Incontáveis exemplos
A dança passa como um incêndio.
E, no entanto, eu digo civilizado o povo que compõe as suas danças,
apesar de não estar atento às colheitas ou aos celeiros.
Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944)
(“Citadelle”)
E aqueles que foram vistos dançando
foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música.
Friedrich Nietzsche (1844-1900)
Ao longo dos anos, inúmeras vezes recebi sugestões de um amigo em forma de perguntas. Elas foram fontes temáticas para vários blogs, após reflexões. Nossos encontros casuais ocorrem na feira-livre do Campo Belo e quase sempre continuamos conversas descontraídas num café próximo. Assíduo leitor dos blogs hebdomadários, o que muito me alegra, Marcelo é mestre em perguntas incisivas. Recentemente uma delas me fez pensar, pois gostaria de conhecer mais a respeito do repertório pianístico. Acrescentou que ouviu recentemente Valsas de Chopin e que ficou encantado. “Poderia o amigo escrever sobre a Valsa, indicando exemplos?” Voltei para casa e a ideia frutificou. O catálogo de Valsas para piano é enorme e contém um número extraordinário de composições, muitas delas frequentadas habitualmente pela maioria dos pianistas.
A Valsa, walzer em alemão, dança em compasso ternário, tem origem remota, tendo sofrido a influência do Minueto, dançante e cultuado pela nobreza nos séculos XVII-XVIII, e do Ländler, de origem austro-alemã, praticado pelas classes campesinas. No final do século XVIII se expande por vários países europeus e, nas primeiras décadas do século XIX, compositores que ficaram na história compuseram Valsas para piano. Franz Schubert (1797-1828) compôs inúmeras. Todavia, a inserção plena da Valsa no repertório para piano se dá com o advento do recital pianístico aristocrático, proposta inicial de Franz Liszt (1811-1886), um dos fatores fulcrais a categorizar as Valsas que se seguirão como criações não destinadas à dança, mercê dos incontáveis procedimentos técnico-pianísticos, muitos deles verdadeiras “acrobacias”. A partir da primeira metade do século XIX a expansão da Valsa se torna consistente, sendo praticada por compositores que permaneceram na história, como Carl Maria von Weber (1786-1826), Fréderic Chopin (1810-1849), Robert Schumann (1810-1856), Franz Liszt (1811-1886), Johannes Brahms (1833-1897), P.I. Tchaikovsky (1840-1893), Emmanuel Chabrier (1841-1894), Gabriel Fauré (1845-1924), Claude Debussy (1862-1918), Alexander Scriabine (1872-1915), Maurice Ravel (1875-1937) e tantos outros. Quanto à dificuldade técnico-pianística, a elasticidade é ampla e varia através da história, indo da mais elementar, para iniciantes, às de dificuldade extrema. Considerem-se ainda as célebres Valsas vienenses de Johan Strauss II (1825-1899), autor de várias centenas compostas para orquestra e destinadas à dança, entre as quais as famosas “Danúbio Azul” e “Contos dos Bosques de Viena”.
No Brasil, inúmeros compositores escreveram Valsas, pois gênero fartamente frequentado a partir principalmente das fronteiras dos séculos XIX-XX. Henrique Oswald (1852-1931) compõe algumas, Villa-Lobos (1887-1959) compõe 4, Camargo Guarnieri (1907-1993) escreve 12 e Francisco Mignone (1896-1986), o mais profícuo nesse mister, compôs 24 Valsas, sendo que 12 denominadas de Esquina, 12 Valsas-Choro para piano e 12 outras foram destinadas ao violão. Sob o aspecto urbano, duas figuras se tornaram icônicas no país, Chiquinha Gonzaga (1847-1935) e Ernesto Nazaré (1863-1934), que escreveram dezenas de Valsas com cunho mais popular.
De um vastíssimo catálogo, separei quatro Valsas que pertencem ao repertório perpetrado ao piano através dos séculos.
A Valsa nº7 op.64 é uma das mais tocadas entre todas as compostas por Chopin. O insigne pianista Alfred Cortot (1877-1962) a interpreta numa gravação realizada há um século (1925).
