Pioneiro mundial como método voltado ao cravo
Como há uma grande distância entre a Gramática e a Declamação,
igualmente existe uma infinita entre a Partitura e o tocar bem.
François Couperin (1668-1733)
(“L’Art de toucher le Clavecin”)
O blog anterior teve guarida atenta. Para aqueles conhecedores da temática, a lembrança dos mestres franceses essenciais que escreveram para o clavecin, ou cravo, na tradução portuguesa, foi de interesse. Para outros sem familiaridade com as excelsas criações dos clavecinistes français, uma grata revelação. Fica o meu agradecimento aos leitores do post anterior.
Um deles, Pedro Maurício, sugeriu-me um blog dedicado à “L’Art de toucher le clavecin”, de François Couperin (1668-1733), mencionado no blog anterior. Faço-o prazerosamente pelo post semanal, pois a obra é pioneira no gênero e realmente extraordinária pelas tantas observações nela contidas (“L’Art de Toucher le Clavecin”, édition originale de Bercy et du Plessy, Wiesbaden, Breitkopf & Härtel, 1961).
François Couperin, descendente de família de músicos renomados, desde antanho tem “Le Grand” acrescido ao seu nome. No referencial método em apreço, há um objetivo prático ao abordar princípios válidos até o presente no que tange ao intérprete frente ao instrumento, tanto no sentido técnico como psicológico. Diferentemente de Jean-Philippe Rameau (1683-1764), cujos tratados são preferencialmente teóricos, “L’Art de toucher le clavecin” respira até uma certa leveza no sentido da orientação, tratando-se de um método voltado aos cravistas ou iniciantes. “Asseguro a todos que os princípios são absolutamente necessários para a boa execução de minhas peças”, afirma no prefácio e esclarece que o seu método é único.
Inicialmente, Couperin estabelece um plano e insere aspectos essenciais: posição do corpo, das mãos, a ornamentação e exercícios preliminares não desprovidos de dedilhados. Para tanto, oito Préludes originais, que não fazem parte das 254 peças que integram as 27 “Ordres” tratadas no blog anterior, são anexados com muitas indicações voltadas à parte técnica e interpretativa. Acredita que o Método corroboraria a compreensão dos seus dois primeiros livros de “Ordres” para cravo. Com critério, o Autor enfatiza os trechos mais complexos para a execução, esclarecendo-os.
A experiência o faz opinar sobre a melhor idade para o aprendizado, seis a sete anos, não excluindo outras faixas etárias, sinalizando que a precocidade amolda as mãos e, a corroborar, enfatiza a posição do corpo: “Para estar bem sentado na altura certa necessário se faz ter no mesmo nível a parte inferior do cotovelo, os pulsos e os dedos, assim como a utilização de uma cadeira que atenda a essa postura”. Couperin observa outros aspectos que atravessarão os séculos, não apenas no que concerne aos cravistas, mas também, como numa antevisão futura, aos pianistas. Distância do teclado, posição dos joelhos, atenção às expressões faciais “colocando um espelho ao lado da partitura”.
Após essas considerações iniciais de ordem prática, Couperin pondera: “É melhor e mais confortável não marcar o compasso com a Testa, corpo ou pés. É necessário ter um ar descontraído diante do cravo: sem fixar muito o olhar sobre algum objeto, nem ter esse olhar vago. Enfim, olhar o público, se houver, evidenciando total naturalidade”. Recomenda aos miúdos que o toque não seja seco, mas delicado, tendo os dedos bem próximos do teclado (lembro que a pressão sobre a tecla de um cravo é bem distinta daquela do piano, este mais pesado, pois os mecanismos são distintos). Nesse início, aconselha ao mestre ter a chave do instrumento, a fim de que o iniciante, após a aula, não dissipe os ensinamentos.
