Navegando Posts publicados em setembro, 2025

Um tema complexo

Um livro atirado ao público equivale a um filho atirado à roda.
Entrego-o ao destino, abandono-o à sorte.
Que seja feliz é o que eu lhe desejo;
mas, se o não for, também não verterei uma lágrima.
Guerra Junqueiro (1850-1923)

Tenho recebido mensagens de interesse voltadas à criação musical, máxime após os dois últimos blogs sobre os Concertos para piano e orquestra de Ravel. Ao longo dos anos abordei perifericamente o tema, complexo na realidade, mas sujeito a várias interpretações.

Os questionamentos sobre a origem do pensamento criador na esfera da composição têm inúmeras vertentes, a depender de tantos fatores: geográficos, sociais, psicológicos, culturais e outros mais. Numa breve síntese das perguntas recebidas, tem-se: O que leva um músico a compor? Quando propenso a compor já há na mente do compositor ao menos um esboço daquilo que almeja? Outras questões levantadas sobre a temática enfatizam a curiosidade dos não músicos quanto às mais diversas obras dos compositores mais ventilados.

Preliminarmente, o ouvinte de uma composição sabe o nome do seu criador, mas dificilmente pensa na  origem originária da obra por dois motivos básicos: o quase desinteresse pela causa primeira e por uma razão que subsiste numa área subjetiva,  porque a criação finalizada já não pertence ao seu autor, pois de amplo domínio público. Esse ouvinte estaria interessado na criação que está a penetrar nos seus sentidos. Títulos formais, como Sonata, Sinfonia, Concerto, Suíte e outros mais, podem provocar no ouvinte leigo uma menor atenção se comparados aos que conduzem à imaginação do ouvinte. O título da super conhecida Sonata ao luar, de Beethoven, não é do compositor, mas sugestão do crítico e poeta alemão Ludwig Rellstab (1799-1860). Todavia, corroborou a enorme difusão da Sonata op. 27 nº 2 - quase una fantasia. Incontáveis títulos de criações de autores consagrados advêm de sugestões de terceiros, neles se enquadrando editores das composições com fins de uma maior divulgação.

Na história da música, as fontes que impulsionam o músico a compor são inúmeras e, em muitos casos, o compositor é igualmente um intérprete. Em cada fase histórica, até mais recentemente, o compositor, ao criar, seguia critérios ditados pelas técnicas da escrita musical e formas vigentes. Distinguiam-no as próprias qualidades individuais. Praticando formas do período, Haydn (1732-1809), Mozart (1756-1791), Beethoven (1770-1827) e Schubert (1797-1828) são facilmente detectados pelos estilos personalíssimos na utilização da básica forma sonata consagrada. Os compositores mencionados a utilizaram em suas criações, dando a ela interpretações diferenciadas, sem que a espinha dorsal fosse rompida, pois cada um adaptou a sua linguagem à forma existente. Serviam-se da harmonia, “formação e encadeamento dos acordes segundo as leis da tonalidade” (“Dicionário de Música”. Tomás Borba e Fernando Lopes-Graça, 1956).

O compositor belga André Souris (1899-1970) observa que “o compositor pode romper o feitiço do estilo que o seduziu inicialmente e empenhar-se com todas as suas forças para o superar, como foi o caso de Debussy em relação a Wagner. Mas é importante notar aqui que o gênio revolucionário de Debussy só conseguiu desenvolver-se apoiando-se nos mesmos dados que ele se propôs a combater. Ou seja, Debussy permaneceu wagneriano à medida que se tornou antiwagneriano” (Conditions de la musique (1976).

Valho-me de outras frases de Guerra Junqueiro: “Não faço versos por vaidade literária. Faço-os pela mesma razão por que o pinheiro faz resina, a pereira, peras e a macieira, maçãs: é uma fatalidade orgânica. Os meus livros imprimo-os para o público, mas escrevo-os para mim” (Prefácio à segunda edição de “A velhice do Padre Eterno”).

