento de Jesus.
Selma Lagerlöf (1898-1940)
(Prêmio Nobel de Literatura)

Contos e poemas anteriores despertaram vivo interesse quando publicados neste espaço: “Velho Natal”, de D. Henrique Golland Trindade (22/12/2007); três contribuições da ilustre gregorianista portuguesa Idalete Giga, “O Jardim das Fadas” (20/12/2008), “O Sonho de Santa Cecília” (18/12/2009), poema “Lux Mundi” (18/12/2010); “Natal e Renovação”, extraído do capítulo CXXII de “Citadelle”, de Saint-Exupéry (19/12/2015).

Minha dileta amiga Carolina Ramos, escritora, poetisa e folclorista de tantos méritos, ofereceu-me um sensível livro de sua lavra, “Feliz Natal – contos natalinos” (São Paulo, Ação, 1998). São 18 histórias e historietas plenas de encanto, imbuídas de criatividade, afeto e simplicidade, sem quaisquer outros objetivos a não ser transmitir o Espírito de Natal através de exemplos, tantos deles edificantes. A diversidade temática apenas dimensiona a criatividade da autora. Nessas criações, os personagens majoritariamente se situam ou na infância ou na terceira idade. Há especial atenção da autora pelos menos favorecidos.

Algumas observações de Carolina Ramos, fazendo parte do contexto, destacam-se pela argúcia do pensar. Do conto S.O.S, extraio: “Crianças e velhos gostam de ouvir e de serem ouvidos. Crianças adoram histórias, velhos adoram contá-las. Como se não fossem eles compêndios vivos, repletos de histórias escritas pela mão da vida!”.

Em “A Toalha de Natal”, um relato que certamente faz eco a milhões de cristãos quanto à preparação da Ceia de Natal: “Depois de cansativos dias de caça intensa a presentes e guloseimas, nesse ir e vir à beira da exaustão, enfrentando supermercados repletos de gente prenhe das mesmas intenções, Yolanda retirou da gaveta aquela toalha de linho, imaculada, que apenas emergia do seu imperturbável sono de doze meses por ocasião das festas natalinas. Era então estendê-la sobre a mesa, adornada para a ceia do Natal, e retirá-la uma semana depois, findo o almoço do Ano Novo. Muito raramente tornava-se necessário repetir o ciclo, entremeando-o com um mergulho rápido na máquina de lavar roupas, donde a toalha rapidamente voltava, impecável, a reassumir o posto”. Na decorrência do conto a toalha envelhece através dos anos, esgarça-se o tecido e ela vai ao lixo. Em noite de chuva, um menino pobre, vasculhando latas de lixo, encontra-a e o tradicional linho servirá para abrigá-lo. Carolina conclui: “Naquela toalha, tão desprezada quanto ele, o menino embrulhou a fome, embrulhou o corpo mirrado e, aninhado nos braços macios do linho que se esgarçava, dormiu o mais gostoso sono de toda a sua vida”.

No conto “Natal Feliz”, a autora insere: “E vieram as frutas secas! Importadas! As amêndoas, as nozes e as avelãs. Um bocadinho de cada. E os bolsos ficando leves! As passas, os figos. Mania de copiar os outros! Por que não festejarmos o nosso Natal à brasileira, com as nossas próprias castanhas, os nossos pinhões, os nossos tão gostosos amendoins? Não são, por acaso, frutos secos? E as peras d’água, as laranjas, os abacaxis de coroa na cabeça, e as uvas deliciosas, nossas, tão nossas?! Qual! – o mundo é assim mesmo! Quem sabe lá, se nas mesas europeias mais aristocratas, não haveria uma banana dourada, pintadinha, envolta em papel de seda, à espera de ser parcimoniosamente servida em fatias?”

Clique para ouvir, de J.SBach-Hess, “Jesus alegria dos homens”, na interpretação de J.E.M:

Bach-Hess – Jesu, Joy of Man’s Desiring – José Eduardo Martins – piano (youtube.com

Entre os tantos contos Natalinos de Carolina Ramos que nos encantam, separei um na íntegra, que bem caracteriza o Espírito da cristandade na sua data máxima e que não parte de situação imaginária.

