Algumas causas
Hoje não resisti ao apelo destas visões
que vi flutuarem, a meio caminho,
na transparência dos meus pensamentos.
Marcel Proust (1871-1922)
Intrigou-me a mensagem de um jovem músico, José Afonso, perguntando-me quais seriam as causas da grande maioria dos pianistas tocarem preferencialmente as mesmas obras dos compositores muito conhecidos.
Não poucas vezes, ao logo desses dezoito anos de blog ininterruptos, salientei o entrave que existe, máxime por parte dos organizadores, que têm o faro daquilo que se quer ouvir e, consequentemente, do lucro, “sugerindo” o que deve ser ouvido, menos para aqueles já integrados ao sistema, mas sobretudo aos talentosos e premiados que ingressam na carreira. Realidade mundial. O que parece evidente é a submissão desses novos músicos no mercado, mais pela necessidade de um real início. Uns tantos serão impulsionados na carreira, outros mais buscarão caminhos dentro ou fora da área musical.
Em publicação sob a égide da Université Paris-Sorbonne (Observatoire Musical Français) na primeira década deste século, li a respeito dos repertórios. Havia estatística a evidenciar os programas apresentados em França e a persistente repetição das obras interpretadas e consagradas pelo público. Apontava para a desproporção entre o que era habitualmente apresentado e aquelas criações de autores menos favorecidos do passado, apesar da evidente qualidade desses compositores. Quanto aos compositores modernos e contemporâneos, daqueles alguns foram ungidos e pertencem ao repertório dos pianistas das várias faixas etárias. No que tange aos contemporâneos, determinadas linguagens não atingem o público frequentador das salas de concertos e são admiradas em guetos precisos.
Sob outra égide, aqueles talentosos jovens pianistas que buscam o aprimoramento, tendo quase sempre a intenção de participar dos renomados concursos internacionais, deparam-se sempre com os programas propostos, que privilegiam basicamente o repertório consagrado, exceção aos concursos monotemáticos. A se pensar no tempo para a preparação desses jovens visando a determinado concurso e todo um estudo durante anos moldado no repertório tradicional. Para os vencedores, uma possível carreira pode surgir. Determinados convites para apresentações em salas pelo mundo propõem ao agraciado algumas obras que o levaram à láurea e que essas novas audiências querem ouvir. Esse início real da carreira geralmente influenciará o jovem que, doravante – há exceções –, se fixará no repertório repetitivo e referencial para o público. Assim tende a ser a rotina. Essa constatação fica mais evidente ao se acessar o Youtube. Os pianistas mais conhecidos, pertencentes à juventude da idade madura, preferencialmente apresentam em público e gravam as obras mais ventiladas de consagrados compositores, como Mozart, Beethoven, Chopin, Schumann, Brahms, Tchaikovsky, Debussy, Ravel, Rachmaninoff, Prokofiev… Gravações de grandes compositores – mas pouquissimamente apresentados em público – ficam reservadas basicamente aos intérpretes relevantes, diga-se, mas bem menos conhecidos.
Na seleção natural que elegerá alguns entre muitos, o intérprete de grande valor pianístico enriquecerá o seu repertório buscando preferencialmente composições que atendam aos anseios do público que o identificou como um “especialista” em determinados compositores renomados.
A interligação entre o agente – num sentido amplo de suas ramificações – e o intérprete, resultando na progressiva ascensão deste, mercê da agenda intensa, quase sempre “impossibilita” o músico de investir no repertório ignoto ou pouco frequentado, fato que favorece o empresário. Essa é uma das causas da frequência ao repertório exaustivamente apresentado.
Um dileto amigo voltado à Cultura Humanística disse-me certa vez que preferia ouvir ao vivo, tantas forem as vezes, a 5ª Sinfonia de Beethoven a ter de se deslocar para assistir a um intérprete apresentando obras desconhecidas ou quase, pois as referências habituais que o levavam ao deleite inexistiam. Não é essa a mentalidade da grande maioria que acorre às salas de concerto?
Compositores do período barroco, como J.S.Bach (1685-1750) e Domenico Scarlatti (1685-1757), há bem mais de um século têm suas obras escritas para cravo interpretadas ao piano regularmente e, quanto a Bach, inúmeras de suas criações para órgão foram transcritas igualmente para piano, sendo incorporadas ao repertório dos pianistas. Desse mesmo período, J-P.Rameau (1683-1764), G.F.Haendel (1685-1759), Carlos Seixas (1700-1742), compositores excelsos, tiveram tardiamente as suas criações para cravo interpretadas ao piano e, mesmo no presente, são pouco frequentadas nesse instrumento.
Clique para ouvir, de J-P. Rameau, “Les Cyclopes”, na interpretação de J.E.M.:
Jean-Philippe Rameau – Les Cyclopes – José Eduardo Martins – piano – YouTube
Se Sergei Rachmaninoff (1873-1943) e, tardiamente, Alexander Scriabine (1872-1915) são hoje bem divulgados, o mesmo não se deu com o ucraniano Sergei Bortkiowicz (1877-1952), rigorosamente contemporâneo dos dois mestres russos e que compôs excelentes obras para piano. Apesar de esforços de ótimos pianistas, permanece desconhecido do grande público.
Clique para ouvir, de Sergei Bortkiewicz, Estudo op. 15 nº9, na interpretação do pianista franco-cipriota Cyprien Katsaris:
https://www.youtube.com/watch?v=gkjb6INBbL8
No vasto repertório pianístico, um outro ilustre compositor, pianista e regente russo, Mikhailovich Lyapunov (1859-1924), pouco frequentado, diga-se, legou, em sua vasta produção, 12 “Estudos Transcendentais” (dedicados a Franz Liszt), que mereceriam presença nas programações ocidentais.
Clique para ouvir, de Lyapunov, o “Estudo Transcendental, op.11 nº 10, Lesghinka”, na interpretação do pianista italiano Marco Rapetti:
https://www.youtube.com/watch?v=Nb6QaTnkPIM
O que não dizer do repertório para piano escrito por notáveis compositores contemporâneos que escolheram se ater a uma linguagem baseada na tradição, mas não desprovida de inovações! Deveriam ser visitados pelos intérpretes, pois fonte de propostas de interesse pianístico.
Clique para ouvir, de Paulo Costa Lima (1954-), “Imikayá”, na interpretação de J.E.M.:
https://www.youtube.com/watch?v=qZqE63BeleQ
O repertório para piano construído nesses últimos séculos é fantástico. Contudo, a repetição sem tréguas das mesmas obras dos compositores eleitos, excluindo-se tantas vezes outras igualmente meritórias desses mesmos autores, frise-se, mas que por motivos os mais diversos não são frequentadas pelos pianistas, limita forçosamente a apreciação do ouvinte e a curiosidade do intérprete. Quanto já não se falou que uma das preciosidades do pensar humano é a curiosidade. E não é graças a ela que cérebros privilegiados têm, ao longo dos séculos, encontrado caminhos inventivos?
I approach from a new angle the problem of the repetitive repertoire performed by the vast majority of pianists. Hidden treasures are gradually being rediscovered; as for the modern and contemporary repertoires, the former has been moderately promoted, while the contemporary one has been visited by some performers in a restrained manner.