O impulso que leva à criação é tantas vezes insondável. O tempo de duração de determinada obra é algo rigorosamente individual. O magnífico Oratório Messias, de G.F.Haendel (1785-1959), encomendado pelo mecenas e escritor Charles Jennens (1700-1773), autor de vários libretos para os oratórios do compositor, com destaque para o Messias, foi composto em apenas 24 dias (1741).

Clique para ouvir, de G.F Haendel, a célebre Aleluia, extraída do Oratório Messias, interpretada pelo Royal Choral Society e a Royal Philharmonic Orchestra conduzida por Richard Cooke.

https://www.youtube.com/watch?v=IUZEtVbJT5c&t=2s

Moussorgsky (1839-1881), após a morte de seu grande amigo Viktor Hartmann (1834-1873), visitou várias vezes a exposição de aquarelas e pinturas dedicada ao pintor. Sob impacto, recolheu-se ao seu quarto e em 12 dias, sem dele sair, compôs uma das obras-primas da literatura pianística mundial, os “Quadros de uma Exposição” (1874). Sobre a gestação, escreveria ao seu amigo confidente Vladimir Stassov (1824-1906): “Hartmann ferve como ferveu Boris (ópera Boris Goudonov); os sons e as ideias estão suspensos no ar; eu os absorvo, eles me preenchem, mal conseguindo rabiscá-los no papel. Agora estou a escrever o nº 4, as ligações estão boas (nas promenades). Quero fazê-lo o mais rápido e melhor possível. A minha fisionomia aparece nos intervalos. Até agora, acho que está a correr bem (Junho de 1874)”. Nos “Quadros de uma Exposição”, o termo francês promenade (passeio) indica o caminhar de Moussorgsky pela mostra dedicada ao amigo.

Quanto ao impulso que leva à composição, pode ele ter vários motivos: encomenda, vontade de compor, entusiasmo, depressão… Claude Debussy (1862-1918) escreveria ao amigo Robert Godet aos 14 de Outubro de 1915, logo após concluir a sua última grande obra para piano, os 12 Études: “Escrevi como um louco, ou como aquele que deve morrer no dia seguinte”. No dia 21 de Março de 1918, quatro dias antes da morte após longo sofrimento, recebe a visita do pianista Ricardo Viñes (1875-1943), que atende a um pedido de Debussy interpretando os Estudos, que são ouvidos com profunda perturbação.

Clique para ouvir, de Claude Debussy, Étude pour les huit doigts, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=D85tz0ibqRk&t=10s

As causas que levam à criação a partir de um estímulo, seja ele qual for, ou da ausência dele, corroborando o que escreve acima Guerra Junqueiro, “fatalidade orgânica”, são incontáveis. O notável compositor brasileiro Henrique Oswald (1852-1931) compôs “Il Neige!” sob o impacto do movimento dos flocos de neve, uma das peças icônicas do repertório brasileiro para piano, pois primeiro prêmio num Concurso promovido pelo jornal Le Figaro, em 1902. Concorreram 647 peças vindas dos vários cantos do mundo. No júri, Gabriel Fauré, Camile Saint-Saëns e Louis Diémer.

Clique para ouvir, de Henrique Oswald, Il Neige!, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=n0RxYeQbBbo

I have received several messages from readers who are curious to know the origin of musical creation in the mind of a composer. It is a complex subject, but I will briefly mention some of these origins or inspirations.

 

 

 

Uma obra maiúscula

Se há algo surpreendente na evolução de Maurice Ravel,
é a rapidez com que ele alcança a perfeição.
Vladimir Jankélévitch
(“Maurice Ravel”, Éditions Rieder, 1939)

Os dois Concertos, em sol maior (vide blog anterior) e o para mão esquerda, foram terminados num mesmo período, segundo semestre de 1931, e são bem contrastantes, sendo que o pour la main gauche, bem mais austero, tem origem singular, sem a qual ele certamente não existiria. Essa singularidade existe em um sem número de composições ao longo da história, motivada por estímulos os mais diversos.