O Anticlerical

“Dizia-se anticlerical. Tinha suas razões. Questionáveis umas. Outras, infelizmente, não. Às vezes, um ou dois maus elementos conseguem estremecer as melhores conceituações dos mais radicais.

Embora dizendo-se anticlerical, tinha amigos padres. Bons amigos, com quem conversava e trocava ideias. E com quem discutia sobre qualquer assunto, dentro da maior abertura e camaradagem que só as grandes amizades propiciam.

Veja-se o caso do padre português, canceroso, esquecido de todos, que o teve ao pé do leito, em seus derradeiros dias, revoltado com o ostracismo em que morria o velho sacerdote, seu amigo desde os tempos de congregação mariana.

Sim. Tinha amigos padres. Amigos sinceros. Mas, embora retribuísse essa sinceridade, dizia-se anticlerical. Razões teria.

Natal! O avô anticlerical esperava as netas à saída da missa vespertina. Foi quando aproximou-se dele um rapaz de pés encardidos, descalços.

-  Olhe, eu vim da Bahia… preciso de sapatos… procurei a Assistência Social e… mandaram que eu me virasse… me dê um dinheirinho, sim?

As netas chegavam. O povo escorria pela porta da igreja como água derramada escada abaixo.

Vestido informalmente, de bermudas, e sem um níquel sequer nos bolsos, o avô anticlerical não hesitou. Para surpresa das meninas, descalçou rapidamente o par de tênis novos e entregou-o ao pedinte, voltando descalço para casa, sem esperar pelo agradecimento.

Naquele fim de tarde, as guirlandas de luzes coloridas, dependuradas nas sacadas vizinhas, ganharam brilho especialíssimo. É que o Natal, de repente, ficara mais Natal do que nunca!”

“Feliz Natal” é uma ode ao bem, a se contrapor a um mundo que se decompõe sob o manto do choque insensato das ideologias, da discórdia, da queda livre dos costumes e da moralidade, do desprezo pela Cultura Humanística, da corrupção e violência instauradas e da perversidade como temas absorvidos pelo cidadão que vive o cotidiano sob ameaças de toda a sorte, mas que pouco pode fazer. Seu voto nas tumultuadas eleições é carregado de esperanças, anseios estes imediatamente esquecidos pelos eleitos. “Feliz Natal”, da observadora nata, Carolina Ramos, indica o caminho, mas tão poucos a ouvirão.

Um Feliz Natal a todos os leitores. Que possamos acreditar em dias melhores para a Humanidade.

Finalizara o post de Natal quando recebo do meu dileto amigo, o notável compositor Eurico Carrapatoso, gravação recente de sua inspirada criação “Ó meu Menino”. Compartilho com os meus leitores:

https://www.youtube.com/watch?v=6LsJgIQwQS0&t=16s

“Merry Christmas“, a book by Carolina Ramos, a writer of great sensibility, is an ode to fraternization. The 18 short stories, simple yet profound in so many aspects, induce us to do good and consecrate Christianity’s greatest holiday

 

Uma prenda jamais imaginada

A beleza salvará o mundo.
Fiodor Dostoïevski

Aproxima-se a data máxima da cristandade, que faz ressurgir esperanças nesta atualidade tão distante da verdadeira fraternidade. Guerras pelo mundo e, em nosso país, acirrada disputa ideológica, que apenas exacerba egos voltados à idolatria. Almejos autênticos, voltados ao aprimoramento sob os mais vários aspectos, pontuando-se ética, costumes, moral e, mais especificadamente, respeito, dignidade, honestidade e lhaneza, estiolam-se. A majoritária imprensa escrita e falada corrobora a decadência e nada faz para estancá-la. Contudo, a turbulência global não consegue  impedir o culto a raros valores que têm sido preservados, faróis a distanciar o homem do equívoco.

