O iluminado século XVIII

La vrai musique est le langage du coeur.
Jean-Philippe Rameau (1683-1764)
(“Code de Musique Pratique”, 1760)

Após encerrar minhas atividades pianísticas públicas em 2023, não deixei de continuar meus estudos diários. No final do ano que passou houve um Primeiro Encontro privé, unicamente com transcrições de obras para cravo ou órgão de J.S.Bach realizadas por grandes mestres do piano: Liszt, Busoni, Siloti, Dame Myra Hess e Wilhelm Kempff. Concentrei-me, para este Segundo Encontro, nas criações de excelsos compositores, os célebres clavecinistes français. Os mais puristas entendem que apenas ao cravo essas composições deveriam ser apresentadas. Valho-me da opinião do notável musicólogo francês François Lesure (1923-2001), Diretor do Departamento de Música da Bibliothèque Nationale em Paris, que, ao prefaciar os meus CDs com a integral para cravo de Jean-Philippe Rameau interpretada ao piano, escreveu: “O tempo do Barroco integrista passou. A utilização de instrumentos de época deixou de ser um dogma ao qual os músicos são obrigados a aderir sob pena de serem tratados de heréticos”.

A era cravista, máxime no século XVIII, foi pródiga na produção de composições que perduram através dos séculos e advindas de diversos países. Compositores seguiram formalmente linhas próximas, mas as configurações estiveram sujeitas ao abstrato ou ao descritivo, a depender das origens pátrias de seus mestres.

Entendendo-se a organização da Suite, constituída por diversas danças, verifica-se que a sua estrutura básica é formada por quatro peças, Alemande, Courante, Sarabanda, Giga e outras mais, acrescidas a critério do compositor. Na criação germânica, J.S.Bach (1685-1750) e G.F.Haendel (1685-1759) mantiveram preferencialmente cada peça com seu nome tradicional, sendo que a primeira poderia ser um Praeambulum, Prelude ou termo outro a designar a abertura. Apesar de Johan Kuhnau (1660-1722), na Alemanha, já ter dado um sinal outro à descrição nas suas seis “Sonatas Bíblicas” – música programática – (no Youtube há a gravação da integral que realizei na Bélgica e lançada em CD pelo selo De Rode Pomp), fundamentalmente J.S.Bach é o compositor maior, pleno de suas convicções luteranas. Essa posição poderia, quiçá, ter sido uma das razões para que a imensa criação descritiva francesa não o cativasse. Bach conheceu as “Ordres” de Couperin, tendo inclusive trocado correspondência com o mestre francês.

Em França, François Couperin (1668-1733) nomeia “Ordres” as 27 estensas Suítes  que integram os quatro livros (1713, 1717, 1722, 1730) com 254 peças, sendo que a primeira e a última de cada “Ordre mantêm a mesma tonalidade, fato que comprova um princípio básico da Suíte. Para a larga maioria das peças Couperin foge dos títulos tradicionais. Tantos outros clavecinistes français também assim procederam no culto à descrição. François Couperin legou grande produção, não apenas para cravo, mas igualmente escreveu para outras organizações, órgão, música de câmara e música vocal. Seu referencial método para cravo, “L’Art de toucher le clavecin” (1716-1717) é pioneiro no gênero.

Clique para ouvir, na extraordinária interpretação da insigne Marcelle Meyer, Le Tic-Toc-Choc de François Couperin:

https://www.youtube.com/watch?v=6cuEoA6dxpI&t=37s

Jean-Philippe Rameau (1683-1764) compõe pouco mais de 50 peças para cravo e transcreve pequenos quadros de suas óperas para o instrumento. Das cinco Suítes distribuídas em três livros (1706, 1724 e 1728), apenas na primeira (1706), o compositor mantêm os títulos tradicionais, sendo que nas outras as titulações são majoritariamente descritivas. Os títulos em Couperin e Rameau são consequências do observar a natureza e a fauna não agressiva, máxime os pássaros. Cultuam igualmente os sentimentos e a figura feminina, entre outras temáticas. O olhar e o sentir influenciando a imaginação, esta, traduzida no resultado sonoro.  A opera omnia de Rameau é extensa, salientando-se as suas óperas, tragédias líricas e o gênero ópera-ballet. Imenso teórico, seu “Traité de l’harmonie réduite à ses principes naturels” (1722) e a posterior “Génération Harmonique” (1737), são obras absolutas na História da Música.

