O planeta sentirá saudades?
Seria preciso não viver para negar que o mundo seja mau;
mas é nessa mesma maldade
que devemos procurar o apoio em que nos firmamos
para sermos nós próprios melhores e, como tal,
melhorarmos os outros.
Agostinho da Silva
Há muitas décadas não passávamos por uma transição de ano tão prenunciadora de tempos ainda mais controversos. O pipocar dos fogos, as festanças espalhadas pelo país anunciam 2024, que não configura um ano alvissareiro. Os vaticínios se mostram cautelosos ou pessimistas.
Nesta coluna, publicando posts hebdomadários desde Março de 2007, sem jamais ter perdido um sábado, nunca me posicionei politicamente, apenas mantenho distância das ideologias extremadas.
Tive admiração plena pelo Supremo Tribunal Federal, outrora constituído por juristas incontestáveis, que se mantinham como guardiões da Carta Magna. Ministros reverenciados. Esvaiu-se o apreço. Para muitos e para um leigo nessa temática, como eu, a nitidez de determinadas decisões do STF apenas evidencia “desvios” do que rege a nossa Constituição de 1988. É sempre bom lembrar que, desde o século XVI, a Justiça é representada com venda nos olhos em estátua grega, venda esta a significar a isenção absoluta nos julgamentos. Daí as consagradas palavras “Justiça cega”, imparcial e sem máculas. A retirada da venda nos olhos apontaria para a parcialidade. O meu saudoso amigo e excelente artista plástico, Luca Vitali (1940-2013), fez uma charge a ilustrar o meu blog “A Justiça – Interpretação de uma charge” (24/10/2009). Luca não pensou na balança de dois pratos, isenta e equilibrada. A suportar o Código, um medidor com apenas um prato, muito comum nas feiras de antanho e, a subsituir o cão fiel, uma raposa. Futuramente a História se posicionará de maneira criteriosa, sem paixões, sobre os tempos conturbados que estamos a viver.
Sobre a Cultura, ou Culturas, progressivamente se instaura no país uma decadência sem retorno, como uma rocha a despencar de uma montanha e que, no seu avanço, torna-se mais veloz e destrói o que há pela frente. As conquistas internéticas atingiram, para o bem e para o mal, as mais variadas camadas da população. A “grande” mídia impressa, falada e presente nos sites, que deveria publicar noticiário isento de partidarismo, basicamente não o faz, perpassando a atualidade política e econômica com propósitos tendenciosos. Sob outra égide, dedica parcela dos espaços à derrubada dos costumes, à ascensão de temas sobre sexo nas mais variadas configurações, aos polêmicos temas raça e gênero provocando embate e cizânia, à violência em ritmo geométrico, à insegurança que atormenta as populações. Acresce-se o absoluto desvio do bem escrever, pois erros propagam-se na maioria das colunas de jornais, revistas e sites. Outrora essas falhas eram corrigidas no exemplar seguinte! Presentemente elas são assimiladas e se tornam rotineiras, trágica certeza.
Converso com muitos jovens. Raríssimos leem livros ou, quando muito, poucas páginas e… desistem. O desprezo pela Cultura Humanística terá consequências irreversíveis com o decorrer do tempo. Estas serão sentidas tardiamente com a ascensão de gerações que não mais terão ligações com o passado literário, artístico, espiritual… Perder as origens e ter como fundamento a história recente desde a início da proliferação dos celulares, como exemplo, é trilhar o caminho da homogeneização das mentes sempre em valores decrescentes. Sombria visão no horizonte.
Quão pouca importância se dá hoje à família tradicionalmente constituída e que permanece como legado a ser preservado. Raríssimas vezes a mídia no sentido amplo sobre ela se debruça.
As guerras que assolam várias regiões do planeta forçosamente trazem dúvidas quanto à saúde mental de dirigentes. Terroristas sempre serão terroristas. Não há, hélas, possibilidade de exterminá-los. Gerações afetadas pelas ações extremistas guardarão tenebrosas lembranças, mas a consequente represália em excesso apenas estimulará descendentes sem ligações com o terror a aderir à causa extremista. À testa dos governos autoritários, hélas, vários títeres que permanecerão títeres.
Esperanças? Aos 85 anos continuo a tê-las. A música é uma respiração que não falha até… Tenho à cabeceira do meu leito frase a anteceder o final do extraordinário romance “Jean-Christophe”, de Romain Rolland (1866-1944), no qual o personagem confessa sua devoção à Música: “Eu jamais te traí, tu jamais me traíste, disso temos plena segurança. Partiremos juntos, minha amiga. Fique ao meu lado até o fim!”.
A família e os fiéis amigos permanecem como âncoras que possibilitam ver melhor o mundo que nos cerca. Meu saudoso Pai, admirador confesso de J. Krishnamurti, legou-me um precioso livro do mestre indiano, “Auto-Preparação”. Dele extraio um segmento essencial:
“Cada um de nós emergirá, ao fim do Ano Novo, ou maior ou menor; ou então absolutamente não teremos crescido, permanecendo em completa inércia, exatamente aquilo que agora somos. Porém, para aqueles dentre nós que sentem entusiasmo pela vida, o que um Novo Ano significa? Poderia ter esta significação: somos semelhantes a viajantes, penetrando, em nossa longa jornada, por um país novo e desconhecido, onde fados estranhos e estranhas aventuras nos esperam. Nesta terra, à medida que o peregrino observador a percorre, oportunidades se acumulam sob seus passos. Porém, para aproveitá-las necessita ser sábio e estar alerta. Pois de uma coisa deve lembrar-se – que é um viajante e que o que lhe compete não é se deter, mas passar adiante.”
A todos os meus leitores envio meus votos de um Ano Novo promissor, mas também de resiliência frente às adversidades que se descortinam.
As the year closes, I wish all my readers a promising New Year, but also one of resilience in face of the adversities that lie ahead.