No início de Dezembro recebia votos de Natal do notável compositor francês François Servenière (1962-). Estranhei a antecipação, mas entendia a necessidade interior do compositor em transmitir um verdadeiro “Cadeau de Noël”.

Ao leitor mais recente comunico que a amizade que mantenho com François Servenière data de cerca de três lustros, sempre sob a égide da Música. Nossa vasta correspondência transita pelo Atlântico e ultrapassa bem mais de um milhar de páginas, máxime sobre criação e interpretação. Tive o privilégio de ser o dedicatário de obras capitais de Servenière: ” 7 Études Cosmiques” e “Outono Cósmico”; “Trois musiques pour endormir les enfants d’un artiste” e “Promenade sur la Voie Lactée” (Youtube), composições estas inseridas nos CDs “Éthers de l’Infini” (2017) e “Retour à l’Enfance” (2020) (France, Esolem).

Causou-me forte impressão uma das últimas obras de François Servenière, “The sacred fire”, criação de forte impacto e que está acompanhada de imagens criteriosamente escolhidas (vide blog: “The Sacred Fire”, 06/05/2023).

A versatilidade de Servenière, felizmente livre de tendências composicionais doutrinárias, faz-se presente na nova roupagem que dá à “Promenade sur la Voie Lactée”, que gravei em 2019 na Bélgica.

Promenade… decorre de uma homenagem de Servenière a Saint-Exupéry, mais precisamente ao “Le Petit Prince”, criação do escritor-piloto que transborda essencialidades.

Ao receber a nova versão da peça, a partir da mencionada para piano solo, confesso ter ficado muito emocionado. São vários os motivos: ambos gostamos imenso da opera omnia de Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944). Não poucas vezes comentei neste espaço que “Citadelle” foi a obra que escolhi para releitura ao saber, em 2004, de um câncer agressivo que, no dizer de alguns especialistas, poderia me levar aos anjinhos em até um ano. À noite, após veredicto, perguntei-me sobre o que ler nesse espaço de tempo. Respondi-me, reler o livro que mais impacto me causou. Retornei à “Citadelle” e o posicionamento anterior apenas se ratificou.

Na atual versão, engenhosamente, François Servenière insere orquestra de cordas, mas a partir estritamente da minha interpretação apresentada em vários países e posteriormente gravada. Servenière escreve: “Querendo regressar há muito tempo à versão orquestral inicial, que originou a transcrição para piano, utilizei-me naturalmente da tua execução, a fim de guiar a pujança e a respiração da orquestra de cordas da obra original de 2008. O espírito está sempre presente, mercê de estar ele decuplicado pela tua condução pianística quase orquestral, onde as cordas ficam submissas à tua amplitude galáctica. Seja qual for a interpretação que se dê, tenho a sensação que ela atinge sempre o sublime. Que chance!”.

A magia vem da acoplagem perfeita dos instrumentos de corda à interpretação ao piano e das imagens pertinentes ao tema. Assim como fez ao cuidar das ilustrações para “The Sacred Fire”, Servenière escolhe-as sempre relacionadas à “Promenade”… e excede. Apresenta, após belas visões do incomensurável espaço, um astronauta, antes preso ao cabo, que, ao soltar-se, navega liberto pelo universo e encontra finalmente o Pequeno Príncipe na última imagem, ambos saudados por um cometa de passagem. Inefável apreensão. Estou a me lembrar da frase do excelso engenheiro de som belga Johan Kennivé: “Servenière é um gênio”.

Clique para ouvir, de François Servenière, a nova versão da “Promenade sur la Voie Lactée”, para piano e orquestra de cordas, a partir da minha gravação acima pautada:

https://www.youtube.com/watch?v=LSfmHoqmjoo

I was moved to receive a beautiful composition by the remarkable French composer François Servenière, anticipating Christmas. Servenière uses my recording of “Promenade sur la Voie Lactée”, his tribute to Saint-Exupéry’s Petit Prince that is a track from the CD “Éthers de l’Infini”. Bringing together my piano recording with a string orchestra and carefully selected images, he manages to attain the most exquisite and touching results.