“Mediocridade”

Fala-se que os seres humanos buscam a paz. Será mesmo?
É como quando se diz que os seres humanos buscam a liberdade.
Não, os seres humanos buscam a paz em tempo de guerra,
e a guerra em tempo de paz;
buscam a liberdade quando estão sujeitos à tirania,
e buscam a tirania quando gozam da liberdade.
Miguel de Unamuno (1864-1936)

Ao receber do meu estimado amigo Cláudio Giordano (1939-) o livro “Mediocridade”, primeiramente me surpreendi, pois anteriormente já escrevera um post sobre “Mediocridade”, publicação do autor bem mais reduzida, mas não na essência (vide blog “Mediocridade”, 01/06/2014, há exatamente onze anos).

A presente publicação (Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2024) aborda período crítico de Cláudio Giordano, escritor, editor, tradutor e uma das figuras culturais mais íntegras que conheci. Cético, pessimista e agnóstico, Giordano tem convicções aparentemente serenas sobre a Humanidade, o seu transcurso através dos séculos e o desvirtuamento acentuado, máxime nos últimos tempos. O mundo em plena crise, sem possibilidades de melhora, muito pelo contrário, em acentuado esgarçamento. Contudo, acredito que “Mediocridade” é um título que na realidade não condiz, data venia, com o substancioso material literário que desfila pelo livro, fruto do pensamento de luminares da história da Humanidade. Não obstante, o leitor entenderá o tempo de desalento vivido pelo sensível escritor e editor.

Tem-se, à guisa de Prefácio, texto de Plínio Martins Filho, notável editor, que sublinha a trajetória cultural do seu dileto amigo. Traça com precisão a figura de Giordano: “Editor singular, Cláudio faz de seu ofício uma devoção. Trabalhador incansável, solitário e obstinado, empenha-se em descobrir relíquias bibliográficas, que por vezes imprime e faz circular entre amigos”. Plínio Martins Filho interpreta o título da presente publicação: “No caso desse editor e daqueles que desfrutam de sua amizade, remete à expressão, comumente atribuída a Aristóteles, in médio virtus est (no meio está a virtude)”.

A anteceder os inúmeros textos elaborados por figuras que permanecem na história desde a antiguidade, Giordano apresenta, após breve explicação, sete escritos curtos que refletem seu posicionamento frente ao mundo em que vivemos e suas reflexões, por vezes ácidas, dimensionam o pensador que, após uma existência mergulhada nos livros, mormente raros, pois bibliófilo por vocação, observa a Humanidade à deriva, em estado crítico. Se admite avanços sensíveis do homem sobre a Terra, considera que “…sob a óptica da razão o ser humano não se encontrou e age cada vez mais irracionalmente, levado pela força do egoísmo e de sua incrível inteligência”. Ao mencionar “O Homem Medíocre”, do escritor ítalo-argentino José Ingenieros (1877-1925), comenta: “Esse livro acompanhou-me até bem pouco tempo e cheguei a ter uma edição original castelhana, mas jamais o li. Creio que receava ver-me enquadrado entre os medíocres e devo ter criado uma couraça semiconsciente que me tolheu sua leitura; com certeza te-lo-ei folheado – se o fiz, apagou-se-me da memória qualquer registro do seu conteúdo”. Abro um brevíssimo parêntesis para dizer que meu Pai nos fez ler na juventude o livro citado, pois afirmava que não gostaria de ter filhos medíocres. A mensagem de Ingenieros ficaria gravada indelevelmente na mente dos seus quatro filhos.

Há nesses minicapítulos introdutórios a presença do cético consciente, que entende que desde a adolescência caminhamos para a morte. “Ignorando se há alguma coisa depois desta vida, entristeço-me; e mais triste fico em vendo como as pessoas não se conscientizam de que, independentemente de existir ou não uma continuação, nossa vida é única e deveria ser realizada em toda sua gratuidade…”. Após uma primeira apresentação de “subsídios”, textos extraídos de figuras fundamentais para a cultura humanística, como Platão, Thomas More, Jean-Jacques Rousseau, Cervantes, Étienne de La Boétie, Nikos Kazantzákis…, a sessão “Retalhos” evidencia um Cláudio Giordano ainda mais cáustico em relação aos caminhos da civilização, a evidenciar todas as possibilidades destrutivas vindas dos poderosos e as impossibilidades de uma “salvação”, apesar de ratificar a inteligência humana. Alguns textos apresentados numa segunda sessão de “subsídios”, redigidos igualmente por autores ilustres, servem de amparo para ratificar muitas das posições de Giordano voltadas à morte: Arthur Koestler, Miguel de Unamuno, Eugène Ionesco, Augusto Forel, Machado de Assis…

Agnóstico, Giordano afirma ser “hoje convicto de que minha inteligência é absolutamente incapaz de afirmar a existência ou não-existência de Deus. E fé não tenho. Não tenho fé em Deus, isto é, não creio pura e simplesmente que ele exista, pois a minha inteligência não tem a mínima capacidade de concebê-lo”. Explica as razões: “O Deus que a mim faz sentido jamais criaria um universo tão contraditório como este em que vivemos, povoado de dor, de atrocidades, de seres que se devoram ou se matam, seja por instinto inelutável seja por crueldade, vale dizer, por uma ação voluntária”. Em suas reflexões, saliento o seu pensamento sobre a razão: “Razão para mim é a capacidade do animal humano de, tendo consciência de si, do habitat em que está inserido e do universo; enxergando, desvendando e manipulando as forças da natureza, e delas podendo extrair benefícios para sua própria existência – valer-se dessas vantagens todas para estabelecer uma qualidade de vida que lhe dê prazer, em convívio harmonioso com seus semelhantes”. Entende Giordano que o mundo carece de compaixão, mas que não será ela que trará solução para o sofrimento da humanidade.

Nos estertores de “Mediocridade”, Giordano apresenta ilustrações – como redenção? –, “imagens primitivas que dessem ideia plausível da fisionomia de Cristo”. Trata-se do trabalho de Thomas Heaphy que, na obra The Likeness of Christ (A figura de Cristo), “articula seu trabalho com base na seleção de imagens primitivas que encontrou e reproduz no livro”.

No “Epílogo” do precioso livro, Cláudio Giordano se desvela por completo, finalizando: “Posto tudo isso e tendo subjacente carradas de objetividades expostas à exaustão nos cartapácios de Harari e quejandas,

Já não consigo dar gracias a la vida;
E porque A eutanásia não está disponível,
resta recolher-me em minha mediocridade e solidão
E aguardar o fim do meu tempo,
Torcendo para que seja sem dor nem sofrimentos”

“Mediocridade” foi um dos livros que mais me impactou nesses últimos anos. O planeta em crise e, para aqueles que viveram as tantas décadas sob o manto da Alta Cultura, como assim propalam em Portugal, assistir na atualidade à hecatombe cultural, dos costumes, da moralidade, da política e suas consequências, hecatombe das entranhas da civilização que, divulgada abertamente sem pejo por vários meios de comunicação, esfacela a célula mater, a família formadora das mentes das novas gerações, a provocar no cerne, o desalento de figura expressiva e de dimensão ainda não totalmente avaliada, caso específico de Cláudio Giordano.

Recomendo vivamente o livro em apreço.

In his second book with the same title, “Mediocrity”, the editor and bibliophile Cláudio Giordano outdoes himself and presents a collection of selected literary texts with their authors’ thoughts on humanity. Giordano also presents his thoughts on existence and death, even though he is an agnostic.