A interpretação em causa

Consiste o progresso no regresso às origens:
com a plena memória da viagem.
Agostinho da Silva (1906-1994)
(Espólio)

O blog anterior apresenta tema polêmico e deriva da pergunta de jovem músico sobre progresso na interpretação musical. Tema controverso, motivou uma série de mensagens, curtas na grande maioria, majoritariamente concordando com a ausência do progresso nessa área. Poucas entendendo a interpretação como progresso. Acredito que, em muitos casos, a interpretação pianística da música clássica, erudita ou de concerto possa sofrer influências, por vezes tênues, advindas das várias modalidades de músicas voltadas ao grande público mais jovem e realizadas em grandes espaços abertos, precedidas por fantástica divulgação. Traduz-se mormente no vestuário e no gestual de alguns super ventilados pianistas clássicos. É evidente que, nesses casos em especial, a interpretação possa sofrer alterações, principalmente quanto aos andamentos mais acelerados em criações já compostas nesse propósito, para gáudio de parte dos que frequentam as salas de concerto. Há também casos de excelentes pianistas do repertório consagrado que frequentam com insistência gêneros de outra índole. Determinados atributos da música popular vazam periodicamente quando no repertório-mor do pianista.

Num blog bem anterior, “Progresso em Arte”, http://blog.joseeduardomartins.com/index.php/2014/09/27/progresso-em-arte/, já abordei a temática, igualmente a considerar não haver progresso na criação musical. Sob aspecto outro, quantidade enorme da música contemporânea é apresentada em festivais específicos apenas uma vez e fenece. Razões teve o compositor francês Serge Nigg (1924-2008) que, nos estertores da existência, afirmava que, contrariamente ao que ocorria num passado em que dialogava com intérpretes, compositores e musicólogos, nesses tempos finais só era apresentado a jovens compositores. No blog mencionado acima citei pertinente observação de Mario Vargas Llosa (1936-1925) que, à certa altura, não mais visitava Bienais de Arte “pelo descompromisso com a essência do termo, arrivismo de autores a qualquer custo e banalização conceitual da arte na atualidade”. Ambos os posicionamentos apenas ratificam que a obra-prima, desde o remoto passado à contemporaneidade, permanece indelével. Não há o progresso em direção aos tempos atuais, mas a aparição de novas técnicas e tendências, sendo que  poucas permanecerão. Se existisse progresso na arte musical o repertório do passado não seria largamente majoritário nas programações.

O insigne compositor e regente Pierre Boulez (1925-2016) reestruturou várias obras, dando-lhes novas versões. Denominaria works in progress (trabalhos em curso), que também poderiam ser considerados, com outras palavras, versões, adaptações, transcrições. Em entrevista ao jornal Le Monde (27/03/1985), afirmaria: “Não estou em paz se não estiver satisfeito, e como posso estar? Na composição, por exemplo, como conseguir o equilíbrio musical, como fazer com que a realização se apodere do especulativo e lhe dê um conteúdo efetivo?” (Le Monde, 27/03/1985), frase que bem exemplifica a perene curiosidade do compositor no desiderato de dar novas configurações a determinadas criações. Pli selon pli (1957) teve várias versões para diferentes formações, sendo a definitiva na década de 1990. Outras obras seguiram o mesmo roteiro.

De relevado interesse a longa exposição de Gildo Magalhães, Professor titular jubilado da FFLECH-USP na área da História da Ciência.

“Esta é de fato uma pergunta que suscita muita reflexão. Por um lado, há a questão da interpretação, onde é difícil avaliar como eram as interpretações antes das gravações; há apenas as descrições de pianistas fabulosos como se escrevia a respeito de Liszt; hoje podemos comparar o Chopin de Hoffmann com o de Horowitz e assim por diante. Já a composição se presta ao filtro do tempo, como você sempre assinala, ainda que de vez em quando alguém seja salvo do soterramento a que foi submetido e reaparece na sua grandeza – podemos dizer que é também uma questão de tempo, mas com retardo.

Uma área estética onde há alguns autores que acreditam no progresso parece ser nas artes plásticas, mas é sempre uma celeuma. Um critério proposto é o de que a arte serve para elevar o espírito humano, elevar num sentido amplo, que inclui aproximar o homem da divindade (alguma divindade) e de aproximar os homens uns dos outros – aliás, o sentido dado por Barenboim para sua orquestra do Divã Oriental-Ocidental (título que é uma referência à obra poética a 4 mãos de Goethe e Schiller)”.

Ao ter mencionado no post anterior o avião alemão Junkers Ju 52, recebi do meu querido irmão, o ilustre jurista Ives Gandra Martins, mensagem de interesse: “Da mesma forma que evoluímos dos barulhentos ‘junkers’ – voei num com papai, mas não me lembro do barulho, mas só da empolgação do voo em 1943 – para os silenciosos A-380. Creio que também na interpretação da arte há evolução. A própria ‘Sinfonia Clássica’ de Prokofiev, em que ele pensava reviver Mozart, hoje, muitas vezes é interpretada com toques diferentes propostos por Prokofiev”.

Diria que há evolução a atingir os devidos fins, melhores ou, tantas vezes, piores resultados. Todavia, a obra-prima que é a “Sinfonia Clássica” permanecerá, ratificando o conceito do não progresso da obra, mas tendências quanto à interpretação. Estou a me lembrar de fato curioso ocorrido num Congresso sobre Música em Salvador nos anos 1990. Como em determinada sessão o professor que deveria presidi-la faltou, convidaram-me para a tarefa. Em certo momento, utilizei a palavra evolução e um antropólogo no auditório imediatamente observou que o termo não mais poderia ser empregado. Felizmente, estava com um livro recente em inglês em minha pasta que abordava a evolução do cravo para o pianoforte e posteriormente para o piano.

Certamente haverá ao longo da história defensores das duas correntes concernentes às Artes nesse quesito progresso. A dialética sempre presente.

I’ve received countless messages on the subject of Progress in the Art of Music. There will always be considerations about progress and evolution, the latter of which is banned in certain areas.