Navegando Posts publicados em agosto, 2024

 

A interpretação de leitores fiéis

Se consultarmos os mestres,
aprenderemos que a primeira condição para aprender a pensar
é a de cultivar em si a faculdade de se surpreender.
Jean Guitton (1901-1999)
(“Nouvel art de penser”, 1946)

Os dois últimos blogs tiveram recepção benfazeja. Das muitas mensagens que ampliam a minha gratidão àqueles que ainda cultuam com amor e entusiasmo temas voltados à Cultura Humanística em crise, separei algumas que me motivam a ainda ter esperanças. “Histoire Romaine et les débuts du Moyen-Âge” e os dois posts dedicados ao notável pianista português Sequeira Costa exemplificam o olhar atento dos leitores.

A derrocada da Cultura Humanística se pode sentir a cada dia, tanto no cotidiano como no enfoque que se dá aos eventos voltados às multidões. A abertura da presente Olimpíada, que deveria seguir uma tradição que remonta a 1896, quando da primeira da era moderna, realizada em Atenas, evidenciou essa decadência através de cenas sem um direcionamento explícito à cultura esportiva, a culminar com a apologia grotesca e irresponsável dos valores fundamentais de uma cultura, no caso, a cristã. O escárnio ficou evidenciado, sem nenhum rubor dos organizadores, na caricatura abominável da Santa Ceia imortalizada por Leonardo da Vinci (1452-1519). Há determinados símbolos que jamais deveriam ser profanados, sejam eles das mais variadas tendências religiosas ou voltados a raças, bandeiras e culturas que enriqueceram a humanidade através dos séculos.

De Eliane Mendes, viúva do notável compositor Gilberto Mendes, recebi decisiva apreensão dos valores aviltados na atualidade. “Sim, há uma grande decadência da cultura geral em todo mundo, basta ver a abertura dos jogos olímpicos na França, de um mau gosto e grosseria tão grande, vindo de um país de grande tradição cultural no passado. Sou de uma geração em que os pais nos ofereciam, na infância, o aprendizado de um instrumento e de uma língua estrangeira, para nos preparar desde criança para uma expansão da consciência através da cultura. Somos poucos, e cada vez menos, a procurar o que há de mais elevado dentro da cultura humana, embora a grande cultura e o grande aprendizado não estejam lá, mas sim dentro de nós, dentro de nossa Consciência Superior. Através de nossa Percepção adquirimos a Inteligência e o Conhecimento espiritual, que só a Sabedoria e a Razão podem nos dar. É uma tarefa que cabe a cada um de nós, e que ninguém pode fazer em nosso lugar, a não ser nós mesmos”.

A ilustre tradutora e professora Aurora Bernardini escreve: “A cultura erudita está submergindo, infelizmente, José Eduardo, mas resistamos…”.

O poeta, escritor e acadêmico Flávio Amoreira tem sistematicamente denunciado, através da sua coluna em “A Tribuna” de Santos, o aviltamento cultural presente e o desprezo das novas gerações à leitura: “Triste desmonte, a começar pela ausência de filosofia, da escolástica, ausência da nossa raiz comum, o latim, mas principalmente a indigência vocabular, a miséria literária, o processo de idiotização através do primado do visual e o tsunami de platitudes digitais; bravo!”. Bem salienta o insigne pensador e poeta português Agostinho da Silva: “Escrevendo ou lendo nos unimos para além do tempo e do espaço, e os limitados braços se põem a abraçar o mundo; a riqueza dos outros nos enriquece a nós. Leia”.

A renomada poetisa Carolina Ramos, hoje nos seus gloriosos 100 anos, envia-me um poema sobre a significação do livro, progressivamente esquecido por tantos das novas gerações, presos que estão às telinhas “imantadas”, úteis na atualidade se bem utilizadas.

Bendito seja…

As palavras o tempo apaga e arrasta
- pétalas soltas, ao sabor do vento…
O livro é escrínio que resguarda e engasta
as joias perenais do pensamento!