Maurice Ravel (1875-1937) aceitou a encomenda do pianista austríaco Paul Wittgenstein (1887-1961), irmão do filósofo Ludwig Wittgenstein (1889-1951), pois perdera o braço direito durante a Primeira Grande Guerra. No desiderato de continuar a carreira, vários compositores escreveram Concertos para a mão esquerda e orquestra dedicados ao pianista, alguns  encomendados. Entre estes últimos, as composições de Richard Strauss (1864-1949), Benjamin Britten (1913-1976), Sergei Prokofiev (1891-1953) e Maurice Ravel. O poeta e musicólogo belga José Bruyr (1889-1980) concebe pertinentes comparações entre o Concerto em sol e o Concerto para a mão esquerda: “Dia e noite, classicismo e romantismo, o lazer e a obrigação, a despreocupação e o desespero” (“Maurice Ravel ou le lyrisme et les sortilèges”, Paris, Plon, 1950).

 

Após a estreia parisiense do Concerto em sol maior para piano e orquestra (14/01/1932), Ravel e Marguerite Long, dedicatária do Concerto, empreenderam uma longa turnê pela Europa em apresentações dedicadas unicamente às obras do compositor, sempre tendo o Concerto em sol para piano e orquestra no programa.

Tem interesse a narração da pianista Marguerite Long (1874-1966) a respeito da reação de Ravel ao ouvir o pianista Paul Wittgenstein meses após a première em Viena do Concerto para a mão esquerda, que se deu em 27 de Novembro de 1931. “Em Viena, fomos convidados para um grande jantar em casa de Paul Wittgenstein, seguido de uma apresentação musical. Executaram o Quarteto e o dono da casa tocou o Concerto para a mão esquerda acompanhado por um segundo piano, para que Ravel pudesse finalmente ouvir a sua obra. Eu estava um pouco preocupada, pois, sentada à direita de Wittgenstein durante o jantar, ele me confidenciou que teve de fazer alguns ‘arranjos’ no Concerto. Desculpando-o no meu coração, pois acreditava que seu enfraquecimento físico fosse o responsável por essas liberdades, aconselhei-o a informar Ravel com antecedência. Ele não o fez. Durante a execução, acompanhava na partitura o Concerto que ainda não conhecia e podia apreciar no rosto de Ravel, que se tornava cada vez mais sombrio, os malefícios das iniciativas do nosso anfitrião. Terminada a récita, fiquei a conversar com o embaixador Clauzel, a fim de evitar um incidente. Infelizmente, Ravel se aproximou lentamente de Wittgenstein e lhe disse: ‘Mas, não é nada disso’! O anfitrião respondeu, a se defender: ‘Sou um velho pianista e o Concerto não soa bem!’ Era a única coisa que ele não poderia ter dito. ‘Sou um velho orquestrador e sei que ele soa bem’, replicou Ravel. Imaginemos o mal estar! Estou a me lembrar de que o nosso amigo ficou em tal estado de nervos que dispensou o carro da embaixada e retornamos a pé, sob um frio rigoroso, para amainar a contrariedade. Embora  concordando com ele quanto ao princípio sagrado do respeito pela obra por parte do intérprete, não pude deixar de lamentar essa discussão e defendi a causa desse infeliz, cujo apego à música era, afinal, muito comovente. Mas não consegui convencer Ravel, que mais tarde se opôs à vinda de Wittgenstein a Paris para tocar o Concerto. Justamente furioso, este lhe escreveu: ‘Os intérpretes não devem ser escravos!’ E Ravel respondeu-lhe: ‘Os intérpretes são escravos!’ Na verdade, Wittgenstein só tocou a obra em Paris em 1933. Apenas em 1937 o Concerto ficou acessível a outros, pois obra encomendada; foi então, e de acordo com o meu desejo, interpretada pelo meu querido discípulo Jacques Février com um grande e legítimo sucesso”. Tive o privilégio de ter sido aluno de Jacques Février (1900-1979) e de Jean Doyen (1907-1982), igualmente ex-alunos de Marguerite Long e intérpretes do Concerto para a mão esquerda.

