Um tema da atualidade

Se há uma fisionomia de artista
original e curiosa a ser estudada entre todas,
é com certeza a de Charles-Valentin Alkan,
cujo interesse é redobrado
por uma espécie de enigma a penetrar.
Antoine-François Marmontel (1816-1898)

Após centenas de blogs sobre música, priorizando inúmeros aspectos da área e o piano a preponderar, recebo mensagem de uma leitora atenta, Ana Sílvia, que gostaria que considerado fosse um post a abordar a virtuosidade plena, máxime após ter ouvido no blog anterior gravação de Yuja Wang exibindo uma composição de Rimsky Korsakov (1844-1908), “O voo do besouro”, transcrita por György Czifra (1921-1994). Menciona o surgimento de jovens pianistas, mormente de origem asiática, com técnicas voltadas ao extremo da virtuosidade pianística e o fazendo com a maior naturalidade. Este preciso enfoque já salientara em “José Eduardo Martins – Un pianiste brésilien”, Université Paris-Sorbonne, Observatoire Musical Français, Série Témoignages, nº4, 2012.

A alusão à virtuosidade plena me fez lembrar de um compositor entre aqueles pouco ventilados, máxime pela extrema dificuldade de suas criações. Trata-se de Charles-Valentin Alkan (1813-1888), um compositor francês de origem judaica muito considerado em seu tempo, graças também às suas qualidades como exímio pianista e professor. Privou da amizade de músicos e literatos como Victor Hugo (1802-1885), Lamennais (1782-1854), Georges Sand (1804-1876) e, por consequência, de Fréderic Chopin (1810-1849). Com o passar do tempo tornou-se misantropo e hipocondríaco, agravado pelo fato de que uma de suas aspirações, ser professor do Conservatório de Paris, não se realizou, mercê da nomeação de Antoine-François Marmontel (1816-1898), que se tornaria o nome referencial do ensino de piano em França. De temperamento ao menos nervoso, com o passar dos anos viveu praticamente no isolamento, reclusão voluntária, que não o impediu de continuar a compor. Não obstante, recebia visitantes, entre eles Franz Liszt (1811-1886) e Anton Rubinstein (1829-1894), quando esses notáveis músicos estagiavam em Paris. Sua biografia salienta a causa de sua morte, ocorrida após consultar livros em estante elevada da sua biblioteca, que desabou sobre ele. É lamentável verificar que determinados livros sobre a música francesa das primeiras décadas do século XX ignoram Alkan por completo.

Escreveu majoritariamente para piano e seus Estudos e Prelúdios se destacam pela presença da técnica pianística levada tantas vezes aos extremos da dificuldade e de um estilo absolutamente pessoal no que tange à feitura de suas composições. Outro aspecto a salientar é a longa extensão de muitos dos seus Estudos para piano. Joseph d’Ortigues, crítico de “La France Musicale”, escreveria em 1844: “O Sr. Charles-Valentin Alkan é um grande talento, um talento eminente, fora de série… Se M. Alkan não goza da reputação que merece, é porque é ouvido muito raramente.  Suas composições desviam-se das formas em voga pela maioria dos solistas; o resultado é que uma ou duas audições não são suficientes, e o público fica confuso e dificilmente  consegue compreendê-lo”.

Em diversos concursos internacionais de piano nessas últimas décadas, ditados quase sempre pela tradição, quando solicitam aos candidatos a execução de Estudos de virtuosidade, fazem-no quase sempre privilegiando Estudos de Chopin, Liszt, Debussy, Scriabine e Rachmaninov. Alkan, longe de ter a notoriedade dos citados, possivelmente deveria estar entre eles, mercê do tratamento singular que dá ao Estudo.

É salutar verificar que, mais presentemente, pianistas jovens se debruçam sobre as criações virtuosísticas de Alkan, reveladoras do alargamento da forma, destemor na escrita, sem qualquer concessão ao intérprete no quesito virtuosidade. Poder-se-ia dizer, numa visão imaginária, que Alkan compôs visando ao futuro da técnica pianística voltada às dificuldades extremas. E esse futuro se faz presente, mercê da difusão progressiva de sua obra empreendida desde meados do século XX.