Clique para ouvir, de Chopin, a “Valsa nº 7, op. 64”, na interpretação de Alfred Cortot:
https://www.youtube.com/watch?v=UlCINBdJ-Og&t=12s
Liszt, admirador do poeta austríaco Nikolaus Lenau (1802-1850), compôs “O Monge Triste”, a partir de poema de Lenau, e a “Valsa Mefisto”, a lembrar a figura de Mefistófoles, extraído de um segmento de “Fausto” (1836), do mesmo poeta. O personagem diabólico, ao tocar violino para convidados em uma festa, hipnotiza Fausto com a vertiginosa execução…“A Valsa Mefisto”, de Franz Liszt, é uma composição que explora os limites extremos da técnica pianística e uma das mais aclamadas criações para piano do compositor.
Clique para ouvir, de Franz Liszt, Valsa Mefisto, na maiúscula interpretação do pianista cubano-americano Jorge Bolet (1914-1990):
https://www.youtube.com/watch?v=so7Wiu7qngA&t=123s
A Valsa op. 38 de Alexandre Scriabine (1872-1915) é de uma das fases composicionais do compositor russo, período em que o romantismo lhe era profundamente caro, mormente Chopin. Faubion Bowers, um dos seus biógrafos, escreve: “Ele pretendia originalmente que fosse uma ‘Grand Concert Valse Fantasia’ espetacular. No entanto, escreveu ou publicou apenas uma secção — um tema requintadamente delicado. As suas ressonâncias evaporam-se quase assim que são tocadas. ‘Toque como se estivesse a sonhar’, disse o compositor certa vez a um aluno. Ele chamou-a de ‘visão onírica’ (snovidenie), um estado de espírito envolto numa auréola de irrealidade”. No período da composição da Valsa op. 38, Scriabine passaria por transição, quando não se descarta a influência das criações de Liszt, especificamente no caso dos Poemas Trágico op. 34 e Satânico, op. 36. Saliente-se que, a partir da criação da Valsa op. 38, Scriabine incluiria inúmeras vezes a referida peça em recitais na Europa e nos Estados Unidos, tanto nos programa impressos ou quando dos encores, corroborando o apreço pela sua criação.
Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, “Valsa op. 38”, na interpretação de J.E.M:
https://www.youtube.com/watch?v=97MoXq2KWig
“La Valse”, de Maurice Ravel (1875-1937), originalmente foi composta para orquestra (1919-1920), tendo como subtítulo “Poème choréographique pour orchestre”. A seguir transcreveu-a para piano solo, sendo que, logo após, para dois pianos. Trata-se de uma criação em período efervescente para Ravel. Escreve à pianista Marguerite Long: “…retomei o trabalho de uma maneira implacável, como tempos antes. Para isso, tomei medidas drásticas: vivo como um eremita no meio das Cévennes…” (montanhas no sul da França) . A obra orquestral foi composta durante a grande maturidade do compositor e exibe um domínio pleno da orquestração. Não obstante, apesar de sugerir vestígios da empolgação das valsas vienenses que imortalizaram Johannes Strauss, há algo de trágico nessa grandiosa Valsa. “Turbilhão fantástico do destino inevitável”, proferiria Ravel. As versões para piano e para dois pianos são obras transcendentes no plano técnico pianístico.
Clique para ouvir, de Maurice Ravel, La Valse (transcrição para dois pianos), na magnífica interpretação de Marta Argerich e Nelson Freire:
https://www.youtube.com/watch?v=hkVrhll9VBA
Enquanto tantas foram as danças introduzidas nas inúmeras suítes dos compositores barrocos que ficaram presentes nos repertórios dos intérpretes através dos tempos, a Valsa alçou voos maiores no que concerne à diversificação, pois inserida nos repertórios clássicos, continuando sua trajetória ativa pelo mundo em festividades as mais variadas.
The waltz was one of the most popular genres among composers at the turn of the 18th and 19th centuries. Notable composers who have left a lasting impact on music history composed waltzes. In Brazil, especially in the first half of the 20th century, the waltz was revered by composers of various styles.