A posição de Maurice Ravel é perfeitamente compreensível, pois a partitura possibilita a interpretação e esta tem a chancela da individualidade sob restrições. Dois instrumentistas executarão uma obra diferentemente, pois impossível serem essas execuções rigorosamente idênticas. Não obstante, a partitura é única e, por livre arbítrio, alterá-la significa maculá-la. Mormente a partir do século XIX, os compositores incorporaram às suas criações sinais e termos relativos à articulação, à intensidade, à acentuação, ao timbre e ao andamento e suas flutuações, majoritariamente seguidos pelos intérpretes. O desrespeito a essas sinalizações já indica arbitrariedade. Modificar a estrutura da partitura, acrescentando a bel prazer notação extra ao que está sinalizado, é inobediência. Nas últimas décadas principalmente, essas violações são frequentes e aceitas por parte do público menos conhecedor da definição da partitura. Em “La civilización del espectáculo”, de Mario Vargas Llhosa, há a exata situação do declínio da cultura erudita na atualidade e, no caso da Música, as evidências relacionadas à permissividade são sensíveis. Ravel compareceu ao evento na Ópera de Paris (04/05/1930), no qual sua conhecida composição Boléro teve como regente Arturo Toscanini (1867-1957) com a Sinfônica de Nova York. No final da apresentação, dirigiu-se ao camarim e ouviu do célebre regente as razões que o levaram a alterar progressivamente o andamento indicado, 60 a semínima, considerando que o público vibrou ao término da execução. Ravel ficou compreensivelmente furioso, pois uma razão basilar da obra é a manutenção, do início ao fim, da medição metronômica implacável, a dimensionar não apenas o crescendo do início ao fim, como também o enriquecimento instrumental.

Concerto para a mão esquerda e orquestra é uma obra extraordinária em termos de construção. Ravel conseguiu, numa criação de um só movimento, introduzir diversos elementos que se coadunam à perfeição. Se há passagens que sugerem algo sombrio – possivelmente o drama de Paul Wittgeinstein -, há apelos ao jazz e à virtuosidade a percorrer o teclado, dando até a impressão de ter sido escrito para as duas mãos, tão impactante a feitura da composição.

Clique para ouvir, de Maurice Ravel, o Concerto para a mão esquerda na interpretação histórica de Jacques Février (1900-1979), acompanhado pela Orchestre Nationale de la Radio Française, sob a regência de Georges Tzipine (1907-1987). Considerem-se os recursos tecnológicos precários, em termos atuais, da tomada de som em 1958:

https://www.youtube.com/watch?v=ZAqc2ab9ktY

Em Abril de 2001, meu irmão João Carlos ― com a mão direita comprometida, e, pouco tempo após, também a mão esquerda, mercê da distonia focal, doença neurológica que afeta os movimentos das mãos ― e eu realizamos uma turnê na Romênia e nos apresentamos em  Bucareste, Craiova e Cluj Napoca, sendo que na primeira parte interpretei obras do meu repertório e, na segunda, João Carlos executou com brilhantismo o Concerto de Ravel para a mão esquerda, enquanto eu, num segundo piano, a redução da orquestra realizada por Ravel.

The Concerto for the Left Hand and Orchestra, commissioned from Maurice Ravel by the Austrian pianist Paul Wittgenstein, is an extraordinary and unique work and the story behind it has some dramatic moments.