O pianista francês Bernard Ringeissen (1924-2025) foi um dos poucos cultores naquele período, entre as décadas de 1950-1960.

Clique para ouvir, de Alkan, “Saltarelle op. 23”, na interpretação de Bernard Ringeissen:

https://www.youtube.com/watch?v=QBySSdzwTk8

Marc-André Hamelin (1961-), relevante pianista canadense,  debruçou-se em alto nível sobre as criações de Alkan, interpretando-as em público e gravando suas obras.

Clique para ouvir, de Alkan, “Le Festin d’Esope” op. 39, nº 12, inusitado tema com variações onde se tem bravura e virtuosidade extrema, jocosidade e lirismo, na interpretação de Marc-André Hamelin:

https://www.youtube.com/watch?v=SSxbao_Chq0

Se considerada for a atração que a virtuosidade desperta, mormente no Extremo Oriente, o futuro parece promissor àqueles que desenvolveram as habilidades técnico-pianísticas no mais alto grau. Mencionei, anos atrás, as palavras de um professor francês que dirigia o Conservatório de Pequim. Dizia ele que, em pouco tempo, os chineses seriam imbatíveis sob o aspecto técnico-pianístico, os mais velozes (sic).

Clique para ouvir, de Charles Valentin-Alkan, “Le Chemin de Fer”, na interpretação do pianista japonês Yui Morishita (1981):

Yui Morishita – Le chemin de fer, Étude pour Piano (Alkan)

Clique para ouvir, de Alkan, o 4º movimento da Sinfonia para piano solo, na interpretação de Kit Armstrong (1992-), pianista americano de ascendência britânico-taiwanesa:

https://www.youtube.com/watch?v=v7tM9eukKDk

Antolha-se-me que a velocidade extrema que se faz presente mais recentemente nas interpretações de alguns pianistas da nova geração, mormente oriundos do Extremo Oriente, poderia ser uma característica das muitas influências advindas de outras áreas em mutações constantes a resultar na maior rapidez concernente às comunicações. Se observarmos a execução de Bernard Ringeissen, acima mencionada, interpretava o ilustre pianista “Saltarelle op. 23” de Alkan em um andamento considerado previsível. As composições de Alkan sempre foram consideradas de altíssima virtuosidade e, talvez pelo fato, ficaram “à margem” das programações habituais. Mark-André Hamelin impulsionou ou, sob outra égide, “restituiu” os andamentos de Alkan e as novas gerações com raízes na China e Japão, prioritariamente, entendem hoje Alkan como desafio. Esses “velocistas”, seguindo contudo a condução das frases musicais de maneira tradicional, o que é corretíssimo, têm tudo para prosseguir quebrando recordes. Não o fariam no âmbito do repertório tradicional, apesar de tentativas nesse desiderato, e a história da interpretação pianística evidenciou com clareza determinados pianistas que suplantaram isoladamente andamentos fixados, mas não tiveram epígonos, mercê da força da tradição.

Na esfera esportiva, atletas não têm tentado quebrar o recorde do jamaicano Usain Bolt para os 100 metros rasos (9,58 segundos no Campeonato Mundial em Berlim em 2009), que por sua vez ultrapassara o do norte-americano Karl Lewis, que mantinha o recorde desde 1991 (9,86 segundos no CM em Seul)? O que é salutar, no que concerne ao repertório pianístico, é a presença mais acentuada das criações de Charles-Valentin Alkan. Um expressivo compositor do século XIX em plena ascensão num compartimento singular da arte pianística e, poder-se-ia acrescentar, um imenso “laboratório” voltado à quebra de recordes. É só aguardar.

Charles-Valentin Alkan (1813-1888) composed works, mainly piano studie, exploring the limits of virtuosity. Little by little, he is being discovered by technically gifted pianists who see his creations as challenges, records to be broken.