Curiosamente, há inúmeros títulos da criação cravística utilizados por mais de um compositor. No recital privé menciono La Joyeuse, nome utilizado por Louis Daquin (1694-1772) e Rameau; Les Tourbillons, por Jean-François Dandrieu (1682-1738) e Rameau. Passarinhos e pássaros frequentam as criações dos clavecinistas. Rameau escreve Le Rappel des oiseaux e La Poule. Couperin saúda vários pássaros, Le Roussignol-en amour, La linotte-éfarouchée, Les Fauvettes plaintives, Le roussignol-vainqueur, Le coucou. Louis Daquin comporia a célebre Le coucou.

Clique para ouvir, de Louis Daquin, Le coucou, na interpretação do notável Gëorgy Czifra:

https://www.youtube.com/watch?v=Av_ypwPynxQ

 

Clique para ouvir, de Jean-François Dandrieu e de Jean-Philippe Rameau, Les Tourbillons – pois ambos se valeram do mesmo título -, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=begt8k6ErRY&t=3s

Nomes de figuras femininas são amplamente mencionados, mormente por Couperin. Rameau escreveria L’Agaçante, L’Indifférente, La Timide e La Dauphine, esta em homenagem à esposa do Delfim Louis, por ocasião do casamento real em Versailles em 1747, data da última peça para cravo do compositor. La Dauphine, Marie-Josèphe de Saxe, foi a mãe de Louis XVI.

Clique para ouvir, de Jean-Philippe Rameau, La Dauphine, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=MATL8LHQoB0

Profusamente os clavecinistes franceses se utilizaram da ornamentação. O insigne musicólogo espanhol Adolfo Salazar (1890-1958) bem define os porquês: “Em geral, as limitações do próprio instrumento ditaram o caráter de arabesco que, em seu mais estrito sentido, está presente nessas criações. Trinados, grupetos, mordentes, floreados, toda a quinquilharia derivada do alaúde e semelhantes no cravo tenderiam, entre outras razões, a uma peculiaridade material: a necessidade de proporcionar um fundo harmônico obtido pela repetição das notas, pois que a sua duração era impossível de outra maneira” (“Forma y expression en la musica”, 1941).

Jean-Philippe Rameau estabelece uma tabela a indicar ao intérprete exatamente a maneira de executar cada ornamento, assinalado criteriosamente na partitura. Nas cinco suítes e nas poucas peças avulsas há milhares de ornamentos. A abundante ornamentação existente na música para cravo em França fez com que considerações pululassem no transcorrer dos séculos, entendendo-a como superficial, pois nas obras dos germânicos Bach e Haendel, D.Scarlatti (na Itália) ou Carlos Seixas (em Portugal) a ornamentação é sensivelmente mais econômica devido a muitos fatores, mormente à tradição nesses territórios.

Clique para ouvir, de J-P. Rameau, L’Egyptienne, plena de ornamentos, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=26HhGRAg_Tg&t=30s

Creio que as palavras do ilustre compositor francês Georges Migot (1891-1876) sobre Jean-Philippe Rameau, que na realidade podem ser estendidas à magnificente escola dos clavecinistes français, bem traduzem uma verdade absoluta: “Enquanto Jean-Philippe Rameau, entre os maiores, não ocupar o lugar a que tem direito, a história da Música do século XVIII e através dos séculos não terá a sua total orientação”.

A second private piano recital looks at the magnificent creation of the French clavecinists, whose work has endured for centuries due to the unparalleled quality of the composers. A repertoire that has fascinated me since I was a teenager.