O livro é amigo silencioso.  E basta
que traga em si o gérmen do talento,
para, banindo a dúvida nefasta,
mentes clarear e aos sonhos dar alento!

Bendito o livro, que mantém o lume
do saber, a ajudar a erguer-se um povo
que na cultura o seu lugar assume!

Bendito seja quem imita os astros,
valorizado, a cada instante novo,
à luz de um livro, que lhe doura os rastros!

Gildo Magalhães, professor titular jubilado da USP e várias vezes presente em Ecos, escreve sobre o insigne pianista Sequeira Costa e sua magistral interpretação de “Gaspard de la nuit”, de Maurice Ravel, assim como a respeito da interpretação dos 24 Estudos de Chopin: “De fato, é uma execução soberba! E seu blog traz implícita resposta ao que talvez muitos leitores se perguntem: Por que José Eduardo não gravou esses estudos? Fica claro que: 1. A excelência já está garantida por outros intérpretes, o que poderia ser acrescentado? 2. Há porém outros caminhos que derivam dessas composições, essas trilhas pouco ou nada batidas estavam esperando pelo José Eduardo. Fica assim a impressão de que, recolhendo aqui e ali nos blogs, é possível traçar uma autobiografia de José Eduardo, o que é muito bom!”.

Um leitor sugere algo de interesse. Pergunta-me se tenho porventura alguns traços das aulas a respeito dos Estudos de Chopin que inseri no blog de 27 de Julho último. Prazerosamente adiciono ao presente post três curtos segmentos dos Estudos com as anotações de Sequeira Costa na minha partitura. Estávamos em 1959-1960.

Torna-se imperiosa uma reação ao atual quadro da sociedade. No seu conjunto, realmente os que lutam pela preservação da cultura humanística, da moralidade e dos costumes são minoria, hélas. Contudo, apesar dessa desvantagem numérica, há a chama que não se apaga. E é no seio da família, através do exemplo dignificante, e na atuação do professor vocacionado junto às classes da infância à juventude que se forjarão mentes que entenderão que está na conduta alicerçada em bases seguras o caminho para as transformações.

The readers’ messages concerning the last two blogs were basically unanimous about cultural decadence, the discouragement to reading and the highest praise, in the post about the Portuguese pianist Sequeira Costa, for his interpretations.

O entusiasmo de leitores

La musique est le langage du coeur.
Jean-Philippe Rameau

Foram muitas as mensagens recebidas a respeito do notável pianista português Sequeira Costa (1929-2019) e da sua magnífica interpretação de “Gaspard de la nuit”, de Maurice Ravel. Leitores gostariam de conhecer outras gravações e alguns perguntam se não posso comentar suas execuções. Faço-o prazerosamente pelo blog hebdomadário.

Para tanto, esclareço que recebi de Sequeira Costa o LP que gravou para a selo Chant du Monde, em França, a conter vários Estudos de Fréderic Chopin (1810-1849). Tratava-se de um LP (33 tours 1/3) de tamanho médio, o que impossibilitou a gravação integral dos op.10 e op.25, pois cada op. contém 12 Estudos. Após os pedidos dos leitores, insiro no presente blog uma gravação referencial dos Estudos op.25 encontrável no Youtube.

Escolhi essa gravação por vários motivos. Foi sob a orientação de Sequeira Costa que estudei em Paris os 24 Estudos de Chopin. Acredito ter ele apreendido o cerne dessa monumental criação. Como afirmei no blog a ele dedicado recentemente, o Mestre Jacques Février (1900-1979) considerava a técnica pianística de Sequeira Costa como a mais perfeita até então. Estávamos em 1959.

O nosso relacionamento se deu em Paris naquele ano e, em Julho, viajamos para Lisboa num Sinca Chambord dirigido por ele. Éramos cinco: a excelente pianista Tania Achot (vide blog “Tania Achot 1937-2022”, 18/03/2022), acompanhada da mãe Madame Achot e da irmã Natascha. Dias após, dei recital na Academia de Amadores de Música convidado por seu diretor, o notável compositor Fernando Lopes-Graça (1906-1994), com a presença de Sequeira Costa.