 

Uma história bem documentada

A música escapa a qualquer existência permanente
e só a interpretação pode dar-lhe vida,
uma vida deliciosamente e desesperadamente efêmera.
Marguerite Long (1874-1966)
(“Au piano avec Maurice Ravel”)

Um dos concertos para piano e orquestra mais executados no mundo é certamente o Concerto em sol maior para piano e orquestra, de Maurice Ravel (1875-1937). Após muitos anos, voltei a ouvir, agora via Youtube, uma gravação histórica do referido Concerto para piano com a dedicatária da obra, a lendária pianista Marguerite Long, ao piano e o autor Maurice Ravel a reger a orquestra sinfônica. Realmente uma interpretação excelsa. A gravação foi realizada em 1932 e a tomada de som, longe da qualidade atual, não impede que se depreenda o mérito da interpretação da solista. Em 1952, o Concerto seria regravado com outros recursos sonoros, sendo que Marguerite Long teve a orquestra Lamoureux conduzida por Georges Tzipine (1907-1987), regente da Orquestra Colonne, com quem que tive o privilégio de tocar o Concerto nº 3 de Beethoven em Março de 1960 em Paris.

Na bibliografia de Maurice Ravel, intérpretes renomadas que foram dedicatárias de obras fundamentais do compositor, a saber, a violinista Hélène Jourdan-Morhange (1888-1961), Sonata para violino nº 2, e Marguerite Long, Concerto em sol maior para piano e orquestra, deixaram testemunhos valiosos do convívio com o notável músico. O livro “Marguerite Long au piano avec Maurice Ravel” (Paris, Julliard, 1971) revela a intimidade da pianista com a obra para piano do compositor, máxime sobre o Concerto em sol maior. Marguerite Long aponta as palavras primeiras de Ravel a ela reveladas: “Uma noite, em um jantar na morada de Mme de Saint-Marceaux, cujo salão era ‘um bastão de intimidade artística’, segundo Colette, Ravel me disse à queima roupa: ‘estou no momento compondo um Concerto para você. Se importaria que eu o terminasse em pianíssimo e com trinados?’ Mas certamente, respondi-lhe, muito feliz de realizar o sonho de tantos virtuoses”.

Ravel, após compor o célebre Bolero (1928), passa longo tempo sem criar outras obras. Apesar de pensados em 1929, somente em 1931 nasceriam os dois Concertos para piano e orquestra, bem antagônicos, o Concerto em sol maior e o Concerto para a mão esquerda. Alguns traços comuns, contudo, são evidentes nos dois Concertos, entre os quais lembranças de sua estada nos Estados Unidos concernentes ao jazz e à vida mais agitada, se comparada à sua vivência em França. A um correspondente do Daily Telegraph, Ravel narra a “epopeia” de escrever os dois Concertos tão diferentes: “Foi uma experiência interessante conceber e realizar dois Concertos ao mesmo tempo. O primeiro, no qual participarei como intérprete (na realidade Marguerite Long foi a pianista), é um Concerto no sentido mais exato do termo, escrito no espírito dos Concertos de Mozart e Saint-Saëns. De fato, penso que a música de um Concerto pode ser alegre e brilhante, e que não é necessário que pretenda ter profundidade ou que vise a efeitos dramáticos. Diz-se de alguns grandes músicos clássicos que os seus Concertos são concebidos não para o piano, mas contra ele. De minha parte, considero este julgamento perfeitamente justificado. Inicialmente, tive a intenção de denominá-lo Divertimento. Então refleti que não era necessário, considerando que o título Concerto é suficientemente explícito no que diz respeito ao caráter da música que o compõe. Em certos pontos, o meu Concerto não deixa de apresentar algumas semelhanças com a minha Sonata para violino; traz alguns elementos emprestados do jazz, mas com moderação” (in Alfred Cortot, “La musique française de piano”, deuxième série, Paris, Presses Universitaires de France, 1948).

