Respeito à partitura sem prejuízo do eu

A música não é um objeto físico nem mesmo um objeto real,
ela é uma imagem cuja execução,
e somente sua execução, comunica-se com o ouvinte
por uma certa maneira de unir, de modelar e de acentuar os sons.

Ernest Ansermet (1883-1969)
(“Écrits sur la Musique” 1971)

Ao longo dos anos, inúmeras vezes escrevi sobre a interpretação musical, o respeito à criação do compositor e, num caminho oposto, a arbitrariedade. Mercê de fatores a envolver empresários, patrocinadores e a publicidade ampla, verifica-se no presente a desatenção, por parte de muitos intérpretes, às mais consagradas orientações concernentes à tradição. Poder-se-ia considerar como liberação quase plena, que jamais seria aceita décadas atrás. Ingredientes a fazer parte do espetáculo atual propulsionam o intérprete a “criar” a sua execução a partir da partitura cuidadosamente composta pelo autor. Nesse desiderato, um dos aspectos mais comentados por expressivos compositores é o da transmissão da obra a obedecer o pensamento do autor. Em décadas passadas, foram muitos os músicos que, em depoimentos formais ou não, se pronunciaram, a enfatizar o respeito à partitura. Todavia, há que se entender a personalidade de cada intérprete, numa abrangência a considerar a diversidade instrumental.

Comentei em blog recente o desacordo de Maurice Ravel (1875-1937) que, ao ouvir em Nova York Arturo Toscanini (1867-1957) reger o famoso Bolero, acelerando o andamento à medida que a obra evoluía num crescendo constante, ficou furioso pela atitude arbitrária do renomado regente, pois a obra mantém do início ao fim um andamento inflexível. Em outra oportunidade, Toscanini e Igor Ígor Stravinsky (1882-1971) concordaram que “ao executante cabe tocar o que está escrito”. Na realidade, os dois grandes Mestres não eram contra a imaginação do intérprete. Nesse sentido, o insigne regente suíço Ernest Ansermet considera que “…o intérprete não deve introduzir na obra efeitos próprios, mas somente o que implica o texto do compositor, a saber: o que recupera o que está escrito”. Em oposição ao preceito de Toscanini e Stravinsky, Ansermet observa: “Não se toca jamais ‘o que está escrito’, mas não se deve tocar nada que não esteja em conformidade com o senso musical do texto”.

As transformações no que concerne à interpretação sofreram nesses últimos decênios o choque da aceitação pública sob outras égides, máxime às excentricidades de executantes que, colhendo aplausos retumbantes, permitem-se “inovar” sobre a sacra criação musical. Em blogs distantes de mais de uma década observei ter ouvido, durante minhas turnês pela Europa, músicos extraordinários desconhecidos do grande público, mas que transmitiam a mensagem musical de maneira contagiante, sem contudo se absterem da imaginação até ampla, mas respeitando o pensamento do compositor.

Ernest Ansermet apreende a essência dessa bivalência compositor-intérprete: “No momento em que o autor concebe sua obra, ele obedece à sua intuição concernente às possibilidades da linguagem musical; pode mesmo se dizer que quase toda a sua concepção é, a seu ver, evidente e não precisa ser analisada, sendo pois uma criação sintética que comporta inúmeros elementos irrefletidos. O executante, ao contrário, em presença do texto e para descobrir o que pensa o autor, deve primeiramente fazer a análise, ou seja, penetrar além do texto até o senso da música que o autor esquematizou no papel. Entenda-se, ele é, nesse momento, um intérprete e não um mero executante”. Ernest Ansermet tece outros comentários: “A interpretação sonora procede da mesma intuição da linguagem musical, tanto para o intérprete como para o autor, sendo que, para o autor, ela visa criar novas manifestações dessa linguagem, para o intérprete ela almeja criar a imagem concreta, refletida pelos sons, da escrita criada pelo compositor, o que implica uma certa congenialidade do intérprete e do autor. Aquele cria a obra ‘real’ após um esquema por ele traçado, tornando-se o porta-voz do homem num certo meio e em uma certa época. Essa criação de segunda mão é sancionada pelo público na medida em que este pode reconhecer na obra executada precisamente o que o compositor expressou consciente ou inconscientemente”.

As sábias linhas do insigne Ernest Ansermet apenas ratificam a necessidade de se distanciar da arbitrariedade. Mencionaria dois exemplos que me parecem claros a respeito de liberdades interpretativas perigosas, mas saudadas com entusiasmo pelo público atual que, assim agindo, apenas estimula o processo. A magnífica obra para cravo de Jean-Philippe Rameau (1683-1764) teve algumas gravações ao piano, pontificada pela primeira realizada pela imensa pianista francesa Marcelle Meyer (1897-1958) em 1953. Em 1997 fui o terceiro a gravar a integral em Sofia, na Bulgária, e lançada na Bélgica pela De Rode Pomp num duplo CD e, posteriormente, no Brasil pela Concerto. Atualmente há outras mais gravações ao piano e 20 ao cravo.

Duas interpretações ao piano causaram-me estranheza. O excelente pianista moldavo Alexander Paley (1956-) gravou a integral, mas improvisou a partir do original em quase todas as peças, quando das repetições indicadas por J-P.Rameau. Entendo como um equívoco. O virtuose russo Daniil Trifonov (1991-), um dos mais representativos pianistas da sua geração em termos mundiais, tendo se apresentado recentemente em São Paulo, tanto em nossa cidade, como no Carnegie Hall de Nova York, interpretou a suíte em lá de Rameau (1728) e o vídeo está no Youtube. O virtuose romantizou ao extremo a suíte inteira e em determinadas peças, a Allemande e a Sarabande, excedeu em impulsos românticos, sendo que na Gavote variée finalizou as últimas variações como se fossem de grande virtuosidade “romântica” no andamento e na dinâmica. Acrescentou ornamentos e floreios não indicados na obra completa original para teclado que exibe mais de 5.000 sinais apropriados. Rameau criou a sua tabela de agréments (ornamentos), clara a não possibilitar dúvidas quanto à sua execução (vide imagem acima). É só respeitá-la devidamente. Parafraseando o grande filósofo e musicólogo francês de descendência judaica, Vladimir Jankélévitch (1903-1985), que, ao ser perguntado por um jovem alemão que o visitou em Paris a respeito de qual ser a razão para ele nunca mais sequer escrever sobre o pensamento da Alemanha, respondeu-lhe que não tinha a procuração de seis milhões de mortos no holocausto. Teriam porventura, numa visão imaginária, os referidos intérpretes recebido procuração de Jean-Philippe Rameau? Se outros pianistas, dando asas à imaginação, fizerem o mesmo, mas com outras “tendências” interpretativas, a extraordinária criação de Jean-Philippe Rameau não estará sujeita à completa descaracterização? A se pensar.

The theme of is blog deals with musical interpretation following the guidance of the score versus arbitrariness, which creates an obstacle to the tradition that has been perpetuated over the centuries.