Foi a partir do segundo semestre de 1959 que, paralelamente aos estudos com os grandes mestres franceses Marguerite Long (1874-1966) e Jean Doyen (1907-1982), pois não mais estudava com Jacques Février, que periodicamente tive aulas com Sequeira Costa, máxime trabalhando os 24 Estudos de Chopin.

Importante frisar que os 24 Estudos de Chopin têm uma aura superior. O extraordinário conjunto é pioneiro no que poderia ser considerado o pianismo total, sob o aspecto técnico em sua abrangência. Franz Liszt (1811-1886), Alexander Scriabine (1872-1915), Claude Debussy (1862-1918) e Sergei Rachmaninov (1873-1943) seguiram a trilha construída por Chopin e compuseram Estudos com o mesmo propósito, sendo que Scriabine compõe 26 Estudos e, entre estes, 12 op.8, e Debussy, os 12 Études, seguindo os passos de Chopin. Debussy, inclusive, a ele dedicou os seus Estudos.

O debruçamento sobre esse conjunto magno durante aqueles anos e a audição, ao longo do tempo, de tantos pianistas de excelência interpretando os dois cadernos de Estudos de Chopin, fizeram-me, sem quaisquer processos tendenciosos, eleger a gravação de Sequeira Costa como modelo absoluto. Recordo-me nos pormenores dos conselhos do pianista português quanto à frase musical e seus contornos; o tratamento da dinâmica em seus extremos, o que apenas valoriza o conteúdo essencial intermediário; o emprego do rubato sem excessos, mas presente, a valorizar a expressão; a pedalização econômica, a evitar quaisquer camadas sonoras encobrindo a clareza.

Poderia Sequeira Costa ter tido uma carreira fulminante. Motivos rigorosamente de foro íntimo fizeram-no, apesar das qualidades inalienáveis, ter outro direcionamento em termos da trajetória profissional. O seu repertório excedia, pois era intérprete das 32 Sonatas e dos cinco concertos para piano e orquestra de Beethoven, dos quatro concertos de Rachmaninov, tendo percorrido exitosamente parte essencial da criação romântica, entre tantas outras obras. Assisti, àquela altura, dois recitais memoráveis de Sequeira Costa. Décadas após e progressivamente, mercê de apelos voltados a fatores extramusicais, pianistas iluminados por fortes holofotes, buscando em suas performances ingredientes outros a atender ao “mercado”, têm impactado plateias. Publicidade a interessar empresários e anunciantes, excessos gestuais, “achismos” interpretativos, extravagantes vestimentas apenas substanciam o conteúdo de “La civilización del espetáctulo”, livro de Mario Vargas Llosa, prêmio Nobel de Literatura.

Clique para ouvir, de Fréderic Chopin, os 12 Estudos op. 25, na interpretação maior de Sequeira Costa:

https://www.youtube.com/watch?v=4HPx9RO9f3Q

Conscientemente ou não, gravei para o selo De Rode Pomp os 26 Estudos de Scriabine e os 12 de Debussy, acrescidos de três outros CDs, deles constando Estudos Brasileiros (Academia Brasileira de Música), Estudos Belgas (De Rode Pomp) e CD dedicado aos Estudos de François Servenière (França), Jorge Peixinho e Eurico Carrapatoso (Portugal) e Gheorghi Arnaoudov (Bulgária), todas as gravações realizadas em Mullem, na Bélgica, sob o impacto desse trabalho específico com Sequeira Costa entre 1959-61. A busca do desbravamento técnico-pianístico na observância primordial do conteúdo musical.

Messages from readers have asked me to present other recordings by the remarkable Portuguese pianist Sequeira Costa, if possible with my comments. I’m doing so with his interpretation of Fréderic Chopin’s 12 Etudes op. 25.