Mercê de problemas de saúde, Ravel tardou a terminar o Concerto em sol maior, declarando ao seu amigo Zogheb: “Resolvi não mais dormir um segundo sequer. Finda a obra, então repousarei neste mundo… ou em outro”. Ravel, pianista, gostaria de ser o primeiro intérprete, mas, devido às dificuldades técnico-pianísticas reais do Concerto em sol, convidou Marguerite Long para estreá-lo e ela se expressa: “compreenderão qual não foi a minha intensa emoção ao receber o telefonema de Ravel, aos 11 de novembro de 1931, a anunciar a sua vinda imediata à minha casa com o seu manuscrito do Concerto. Estava a me ajeitar quando Ravel chegou repentinamente com as preciosas folhas do Concerto. Confesso que fui diretamente à última página: o pianíssimo e os trinados foram transformados em fortíssimo e percutantes nonas! A obra é árdua, mas o movimento que me deu mais trabalho foi o segundo, aparentemente sem armadilhas”. Estudei com Mme Long o Concerto em sol maior. Disse-me ela que, graças à lenta evolução do segundo movimento e à sua métrica, a possibilidade de falha de memória do pianista ocorre com frequência.

A primeira apresentação mundial se deu em Paris, na Salle Pleyel, aos 14 de Janeiro de 1932. Nessa estreia, Ravel regeu a Pavane, o Boléro e acompanhou o Concerto. Marguerite Long afirma “que não estava tão orgulhosa pelo fato, infelizmente, da sua regência ter sido realizada com a partitura do piano, resultando em uma condução incerta”.

Mme Long escreve: “A Salle Pleyel estava completamente lotada. Tudo correu bem e o sucesso foi considerável, a ponto de termos de repetir o terceiro movimento. Tendo muitas vezes solado o Concerto em sol em França e no estrangeiro, sempre, sem exceção, tivemos de bisar o terceiro movimento”.

Clique para ouvir, de Maurice Ravel, o Concerto em sol maior para piano e orquestra sinfônica, na interpretação de Marguerite Long, sob a regência do compositor (1932):

https://www.youtube.com/watch?v=WSA_MR2Gw_s

Tem interesse o testemunho da pianista ao avaliar o Concerto em sol maior: “Obra-prima autêntica onde a fantasia, o humor, o pitoresco cravam uma das mais tocantes cantilenas que o coração humano jamais sussurrou. Talvez o seu maior encanto resida num conjunto de qualidades que fazem esta obra essencialmente nossa. Colocar as descobertas harmônicas, rítmicas e melódicas mais originais no quadro mais tradicional, despertar os múltiplos setores da nossa sensibilidade com um toque discreto e reservado, falar uma linguagem nova na sombra tutelar de Mozart e Bach, evocar e sugerir sem nunca impor, esconder sempre com pudor a sua própria personalidade e construir tudo com uma perfeição constante e surpreendente foi dar à música uma obra absolutamente francesa”.

Após a grande acolhida pública do Concerto em sol, Maurice Ravel e Marguerite Long partiram em viagem a vários países europeus e as apresentações foram inteiramente dedicadas às criações do compositor. Bélgica, Áustria, Romênia, Hungria, Checoslováquia, Polônia, Alemanha e Holanda aclamaram com o maior entusiasmo as interpretações.

Sob outra égide, no livro mencionado, Marguerite Long escreve sobre os esquecimentos de Ravel no que concerne ao cotidiano nessas viagens pela Europa. “Eu começava, então, a verdadeiramente tomar conhecimento da legendária distração de Ravel, cujo bom humor, a sua melhor característica, contrastava com as consequências às vezes catastróficas de suas imprudências. Juntamente com o cansaço das viagens de comboio, dos concertos, das recepções e das angústias que Ravel me causava frequentemente durante a regência das orquestras, esses incidentes me esgotaram e eu realmente achei que voltaria caquética dessa digressão”! São inúmeros os casos relembrados por Mme Long com boa dose de humor, como esquecer objetos em hotéis, confundir-se com cartas e bilhetes colocados nos bolsos, assim como tantos outros percalços ocasionados também pela distração.

No próximo blog focalizarei o Concerto para a mão esquerda, criação bem contrastante se comparada ao Concerto em sol maior.

After listening to a historic recording of Maurice Ravel’s Concerto in G major for piano and orchestra recorded in 1932, with Marguerite Long, the dedicatee of the work, as pianist and Ravel himself conducting the orchestra, I revisited the book “Au piano avec Maurice Ravel,” written by the legendary pianist.