Pelo fato do excesso de ornamentação no período, Couperin segue método cartesiano. À medida que o aluno avança, ornamentos mais complexos são ensinados e, a partir daí, transpostos para outras tonalidades. Para os alunos mais “velhos”, recomenda exercícios com a ajuda de alguém, no sentido de que sejam relaxadas as articulações. Como os miúdos preferem realizar os ornamentos com os dedos mais “fáceis” para isso (polegar, indicador e dedo médio), aconselha-os a exercitarem o anelar e o dedo mínimo. Considera que os “mediocremente hábeis” preferem as peças com poucos ornamentos.
Couperin considera que as mãos femininas são mais propícias para a prática cravista. Afirma: “Já disse que a leveza contribui muito mais na execução do que a força”. Consideremos que a pressão do toque sobre o teclado do cravo é bem mais leve do que a do piano moderno, pois os mecanismos são bem diferentes e que não é a força que determinará o som mais ou menos forte no cravo. Couperin esclarece: “Os sons do cravo estão estabelecidos; não podendo ser encorpados nem diminuídos. Parece quase insustentável, até o presente, que possamos dar alma a este instrumento. Todavia, pelas pesquisas que eu realizei, com o pouco do natural que o céu me deu, vou tentar explicar quais as razões de ter sentido a alegria de emocionar as pessoas de gosto que me deram a honra de me ouvir; e de formar alunos que talvez me ultrapassem”. Observa, a corroborar a finitude expressa do som do cravo: “Os instrumentos de corda amplificam os sons, a suspensão destes no cravo parece (por efeito contrário) apenas evocar a coisa desejada”. Afirma que as peças lentas não devem ser tocadas ainda mais lentas no cravo, dado o fato da pouca duração dos sons. Recomenda que “os pais das crianças ou os responsáveis por elas tenham menos impaciência e mais confiança naquele que ensina (seguros de terem feito uma boa escolha)”.
Algo importante Couperin salienta em relação às indicações através de palavras exprimindo algum sentimento no início de uma peça, como Tendrement, Vivement, etc. “Espero que alguém tenha o cuidado de traduzi-las para proveito dos estrangeiros, que terão assim meios para julgar a excelência da nossa música instrumental”. O correr das décadas uniformizou um vocabulário referente a andamentos, sua flutuação e até expressividade, prioritariamente na língua italiana.
Jocosamente, observa: “É necessário ter os instrumentos bem cuidados. Sei que há pessoas para as quais esse aspecto é indiferente, pois tocam mal em qualquer instrumento”.
Em “L’Art de toucher le Clavecin”, o Autor teve o cuidado de pormenorizar-se sobre os dedilhados e exercícios preliminares: “Como até agora não apareceu um método que trata da boa execução, acredito ter o dever de nada omitir”.
François Couperin, em seu método, expõe inicialmente uma Allemande, mas oito Préludes são incorporados com as explicações devidas: “Os quatro primeiros Prelúdios podem servir a todas as idades, exceção que, para as crianças, deve-se dispensar manter todas as notas dos acordes extensos. Aos professores a escolha”.
Clique para ouvir, de François Couperin, os oito Prelúdios de “L’Art de toucher le Clavecin”, na interpretação do cravista norueguês Ketil Haugsand:
https://www.youtube.com/watch?v=5FV-UctnFZc&t=3s
Ketil Haugsand e eu nos apresentamos no Colóquio “Carlos Seixas de Coimbra” (2004), respectivamente em recitais de cravo e piano realizados na Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra durante as comemorações do tricentenário do notável compositor conimbricense.
Pioneiro, “L’Art de toucher le Clavecin” suscitaria no futuro em França tratados e métodos que serviram a gerações de pianistas. Mencionaria, entre outros, de Blanche Selva (1884-1925), os vários volumes do “L’enseignement de la Technique du Piano” (1916-1925) ; de Alfred Cortot (1877-1962), “Principes rationnels de la technique du piano” (1928) ; de Marguerite Long (1874-1966), “Le Piano” (1956).
On François Couperin’s “The Art of Playing the Harpsichord”, a didactic treatise written to guide harpsichord students performance practice. First published in 1716, the method in question addresses principles that are valid to this day with regard to the performer’s approach to the instrument, both in a technical and psychological sense.